A montanha calcária a ser esventrada por serras inacreditavelmente eficientes, do fundo da pedreira ao topo. Blocos que adivinhamos na ordem das centenas de toneladas a serem derrubados e a estatelarem-se lá em baixo impõem respeito. Naquele terreno do Parque Natural das Serra de Aires e Candeeiros que hoje é uma cratera, é possível que já alguém tenha feito a sua horta. Ou tenha tido a sua casa.
Quando uma dessas modestas casas num local sem grande cotação imobiliária é vendida como se estivesse num condomínio de luxo em Cascais ou na Foz, no Porto, apetece perguntar se “há petróleo no Beato”.
Como na peça de teatro de Raul Solnado, o segredo na Serra dos Candeeiros está no subsolo e o resultado é a especulação imobiliária elevada à máxima potência, mas aqui não é ficção. Rogério Vigário e o seu irmão Luís, co-fundadores e proprietários da empresa de extracção de pedra Mármores Vigário e detentores de 80% do capital de outra de transformação, a MVC – Mármores de Alcobaça, revelam à FORBES, durante a visita a uma das suas pedreiras na zona de Porto de Mós, como tiveram de rasgar os cordões à bolsa para poder expandir o activo.
No terreno sobranceiro àquele em que nos encontramos existia até há pouco tempo uma casa que a MVC adquiriu, juntamente com a propriedade. Hoje, a habitação virou pó, mas o valor acordado com o vendedor deu para que este adquirisse um apartamento na cidade, comprasse um automóvel topo de gama e uma casa de férias. “Não comprei a propriedade, comprei a vontade”, diz Rogério, sorrindo, por saber que é esta a ginástica necessária a quem persegue os filões de pedras na Serra de Aires e Candeeiros.
Cumprem-se três décadas desde que Rogério, hoje com 53 anos, e o irmão sete anos mais novo, Luís, se dedicaram à exploração de pedra na sua terra. Naquela altura, o sector ainda era rudimentar, mas os irmãos conheciam-no por dentro. “Extraímos hoje 100 vezes mais do que há 30 anos”, diz o empresário à FORBES, apontando à tecnologia mais eficiente e ao equipamento de que agora dispõe.
Só na maquinaria ali à vista estão aplicados 2 milhões de euros, que são responsáveis por extrair e transformar pedra para revestir edifícios tão emblemáticos como o MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia, em Lisboa, resorts de luxo no Dubai, e até para dar forma aos rostos de Eusébio e Amália Rodrigues.
Negócio bem esculpido
As dezoito espécies de morcegos a viver em grutas, e as próprias grutas, algumas visitáveis por curiosos e espeleólogos como as de Santo António e Moeda, são apenas parte do tesouro do Parque Natural da Serra de Aires e Candeeiros. A área está marcada no mapa dos ambientalistas como local sagrado de fauna e flora, apesar das ameaças das pedreiras e do “crime” ambiental aquando do rasgão da auto-estrada do Norte (A1) há 30 anos.
Foi nessa mesma altura que a Mármores Vigário surgiu, mas as pedreiras eram uma realidade há décadas, designadamente a pedreira do Galinha, classificada como Monumento Nacional em 1996 e transformada num centro interpretativo, por ali terem sido encontradas importantes pegadas de dinossauros saurópodes.
O próprio sector era “rudimentar” até ao boom da década de 1990, explica Rogério, sublinhando ainda que o cenário das novas explorações nada tem que ver com o de décadas atrás, e explica que hoje há regras apertadas para minimização dos efeitos ambientais e visuais.
A partir dos anos 1990, a Mármores Vigário começou a sentir a pressão da procura dos chineses por blocos em bruto, que absorvia o que houvesse para vender. Nos últimos 15 anos, a pressão disparou: mais de metade dos blocos já vão para a China. E como Rogério recorda, por volta do arranque desta década os operadores dos Candeeiros foram chamados à pedra pelos empresários portugueses detentores de fábricas.
Estes tinham dificuldade em comprar matéria-prima para as suas obras, por força da inflação dos preços provocada pela procura dos chineses. “Há quem defenda que nos andámos a vender aos chineses”, refere.
Mas ele próprio sente na carteira essa pressão no valor da matéria-prima, já que os irmãos Vigário também detêm uma fábrica de transformação, a MVC. “Quanto mais autónomos em matéria-prima, mais segurança tem o negócio [da MVC]”, reconhece o proprietário da fábrica de onde saem materiais para fachadas e decoração de interiores.
Rogério e Luís começaram a obter rendimentos na pedreira, mas perceberam que os ganhos se poderiam multiplicar com a verticalização do negócio.
Se no princípio faziam apenas a extracção com a Mármores Vigário, há cinco anos propuseram-se fazer o produto final. Contaram com o apoio da Associação Nacional de Jovens Empresários e foram de imediato à feira de Valência apresentar a empresa ao mercado. Para a MVC não entrar em concorrência com os clientes da Mármores Vigário, enveredou pelos pavimentos, como o do hotel de luxo Jumeirah Al Qasr.
Este hotel de cinco estrelas construído à imagem de um palácio de verão de um Emir é um dos muitos projectos internacionais da MVC em geografias como o Médio Oriente, Europa e EUA. O resultado está à vista: em 2017, as duas empresas facturaram cerca de 5 milhões de euros e detêm activos de quase 15 milhões de euros.
Nos últimos 30 anos, a pedra passou de sector feito, sobretudo, por e para gente da terra, a um negócio com maior exigência, designadamente ambiental – que trouxe algum brilho de nouveau riche às pedras. Esse aburguesamento da pedra verifica-se até na nomenclatura, de que é exemplo o Azul do Cadoiço transformado em Atlantic Blue.
Antes era o nome das localidades como Cadoiço ou Moleanos que dava nome às pedras, fazendo justiça ao local onde eram extraídas, hoje o marketing sobrepõe-se à tradição. Rogério conta-nos outra razão para a mudança do nome: o segredo, alma do negócio, fica melhor guardado dos concorrentes quando não se diz à boca cheia o local de onde é extraída a pedra… basta lembrar o valor a que subiu a casa do vizinho, por este estar “sentado” sobre uma fértil formação calcária.
O grande bazar
Quando, neste século, começaram a pulular pelo país lojas de cidadãos chineses imigrantes, a balança comercial entre Portugal e a China inclinou-se sobremaneira. Os navios com catervas de contentores carregados para a “loja dos 300” que brotava em cada esquina (o conceito do início do fenómeno, com produtos a cerca de 1,5 euros, ou 300 escudos) acabavam a zarpar dos portos nacionais praticamente vazios, o que afundava parte da racionalidade da operação.
Atentos, os responsáveis do grupo de Alcobaça e os seus concorrentes, que desde há uns 15 anos começaram a sentir a procura chinesa, serviram a solução aos operadores marítimos: estes, ao invés de encherem os navios com lastro para assegurar a estabilidade em alto-mar, carregavam os contentores com pedra, evitando, por um lado, gastos relacionados com o lastro e, por outro, amealhando algum rendimento no regresso dos navios à China.
A resposta era ainda mais preciosa para os operadores porque este sector é um utilizador intensivo de contentores, nos quais o limite de peso está nas 24 toneladas. Para os empresários das pedreiras, foi um jackpot, mas a Mármores Vigário manteve uma norma: “enquanto pudermos, há tipos e qualidade de pedra que não vendemos aos chineses”, explica Rogério.
A balança começaria a desequilibrar-se quando as importações de produtos chineses abrandaram, em tempos da crise europeia contemporânea da “troika” em Portugal – ainda que os proprietários dessas lojas continuem a ser preciosos tradutores a que os empresários do sector recorrem quando estão a partir pedra com os potenciais compradores de blocos vindos daquele país.
Rogério lembra que nessa altura o preço do frete de navio acelerou, até porque a travagem nas importações chinesas foi acompanhada de um avanço de exportação de pedra. Hoje, entre 60% e 70% da extracção da Mármores Vigário segue para a China, “o único país que leva blocos com relevância”, na ordem dos 100 a 150 contentores por mês, diz-nos. No total, a empresa exporta cerca de 80% da pedra extraída.
Outra forma de transporte é por camião. É mais rápida, mas também mais cara. É pela estrada que seguem os blocos para os mercados externos mais próximos até à Rússia, mercado onde a conquista se fez a custo, tipo “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”.
Hoje, a MVC ganhou um lugar no salão do sector daquele país. Mas a pedra portuguesa não precisou de viajar tão longe para ser reconhecida. De França também vem alguma procura pelos blocos em bruto, mas é uma economia que vale sobretudo pelo canal aberto ao produto transformado, destacando-se como o principal mercado.
A procura passa, por exemplo, pelas placas que vimos serem flamejadas à mão por um dos funcionários da MVC Mármores e que suportarão os passos de quem calcorreará ruas de França que, no tempo da 2.ª Guerra Mundial, foram cobertas de asfalto sobre as pedras de seixo, e que estão a retomar um ar vintage com ajuda de empresas como a de Alcobaça.
A Itália, território de referências neste sector – designadamente o mármore de Carrara que deu corpo a David, o “filho” de Michelangelo residente em Florença – está a começar a interessar-se pelo que é extraído em Portugal, tal como a Índia, conta o responsável da MVC e da Mármores Vigário.