Jéssica Silva foi jogar para os Estados Unidos pela primeira vez em 2021. Na altura, terminou contrato com o Lyon, em França, e assinou pelo Kansas City. Decorria o primeiro ano da presidência de Joe Biden, que levou os democratas à Casa Branca depois de derrotar o candidato republicano Donald Trump.
Quatro anos depois, a jogadora portuguesa regressou aos Estados Unidos. Desta vez, Jéssica rescindiu contrato com o Benfica e assinou pelo Gotham FC, equipa de New Jersey. Quando chegou, Biden ocupava o mesmo cargo, mas já se viviam os meses de campanha que antecederam as eleições do passado dia 5 de novembro. Donald Trump venceu as eleições e Jéssica sabe agora que vai continuar a viver e trabalhar num país governado pelos republicanos.
Antes do dia das eleições
Para Jéssica, é impossível descrever que país encontrou quando se mudou, nesta segunda vez, para os Estados Unidos. Decorria a fase de campanhas e a jogadora portuguesa dividia o seu tempo entre Nova Iorque e New Jersey, ao mesmo tempo que conciliava com algumas viagens pelo país. A noção de que há várias Américas dentro da América tornou-se clara.
“Os Estados Unidos são um país muito grande e eu acho que isso torna ainda mais difícil entender bem o contexto político aqui. É um país, mas parece que tem imensos países cá dentro, porque é um país bastante polarizado, o que torna as coisas muito complexas, as opiniões são muito diferentes entre os grupos”, conta Jéssica à Forbes.
Por outro lado, encontrou um ambiente no Gotham onde as coisas estão claras para todos: “Na minha equipa é tudo mais simples, porque temos conversas, falamos e acaba por ser tudo mais unânime. Se calhar porque somos mulheres e temos opiniões muito unânimes entre nós. Não há uma divisão de ideias ou de opiniões”.
Ao longo desta última semana, ainda antes de serem conhecidos os resultados, Jéssica notou um ambiente diferente. “Foi mais intenso”, confessa, realçando sentimentos como a ansiedade e o otimismo, ao mesmo tempo que todos eram conscientes de que podia acontecer o que mais tarde se veio a verificar.
“Acho que todas sabíamos que isto podia acontecer. Talvez pelo rumo das coisas, por tudo o que temos visto, por tudo aquilo que temos sentido. Tenho sentido que o mundo está mesmo virado ao contrário e aqui nos Estados Unidos ainda é mais evidente. É algo que me deixa bastante triste, este país tem uma influência tão grande para outros e esta é a imagem que acaba por ser passada para o resto do mundo. É mau porque acho que tem tudo para dar errado, para as coisas não correrem bem e é algo que me deixa bastante triste. Tem sido um bocadinho pesado”, diz.
A posição das jogadoras norte-americanas
“As jogadoras norte-americanas são jogadoras com a sua opinião, bastante ativistas em temas que marcam a nossa sociedade, podia falar de igualdade de género, direitos humanos, justiça racial. É algo que me deixa bastante feliz, o futebol feminino mete a democracia num espaço muito saudável e há liberdade para termos um posicionamento e uma opinião. Em Portugal é muito difícil um jogador tomar uma posição”, afirma.
Quando olhamos para o futebol feminino em particular, grandes avanços da modalidade foram dados graças à luta das jogadoras norte-americanas. E por isso não é de estranhar que durante umas eleições elas escolham estar envolvidas.
“Acho que as maiores preocupações delas, e que são minhas também, são os direitos reprodutivos, a igualdade de género, a igualdade racial, os direitos LGBT. Acho que são preocupações para todo o mundo e tenho muito receio do efeito dominó que isto vai ter nos outros países. Deixa-me um bocadinho apreensiva e triste. Mas resistimos e temos de resistir, temos de continuar a fazer o nosso, a falar, a ter a nossa opinião, a lutar. Acho que esse é o nosso papel, mais do que nunca”, defende a jogadora.
Influência do resultado
A nível pessoal, o peso deste resultado fez-se sentir no dia-a-dia de Jéssica. Numa altura em que estava a regressar de uma lesão e feliz por voltar a campo, depara-se com um resultado que não desejava.
“Estou a gerir ainda um bocadinho as emoções, mas ao mesmo tempo tento ir buscar inspiração à seleção norte-americana feminina, porque na verdade elas sempre lutaram pela igualdade e respeito e acabam por ser um reflexo de resistência e da força das mulheres”, diz.
Na noite das eleições ficou acordada até tarde para acompanhar os resultados e o que recorda do dia seguinte é a tensão que se fazia sentir no ar. “Quando cheguei à cidade desportiva no dia seguinte o ambiente estava mesmo muito pesado. Não havia música, só existia o silêncio antes da nossa reunião para o treino, onde geralmente planeamos e revemos os vídeos para preparar os jogos. Estavam todos os membros do staff e uma das chefes do staff transmitiu uma espécie de mensagem de apoio, dizer que era o momento para nos unirmos e que se precisássemos podíamos falar sobre o que estávamos a sentir. Foi visível a emoção dela, ela estava num pranto mas estava num pranto interno, estava à beira das lágrimas e só não se desfez ali porque tentou ser muito rápida. Foi um momento muito pesado e muito triste. Acho que ainda estamos todos a digerir isto”, conta.
América do futuro
O que é certo é que Jéssica Silva vai continuar a viver e trabalhar num país governado por Donald Trump, que venceu as eleições, e com políticas que vão contra aquilo que a jogadora defende ou consegue compreender. “Se por um lado as mulheres são super independentes e têm a liberdade de expressar as suas opiniões, por outro há sempre grandes barreiras, as mulheres continuam a enfrentar obstáculos do tamanho do mundo para chegarem a posições de liderança e, na verdade, para que realmente sejam reconhecidas. Não faz sentido, é muito controverso, porque eu aqui sinto mesmo que elas têm essa liberdade, a voz delas é ouvida, mas não é reconhecida”, conta.
E o que virá nos próximos tempos?
“Sabendo que o Trump vai assumir a presidência, há naturalmente uma incerteza de como será o ambiente, especialmente para nós mulheres e para quem acredita na democracia saudável. Isto vai ser um desafio ainda maior, mas acredito na minha força, na força das minhas colegas, na resiliência do grupo, é mais um momento em que precisamos de nos apoiar. Quem me conhece sabe que eu sou muito da opinião que as mulheres quando se juntam são capazes de fazer coisas maravilhosas e acho que este é o momento para nos unirmos e continuarmos a lutar pelos nossos direitos e pela nossa liberdade”, defende a jogadora.
Na base da empatia
A forma como Jéssica escolhe lidar com estas situações, as polarizações ou as opiniões mais extremas que lhe vão chegando, passa sempre pela empatia. “Para mim não se trata de uma posição partidária forte ou de um grande interesse político, sinceramente eu nem tenho, mas trata-se de sermos guiados pela empatia. Eu acho que não faz sentido vivermos no mundo a assobiar para o lado, muito menos por parte de um líder. Acho que um líder tem o dever de promover um ambiente mais justo e mais igualitário, acho que é essencial proteger as mulheres, proteger a liberdade das mulheres, defender as minorias. No fundo, assegurar os direitos humanos, assegurar que todas as vidas contam da mesma forma, que todas as pessoas valem o mesmo”, defende.
E esta acaba por ser uma mensagem sem cores políticas. Sim, Jéssica afirma que o governo de Trump está muito distante dos princípios e valores que defende e que o governo de Kamala Harris representava um compromisso mais claro, tendo em conta, novamente, os valores que para si são essenciais. Mas ao mesmo tempo está consciente de que a candidata democrata é vice-Presidente do governo de Joe Biden, que descreve como “um dos principais patrocinadores do genocídio que está a acontecer na Palestina”. Ou seja, no final, a mensagem de empatia acaba por ser enviada a qualquer que seja o líder.
“O mundo está completamente ao contrário, já não existe respeito pelos direitos humanos, é gritante e é o que mais me preocupa e me faz temer pelo futuro. E claramente que esta eleição me deixam ainda com mais medo. Tenho tanto medo daquilo que está por vir, mas vamos a isto. É resistir e continuar a lutar”, conclui a jogadora portuguesa.