O encerramento de contas de bolsas de criptomoedas decidido por vários bancos em Portugal representa um “enorme contratempo no trabalho desenvolvido pela indústria”, de acordo com representantes do universo de ativos digitais que criticam a decisão já que as lojas de criptomoedas agora visadas passaram por um “elevado escrutínio” do Banco de Portugal que lhes passou a licença para exercer atividade.
Respondendo à Forbes de uma forma conjunta, Instituto New Economy, Aliança Portuguesa de Blockchain e APBC lembram que Portugal é que ficará a perder com esta posição, já que “a cripto economia é global e não vão ser as dificuldades bancárias num cantinho à beira-mar plantado que vão afetar o desenvolvimento de alguma blockchain e respetiva criptomoeda”.
Em função destes desenvolvimentos, para estes representantes, “o primeiro banco português a ir mais longe na temática da transformação digital, e adotar estas ferramentas de gestão de riscos associados às transferências ocorridas em blockchain, será facilmente abraçado pela indústria. E tem aqui uma oportunidade de ouro (digital) para crescer substancialmente”.
Quando se fala em encerramento das contas estamos a falar exatamente de quê?
Em concreto, estamos a falar das contas bancárias abertas por empresas registadas junto do Banco de Portugal (BdP) como “entidades que exercem atividades com ativos virtuais”, tipicamente conhecidas como VASPs ou CASPs (de Virtual/Crypto Asset Service Providers).
Estas empresas, recordamos, tinham já passado por um longo processo junto ao BdP. Durante este processo, que tem durado até nove meses, o regulador verifica com minucia os procedimentos de prevenção de branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo empregues pelos aplicantes, sendo que estes devem de estar de acordo com a diretiva AMLD5 da UE para efetuar serviços de compra/venda, troca, transferência, e custódia de criptoativos em nome dos seus clientes.
No entanto, apesar deste elevado escrutínio, após receberem a licença e terem conseguido a determinado momento abrir contas em várias instituições financeiras em Portugal, temos verificado que a maioria dessas instituições (existem exceções) acaba por terminar as relações bancárias em causa. Na justificação para tal procedimento os bancos têm se refugiado na complexidade da monitorização e gestão dos riscos – riscos estes que já sujeitos a um processo de compliance interno em cada entidade, controlado pelo Banco de Portugal.
“Empresas de um dos setores tecnológicos mais promissores veem-se hoje sem acesso a serviços bancários, impedidas assim de pagar salários ou a fornecedores, ou os seus devidos impostos”
Com tudo isto, empresas de um dos setores tecnológicos mais promissores veem-se hoje sem acesso a serviços bancários, impedidas assim de pagar salários ou a fornecedores, ou os seus devidos impostos. Apesar deste tipo de situações poder ser considerado normal há uns cinco anos (fruto essencialmente do desconhecimento das instituições financeiras sobre a cripto economia e falta da de ferramentas operativas para identificar e gerir esse risco), hoje em dia situações desta natureza só acontecem em países que assumidamente não estão interessados nesta nova economia digital. Ora, Portugal tem conseguido assumir – mais por sorte do que por estratégia – um estatuto e lugar de destaque importante entre as nações líderes para o desenvolvimento de organizações e negócios da cripto economia. E estas dificuldades em garantir relações bancárias normalizadas estão a prejudicar a capacidade de continuarmos a atrair investimento e capital humano altamente qualificado para o nosso setor tecnológico.
Os clientes que têm essas contas ficam com os seus ativos digitais congelados? O que é que lhes acontece?
Os ativos digitais vivem nas respetivas blockchains, pelo que estas entidades continuam com total acesso aos mesmos. Não podem é transferir de e para o sistema bancário eventuais conversões em moeda fiduciária que façam desses mesmos ativos através de contas bancárias nacionais, com a exceção de uma das entidades que ainda mantém as suas relações bancárias no país. Estas entidades guardam os ativos virtuais dos seus clientes em carteiras próprias offline ou em provedores de custódia externos, pelo que estes continuam disponíveis para os seus clientes levantarem para as suas carteiras, caso a conversão para moeda fiduciária não seja possível.
A gestão de risco é a razão apresentada. Em concreto, qual é a ameaça que foi detetada?
O medo que existe é que algum cliente destas entidades registadas tenha obtido os seus fundos de forma ilícita, normalmente relacionados com burlas ou crimes informáticos, sendo depois o banco responsável por ter acolhido esses proveitos no sistema bancário tradicional. Mas é exatamente por causa desse medo que hoje em dia os critérios de gestão de riscos de branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo aplicáveis a estes VASPs [Virtual Asset Service Providers] são tão ou mais rigorosos como os aplicáveis a outras entidades que interajam com a banca.
Um exemplo é o dado por uma das entidades bancárias, que alegou o risco de servir de veículo de evasão a sanções económicas por parte de nacionais russos no início da guerra com a Ucrânia para fechar a conta de uma das entidades. No entanto, as entidades registadas têm a mesma obrigação que os bancos de evitar esta utilização por parte dos seus clientes. No caso do serviço a entidades com ATMs de criptoativos este é um negócio intensivo de dinheiro, sendo que as entidades bancárias não se têm dado ao trabalho de verificar se o registo dos seus clientes nas ATMs está a corresponder às exigências do regulador ou não.
“Devido à natureza pública das blockchains, já é finalmente aceite por várias agências policiais ou governamentais, como a Europol, o FBI, e até o IRS americano, que é mais fácil detetar e combater criminosos que utilizem criptoativos do que outras fontes financeiras alternativas”
Mais, devido à natureza pública das blockchains, já é finalmente aceite por várias agências policiais ou governamentais líderes nas suas áreas, como a Europol, o FBI, e até o IRS americano [Internal Revenue Service], que é mais fácil detetar e combater criminosos que utilizem criptoativos do que outras fontes financeiras alternativas. Um representante do governo americano inclusive já afirmou que investigações de crimes financeiros tradicionais começam depois de já se saber quem é o criminoso, tentando provar o crime seguindo o dinheiro. Mas, graças à blockchain, o crime é logo provado, bastando seguir o rasto do dinheiro para demonstrar quem é o criminoso – algo que tem acontecido, mais cedo ou mais tarde, quando os suspeitos necessitem de fazer a ponte do mundo digital para o mundo real caso queiram utilizar os fundos de origem criminosa.
Também importa notar que o último relatório da Chainalysis, a empresa líder em análise forense em blockchain e em fornecimento de software para a gestão dos riscos em causa, demonstra que em 2021 apenas 0,15% de todas as transações de criptoativos representavam fundos de origem criminosa, a maior parte destes respeitantes a burlas e a roubos – o que também acontecem no sistema bancário tradicional, quer através do MBWay, como através de SMSs ou ataques informáticos.
“Em 2021 apenas 0,15% de todas as transações de criptoativos representavam fundos de origem criminosa, a maior parte destes respeitantes a burlas e a roubos – o que também acontecem no sistema bancário tradicional”
Ou seja, no fundo trata-se de aversão ou demora na adaptação à inovação da parte dos departamentos de gestão de risco destes bancos, que não querem investir recursos – quer em licenças de software específico usado por bancos e autoridades policiais em todo o mundo e que permitem controlar os novos riscos dos ativos virtuais com relativa facilidade, como em funcionários dedicados a utilizar essas ferramentas e a monitorizar mais ativamente a indústria dos criptoativos. Para além disso, ao mínimo sinal de um cliente defraudado com criptoativos adquiridos numa destas entidades, o banco toma a ação drástica de fecho de relação comercial, não tendo em conta que o cliente investiu por sua conta em risco e em nada tem a ver com essa mesma entidade.
Esta decisão de vários bancos compromete a credibilidade no mercado nacional das criptomoedas
Naturalmente. É um enorme contratempo no trabalho desenvolvido pela indústria. Aliás, as três grandes associações de blockchain e cripto ativos em Portugal têm tentado alertar os bancos para isto, tendo organizado – em conjunto com a Chainalysis – uma conferência em junho passado sobre este tema. Infelizmente, poucos bancos aceitaram o nosso convite. E mesmo o Millennium BCP, um banco com uma atitude assumidamente amigável face aos cripto ativos, e com intervenções muito otimistas durante o evento, tem sido responsável pelo encerramento de algumas contas sem justificação aparente. Torna-se quase uma vaidade abrir uma entidade em Portugal e registá-la junto do BdP quando depois a relação bancária tem que ser mantida no estrangeiro. Poderia estar a aproveitar-se o ecossistema de meios de pagamento nacionais e de transferências imediatas no país, que assim ficam bastante limitados.
Que impacto estas decisões poderão ter no desenvolvimento das criptomoedas?
Felizmente pouco. A cripto economia é global e não vão ser as dificuldades bancárias num cantinho à beira-mar plantado que vão afetar o desenvolvimento de alguma blockchain e respetiva criptomoeda. Mas vai impedir ou atrasar o desenvolvimento de uma indústria em Portugal que já tem atraído um nível muito significativo de talento e capital estrangeiro. Este não está só concentrado em Lisboa e tem permitido o nascimento de várias startups e organizações ligadas aos verticais em torno da tecnologia blockchain e aos criptoativos em parceria com talento nacional, o que é o ingrediente-chave para possibilitar que o nosso país tenha uma hipótese séria de vir a ter um hub tecnológico equivalente àquele que a Califórnia cultivou no século passado.
Para dar resposta às críticas e reservas apontadas pelos bancos, que resposta terão de dar as plataformas de criptomoedas?
As plataformas em causa já deram essas respostas ao Banco de Portugal, e sabemos que partilharam os seus processos de compliance com os bancos também. O que falta é os bancos adaptarem-se e investirem minimamente para acompanharem esta indústria emergente. E estamos a falar de valores irrisórios para qualquer banco português. Para além disso, terem cuidados redobrados na aquisição de clientes e que estes tenham o mínimo de conhecimento no que estão a adquirir nas suas plataformas. Isto poderá levar a processos de KYC [Know Your Customer] mais morosos, mas com maiores certezas de filtragem de clientes indesejados.
As contas podem voltar a ser reabertas?
Neste momento não. O que, entretanto, tem vindo a acontecer é que outros bancos europeus estão a servir estes VASPs e os seus clientes em Portugal, mais outro motivo para os bancos portugueses não perderem este negócio.
Uma coisa é certa, o primeiro banco português a ir mais longe na temática da transformação digital, e adotar estas ferramentas de gestão de riscos associados às transferências ocorridas em blockchain, será facilmente abraçado pela indústria. E tem aqui uma oportunidade de ouro (digital) para crescer substancialmente. É que não estamos só a falar dos serviços bancários básicos que uma empresa precisa, mas de todo o leque de serviços acessórios que pode prestar ao resto da comunidade, bem como de financiamento a estas organizações – algumas delas com potencial de virem a ser startups com avaliações na escala dos milhares de milhões e próximos unicórnios.
“O que, entretanto, tem vindo a acontecer é que outros bancos europeus estão a servir estes VASPs e os seus clientes em Portugal”
O que é que se perspetiva que venha agora a suceder?
Em terra de cego quem tem olho é rei. O Bison Bank já tem binóculos, mas está mais focado em clientes institucionais e não no cliente a retalho. Portanto, o próximo banco a perceber o quão fácil e pouco dispendioso é aproveitar este mercado vai resolver este problema e trazer o resto do sistema bancário tradicional atrás. Como Hemingway dizia: gradualmente, e depois repentinamente. Ou se preferir citar Pessoa, primeiro estranha-se, depois entranha-se.
“O primeiro banco português a ir mais longe na temática da transformação digital será facilmente abraçado pela indústria. E tem aqui uma oportunidade de ouro (digital) para crescer”
É de esperar que mais lojas de criptoativos possam vir a ter também as suas contas encerradas?
Sem dúvida, o medo contagia. Embora estas situações já tenham ocorrido com todas as entidades registadas no Banco de Portugal, e apenas uma delas mantenha relações bancárias no país, não está livre de algo semelhante ocorrer com um dos parceiros atuais, e entidades a procurarem registo futuro irão sentir as mesmas dificuldades em encontrar parceiros bancários de longa duração.