No momento em que se tornou a protagonista da maior transferência da história do futebol feminino português, e com apenas 21 anos, Francisca Nazareth – Kika para todos a esta altura do campeonato – levava na mala um currículo recheado de sucessos.
Ao serviço do Benfica, venceu quatro campeonatos nacionais, um campeonato nacional da 2.ª divisão, duas Supertaças, quatro Taças da Liga e uma Taça de Portugal. Fez ainda parte do grupo que levou o Benfica pela primeira vez aos quartos-de-final da Liga dos Campeões. Com a seleção, as Navegadoras protagonizaram o melhor período da sua história, com as chegadas históricas ao Europeu e ao Mundial. A nível individual, houve ainda tempo para uma nomeação para o prémio Golden Girl ou o quinto lugar na lista das melhores marcadoras entre clube e seleção em 2023.
Seis épocas, 128 jogos oficiais, 100 vitórias e 82 golos depois, Kika foi do Benfica para o Barcelona por 500 mil euros, um dos valores mais altos da história da modalidade.
Em agosto do ano passado, a Ágata Filipa tornou-se a primeira portuguesa transferida para uma liga estrangeira por dinheiro. Apenas um ano depois, tu sais para a Liga F com a transferência mais cara em Portugal e uma das mais caras no mundo. O que é que este número (500 mil euros) significa para ti?
Em tom de desabafo, acho que traz mais responsabilidades negativas do que positivas. Pelo menos da forma como eu lido com este número, que é extraordinariamente grande e às vezes assusta. Por mais que eu seja feliz, e estou muito feliz, por mais que eu me queira esquecer desta parte dos dinheiros e só me queira focar na felicidade, às vezes estas coisas vêm ao de cima. E o dinheiro traz responsabilidade e inseguranças. E dou um exemplo muito básico: eu falho um passe – e isto são coisas que têm de ser trabalhadas – mas é uma pressão acrescida. Falho e em vez de pensar que a seguir tenho outro passe, penso: bolas, pagaram isso por mim e eu agora estou a fazer isto?
Se pagaram este valor para eu estar aqui, é porque acreditam, é porque eu tenho valor. E eu acredito, eu acredito que posso eventualmente valer isto. É o mundo do futebol, e por um lado ainda bem que as coisas estão a crescer e daqui para a frente muitas mais transferências serão feitas, mas é uma pressão acrescida. Eu também tenho de conseguir mudar esta minha forma de pensar, tenho de dar valor a mim própria, e isso é reconhecer a minha qualidade. Mas às vezes é muito estranho. Nós que estamos habituadas a ver as transferências do masculino, as transferências das melhores jogadoras do mundo, a Keira [Walsh] por exemplo, e do nada é comigo. É um bocadinho estranho de processar tanta informação e tantos números, e obviamente que isto impacta dentro e fora do campo.
O quão difícil foi tomar a decisão de sair daquele que sabemos que é o teu clube?
Foi a decisão mais fácil e a decisão mais difícil que já tive de tomar na minha vida. É tão simples quanto isto. O Barcelona é a melhor equipa do mundo no futebol feminino, eu tenho de me sentir realizada no sentido em que a melhor equipa do mundo me quer. A equipa onde jogam Alexias, Aitanas, Patris, quer-me. O meu pensamento na altura era: posso vir a treinar com as melhores jogadoras do mundo, com os melhores treinadores do mundo, posso evoluir diariamente e chegar a outro patamar. Porque a realidade também é que a Liga Espanhola e a Liga Portuguesa estão em patamares diferentes. Mas falando do Barcelona em si, está em outro patamar. Seguindo esta linha de pensamento, a decisão era fácil. Vou aprender, vou ser uma jogadora melhor, vou ser eventualmente uma pessoa melhor.
Depois tinha o Benfica, que continuo a ter, mas que foi uma decisão tramada e difícil. Foi uma fase tramada porque é sair de casa, é ainda mais difícil do que sair de casa dos pais e os meus pais não levam a mal eu dizer isto. Mas é ainda mais difícil porque quando eu voltar a casa, os pais estão lá e são os mesmos, ao Benfica se um dia voltar as pessoas não serão as mesmas. Nem que seja uma, já não é o mesmo. E é deixar para trás a casa que me fez crescer, que me acolheu desde o meu primeiro dia, o sítio onde eu mais aprendi, onde eu mais sorri, mais chorei, mais amizades fiz, mais sentimentos desenvolvi. É deixar para trás o motivo pelo qual estou agora no Barcelona.
Foi trabalho, eu sou uma pessoa muito sentimental e às vezes o profissional e o sentimental chocam um bocadinho. Aquilo que sou fora de campo, sou dentro de campo e por isso às vezes misturo os meus sentimentos. Foi um bocadinho difícil nesse sentido porque eu gosto muito do Benfica. Por um lado, pensava ‘quero ficar aqui para sempre’, mas por outro tinha o Barcelona atrás de mim. Neste caso ponho o profissional à frente do sentimental, até porque o sentimental ao longo do tempo vai crescendo e evoluindo. E eu estou feliz aqui. É diferente, contextos diferentes, ambientes diferentes, mas se quero ser uma jogadora melhor, acho que fiz a decisão certa.
Por mais que a Liga esteja a crescer, há coisas que ainda não mudaram, como o facto de não existir uma profissionalização. Sentias que para continuares a evoluir na tua carreira tinhas de sair da Liga Portuguesa?
Acho que são esses pequenos detalhes. Também não gosto de hipocrisias, não gosto de dizer que saí porque era muito desnivelado e o Benfica ganhava tudo. O Barcelona, dentro do campeonato, podemos comparar com o Benfica, porque foi facilidade, pelo menos até ao ano passado. Eu vou mais ao detalhe, se calhar. Isso diz muito, o facto de as equipas serem ou não profissionais, mas, por outro lado, acho que as coisas estão a ser bem feitas. E o futebol espanhol já tem mais anos, é um país maior, se calhar já olham para as coisas de outra forma, a adesão dos adeptos é diferente. No entanto, acho que a Federação tem feito um trabalho absurdo, no bom sentido da palavra. Nós às vezes temos a sensação de que estamos atrás, mas acho que não devemos dar um passo maior do que a perna. As coisas estão a ser bem feitas. O Porto, e parabéns, fez o que fez agora e tinham o quê? Uma semana de treino. Não é só estalar os dedos, ainda há um longo caminho pela frente, há coisas que têm de mudar, obviamente, mas as coisas estão a ser bem feitas e estamos no bom caminho.
E como é que está a ser acompanhar o Benfica do lado de fora?
É um sofrimento, nem sei o que diga. Eu antes sofria com o Benfica e sofria com a minha equipa e só com a minha equipa, agora sofro com o Barcelona e sofro com o Benfica. E sofro pelas amigas, colegas da equipa, treinadora. É um sofrimento bom, mas qualquer dia o meu coração não aguenta. Às vezes custa. Por mais que isto soe egoísta, este último jogo entre o Benfica e Sporting que eu vi, é estranho não estar ali. E quando digo ali, não é dentro de campo, é naquele ambiente, naquele dérbi. Mas pronto, o que interessa é que estou a acompanhar e assim será até um dia eventualmente regressar.
Que futebol encontraste em Espanha?
É outro nível. Lembro-me que no primeiro treino estava ‘onde é que eu me vim meter?’. Era de um lado para o outro, bola para aqui, bola para ali. No início, a Aitana, a Alexia, as que estão na seleção, estavam nos Jogos Olímpicos, então estivemos a treinar com as mais novas. É outro mundo. Eu sinto que em duas semanas experienciei coisas que nunca vi. E não digo que no Benfica não houvesse qualidade, porque há muita qualidade, mas, mais uma vez sem comparar, é outro mundo. É jogar com as melhores, é fácil jogar com elas, pensam todas da mesma forma. Por algum motivo são as melhores do mundo. A mim dá-me gosto ver dentro de campo e dá seguramente gosto a quem vê de fora o Barcelona jogar. É surreal.
Como é que está a correr a fase de adaptação?
É todo um processo, há dias bons e dias menos bons. Vim de um contexto muito familiar, o Benfica é casa e sempre será casa. De um dia para o outro vivo sozinha, não tenho, para já, amigas daquelas que se contam pelos dedos da mão. Tenho colegas de equipa que me têm recebido de uma forma extraordinária, mas não deixa de ser diferente. Está a ser uma adaptação mais difícil do que eu esperava, mas não por elas, talvez por mim.
Eu sou, e toda a gente sabe, muito extrovertida e muito à vontade. Se calhar aqui, por ser o Barcelona, encolho-me um bocadinho e ainda não estou tão aquela Kika que as pessoas conhecem. Mas, por outro lado, também sei que as coisas vão lá com o tempo, que não chego aqui e faço as parvoíces que fazia no Benfica. Fui recebida da melhor maneira possível, também tenho sorte de falar espanhol ou portunhol de uma forma que eles me percebam, o que torna as coisas um bocadinho mais fáceis. E também tenho a sorte, e isto foi uma coisa que a Alexia me disse há uns dias, não só de falar o mesmo idioma que elas fora de campo, mas também dentro de campo. Foi uma das coisas que mais me marcou desde que estou aqui. Tenho muito para aprender, obviamente, tenho muito para evoluir. Ainda sinto que dentro de campo, da mesma forma que fora, não estou a Kika. Tenho de ir atrás dessa Kika, que mais tarde ou mais cedo vai aparecer.
Quais são os objetivos que têm traçados para este ano?
Como equipa é o que tenho vindo a dizer há muito tempo, quando se está nos melhores clubes e nos mais altos níveis, a exigência é a maior. E o Barcelona ganhou tudo no ano passado, então este ano queremos voltar a ganhar tudo. A exigência é máxima, ganhar tudo o que for possível, jogar à Barcelona e ganhar. Objetivos individuais, estou aqui também para jogar, para ganhar, mas sobretudo para desenvolver as minhas capacidades, para aprender e também eventualmente para ensinar. E para me divertir, sobretudo para me divertir e para aproveitar porque oportunidades destas não surgem todos os dias.
“A bola nos nossos pés acaba por se tornar mais bonita”
O crescimento do futebol feminino português – e mundial – nos últimos anos é impossível de ignorar. Kika é a prova disso mesmo. Só que numa altura em que é ela o rosto da modalidade em Portugal, a jogadora não aceita que se esqueça todas aquelas que abriram caminho para que hoje fosse possível passar por ele.
A jogadora portuguesa nasce com a bola nos pés, mas ao longo do caminho o talento deixa de ser suficiente. É preciso a luta por melhores condições, a ginástica para conciliar o horário de treinos e jogos com mais um ou dois empregos, a matemática para que seja possível pagar as contas ao fim do mês sem que se desista do sonho, ou o sacrifício quando se vê obrigada a mudar de país para que a sua profissão seja apenas uma: o futebol.
Em que momento é que o futebol se tornou o teu objetivo a nível profissional?
O futebol surgiu de uma forma tão natural que acho que foi só há relativamente pouco tempo que eu pus na cabeça: Ok, se calhar isto é possível. Até aos dias de hoje, eu faço isto porque gosto. Depois o dinheiro claro que entra, não vou ser hipócrita, é claro que faz sentido, mas eu faço isto porque genuinamente gosto de jogar futebol. Eu acho que talvez quando assinei o primeiro contrato, nem foi o de formação, mas o primeiro contrato a sério, ou talvez depois da ida ao Europeu, da ida ao Mundial, é que as coisas começaram a cair. E mesmo assim só caem depois. Mesmo a assinatura com o Barça, às vezes eu ainda fico ‘wow, o que é que está a acontecer’. As coisas acabam por acontecer de uma forma completamente natural e rápida, às vezes eu nem tenho tempo para assimilar a dimensão e o patamar em que já estou.
Agora que já passou algum tempo daquilo que tem acontecido nos últimos anos no Benfica e seleção, o que é que tudo isto significa para ti e que importância achas que isto tem na evolução da modalidade em Portugal?
Vou começar por aquilo que isto tudo significa para mim. Não digo uma realização, mas é um privilégio poder partilhar a minha vertente profissional com aquilo que eu mais gosto de fazer na vida, que é jogar futebol. É surreal às vezes. Sinto-me mesmo uma privilegiada de poder partilhar campo com as minhas melhores amigas, com as melhores jogadoras do mundo. Já joguei contra a Morgan, que é a cara do futebol norte-americano, por exemplo, neste momento jogo com uma Aitana ou com uma Alexia, que são referências para o mundo inteiro. É um privilégio.
E falo agora do Benfica, aquilo que o Benfica fez na Liga dos Campeões é aquilo a que eu chamo de valorização do futebol feminino português. A minha contratação para o Barça sou eu, obviamente, sou eu que dou a cara e obviamente tenho mérito, mas é a valorização da mulher portuguesa no futebol no geral. A vinda da Iara do Sporting para o Barcelona, também é importante dizer isso, não sou só eu, é a valorização da mulher portuguesa no desporto feminino. Acho que é mais um passo de todo o trabalho que as gerações, sobretudo as gerações passadas, começaram a fazer. E eu gosto sempre de dizer isto, porque sou eu neste momento e sou desta geração que aparece mais, mas às vezes as pessoas esquecem-se de todo o trabalho que houve por trás, de todo o trabalho que houve da Sílvia Rebelo, a Ana Borges, a Cláudia Neto, a Carla Couto. É tornar aquilo que era uma coisa que não se falava, que era um não assunto em Portugal e também no mundo, numa capa de revista. É a realização e a valorização, a felicidade colocada em prática.
Como é que defines a jogadora portuguesa?
Não gosto de comparar, mas fazendo aqui um bocadinho uma comparação, os países nórdicos se calhar apostam muito mais na parte física e, não estou a dizer que nos países nórdicos não haja este talento, mas nós nascemos com este talento, com esta vaidade, com esta beleza e o futebol nos nossos pés. A bola nos nossos pés acaba por se tornar mais bonita. Mas acho que sobretudo é a forma como nós lidamos com o futebol em si e com tudo o que se passa à sua volta. Jogamos com um sorriso na cara, acabamos um jogo e fazemos questão de agradecer às pessoas que nos apoiam. Somos jogadoras e não vemos só o futebol, vemos o mundo todo que existe à volta do futebol. Às vezes as pessoas veem só o produto final e eu acho que nós portugueses somos um povo mais sentimental. Falo por mim e pelas minhas amigas com quem tinha e tenho o privilégio de partilhar o campo, não é só o profissional e vamos para casa, nós sentimos as coisas.
O que é que gostavas que os adeptos de futebol entendessem sobre o futebol feminino em Portugal?
Seja em que contexto for, gostávamos que toda a gente nos entendesse e achamos que é fácil que as pessoas nos percebam, adorávamos que toda a gente pensasse da mesma forma. No futebol feminino ainda somos muito criticadas, julgadas e desvalorizadas porque falhamos um passe fácil, falhamos um remate de baliza aberta. Isso acontece em todo lado, errar é humano, mas nós por sermos mulheres às vezes somos ainda mais crucificadas por isso. Há uma coisa que eu gostava que as pessoas percebessem, que acho que já tem vindo a mudar, o nosso futebol, e ainda bem, nunca vai ser como o futebol masculino. Por causa de uma coisa que até à data ainda não se pode fazer nada em relação a isso: a fisionomia, o nosso corpo. Eles são mais rápidos, são mais fortes e essa é a realidade. Nós sabemos jogar um bom futebol. Se calhar não corro a 35 quilómetros por hora, mas sei fazer uma roleta, sei fazer um cabrito, sabemos fazer golos monumentais, sabemo-nos ouvir dentro de campo. A parte prática nós temos, se calhar a parte física é um bocadinho diferente. E eu gostava que as pessoas percebessem isso.
E há outra coisa, e aqui falo por mim, eu quero muito que o futebol feminino continue a evoluir, mas não quero que o futebol feminino perca uma coisa que eu acho que dá mil a zero ao futebol masculino, que é a autenticidade, a rivalidade saudável, a genuinidade dentro de campo. Claro que quero um dia que as gerações futuras façam disto vida sem qualquer tipo de problema, sem qualquer tipo de luta, mas onde há dinheiro há mais pessoas envolvidas, há mais problemas envolvidos. E eu quero o melhor dos dois mundos. Quero que as pessoas percebam que o futebol feminino é diferente do futebol masculino, e ainda bem. Que esta evolução continue a acontecer, mas que o futebol feminino continue a dar uma lição moral ao futebol masculino. Talvez por sermos mais sentimentais, por haver mais relação, acho que vivemos o futebol de uma forma genuína e acho que isso é brutal. Gostava que lá fora as pessoas também percebessem isso, que o futebol não é só futebol, há mais coisas além de futebol.