Filipa Patão, treinadora do Benfica, é uma das integrantes da lista das 40 mulheres mais influentes do desporto em Portugal. Conheça a lista completa aqui.
Jogar ou treinar: O que é mais desafiante?
São os dois desafiantes, sem sombra de dúvidas. Agora, no jogar não temos de controlar tanto as coisas, só nos temos de controlar a nós, ao nosso trabalho e àquilo que temos de fazer. O treinar já envolve a gestão de diversas pessoas, departamentos, staff, jogadoras e nós próprias. Portanto, eu considero que é mais desafiante o treinar do que o jogar, mas claro não desvalorizando, obviamente, o jogar que também é um papel importante e de muita pressão nas jogadoras que o desempenham. Mas na minha ótica, tendo passado pelos dois, considero que o treinar é mais desafiante.
Que características são essenciais numa boa treinadora?
Na minha ótica transparência, sem sombra de dúvidas que é muito importante a jogadora considerar que tudo o que é dito do outro lado é de uma forma transparente, o que faz com que exista uma confiança muito grande no nosso trabalho e naquilo que passamos para a jogadora. Isso está aqui também um bocadinho colado à honestidade, podemos considerar a transparência e a honestidade características que acabam por estar muito fundidas. Uma forte liderança no que toca às nossas ideologias, às nossas crenças, àquilo que nós acreditamos, e isso às vezes é difícil porque o negativo, o insucesso, os momentos maus são os momentos em que mais desconfiamos do nosso processo, daquilo em que acreditamos e queremos passar. E eu acho que isso é muito importante no processo de liderança, é nós realmente sermos crentes, sermos líderes de nós próprios antes de querermos liderar alguém. Depois, claro que a competência, não há líderes e não há trabalhadores em qualquer área que se não tiverem competência consigam ir longe. Acrescentava se calhar mais uma, que tem sido o que me tem guiado ao longo do tempo tanto como jogadora quanto como treinadora, que é a paixão. A paixão por aquilo que fazemos. Se nós não amarmos realmente aquilo que fazemos é impossível querermos influenciar quem está à nossa volta a viver da forma que nós queremos aquilo que fazemos. Acho que isso é a melhor forma de influenciar quem está à nossa volta, passarmos essa paixão, passarmos o que sentimos pelo jogo, pelo treino, pelo nosso dia a dia.
Como foi receber, em 2024, a notícia da nomeação ao prémio de melhor treinador de futebol feminino do mundo?
Eu sou muito sincera, no momento em que recebi a notícia, tinha acabado de finalizar o primeiro jogo da ronda 1 da Liga dos Campeões e até estava ali um bocadinho aborrecida porque não gostei da segunda parte do jogo, porque eu vivo muito, eu sou muito intensa nas coisas, se não gosto mostro que não gosto porque sou ambiciosa e quero sempre melhor, e nessa altura estava extremamente chateada e a notícia passou-me um bocadinho ao lado. Eu já estava a pensar no próximo jogo, nas coisas que tínhamos de melhorar, no que tínhamos que fazer, e as pessoas estavam ali a dar-me os parabéns e eu ‘opá deixem-me em paz’ até porque eu sou uma pessoa que lida melhor com a critica do que com o elogio. Com o passar das horas, até foi mais no dia seguinte, é que comecei a cair realmente em mim, não no sentido da minha valorização pessoal, mas sim do que isso representava para o futebol feminino português. Eu, naquele momento, não sou mais do que uma representante de todo o trabalho de todas as atletas, de todos os staffs, de todos os treinadores, dirigentes, clubes. Eu fui simplesmente a porta-voz, e isso deixou-me muito feliz, de saber que já há uma valorização internacional para aquilo que é o trabalho que é feito em Portugal. Neste caso no Benfica, a treinadora do Benfica, mas que não trabalha sozinha, que acaba por ter um grupo de trabalho, um grupo de atletas que me consegue personificar dentro de campo, e depois também um conjunto de clubes, de treinadores e atletas que nos obrigam a ser melhores. Acaba por ser uma nomeação de todos nós.
E no seguimento disso mesmo, o que é que essa nomeação disse sobre aquilo que tem sido o percurso da Filipa, mas também o percurso do futebol feminino português para quem vê de fora?
Vou começar com o percurso do futebol feminino português. Diz que realmente há qualidade, que é possível dentro de Portugal não só olhar para os masculinos no que toca ao sucesso, mas também o feminino está a fazer esse percurso e isso é um ótimo indicador. Começarem a olhar para as equipas portuguesas como, primeiro, equipas muito complicadas, se calhar na Liga dos Campeões, equipas que procuram ir o mais longe possível. Só com mais clubes portugueses a estarem em momentos competitivos e de decisão internacionais é que nós continuamos a deixar a nossa marca. São sinais, são pequenos sinais que vão sendo dados ao longo do tempo e este foi mais um sinal que se deu ao mundo de que a atleta portuguesa tem qualidade, o campeonato português tem qualidade, os treinadores, sejam eles mulheres ou homens, têm qualidade e, portanto, estamos num bom caminho.
O que diz sobre a treinadora Filipa? Diz que, primeiro de tudo, trabalhei com pessoas que me valorizaram, que me fizeram crescer da melhor forma, e aí falo de pessoas como o professor António Fonte Santa, o meu mentor do futebol. Que estive rodeada das pessoas certas no que toca à aposta do Sport Lisboa e Benfica, que estive rodeada das melhores atletas e do melhor staff, da melhor equipa técnica, portanto, sou uma sortuda. E depois diz também que, ao longo do meu percurso, o futebol sempre fez parte de mim, sempre foi uma paixão. Aprendi com os erros, aprendi com as derrotas, aprendi com os momentos menos bons e isto é um bocadinho o que diz sobre a Filipa porque eu sempre tive a consciência que para um dia ganhar é preciso perder muitas vezes, para um dia se chegar lá é preciso ter a resiliência e a capacidade de perceber que nós temos que nos ir moldando, temos que ir crescendo com as contrariedades que acontecem, elas não acontecem por acaso, acontecem para nos tornar melhores. Tive a oportunidade de dizer na Gala das Campeãs Record BPI, e acho que isso é que sempre marcou a Filipa, as palavras do meu avô: luta não para ser igual a eles, mas sim para seres diferente. É isso que eu passo todos os dias a estas atletas, procurarem ser diferentes.
Se pudesse mudar alguma coisa no futebol feminino português ou no futebol feminino em geral, de hoje para amanhã, o que seria?
Eu tentaria mudar a ambição desmedida de queremos ser iguais a eles. Nós temos de ter a capacidade de perceber que temos que fazer o nosso próprio percurso e isso vai bater um bocadinho nas palavras que disse anteriormente: não temos que ser iguais, temos que ser nós. Temos as nossas valências, as nossas características diferentes, as nossas coisas boas, as nossas coisas más, mas temos de fazer o nosso caminho. E o nosso caminho, na minha opinião, é um caminho que já se perdeu há muito tempo no futebol masculino, que é a pureza do próprio jogo, do próprio espetáculo. Nós vemos famílias a deslocarem-se aos estádios para ver futebol praticado por mulheres, já não vemos isso no futebol masculino, ou vemos muito pouco. Portanto, isto tem aqui uma diferenciação ao nível do espetáculo e em relação a quem conseguimos chegar. Acho que essa é a parte que nós temos que começar a olhar, que é não queremos as mesmas coisas, não queremos os mesmos direitos, não queremos ser iguais. Se nós somos diferentes, então vamos fazer com que essas diferenças façam de nós especiais e melhores, porque também é possível, não temos que trilhar o mesmo caminho que foi trilhado desde os primórdios anos do futebol masculino, temos que traçar o nosso. E acho que quanto mais o fizermos, mais próximas vamos estar de ter sucesso e de ter reconhecimento social. Eu acho que isso é a nossa luta todos os dias e acho que o caminho está a ser feito. É não sairmos dele.
E como é que descreve o papel deste projeto Benfica na evolução do futebol feminino em Portugal?
Acho que está aos olhos de todos. É um papel, na minha opinião, muito, muito importante. Atenção, eu gosto de frisar isto, ninguém nos deve nada, mas também não podemos apagar a história que criámos. E o Benfica teve um papel muito importante. O Benfica foi a primeira equipa a aceder à fase de grupos da Liga dos Campeões, foi a primeira equipa a aceder aos quartos de final da Liga dos Campeões, recolheu pontos suficientes para que fosse possível ter duas equipas este ano e para o ano uma equipa a entrar diretamente. O percurso do Benfica, sem dúvida nenhuma, fala por si e obrigou todos os outros a crescer igualmente. Mas também temos outro lado, que é os outros também nos têm obrigado a crescer e isso é uma sintonia perfeita entre aquilo que o Benfica iniciou e começou a fazer e aquilo que os outros clubes começaram a acompanhar e a fazer também. E acho que só assim é que faz sentido. Quanto mais os outros estiverem melhores e a crescer, mais nos obrigam a ser melhores e a continuar a crescer se queremos continuar a ganhar. Felizmente, os outros clubes, as entidades, a Federação, têm tentado também acompanhar este crescimento de forma a conseguirmos todos juntos levar ainda mais o nosso futebol fora de portas.
E é tudo uma questão de investimento? É porque o investimento no Benfica é maior ou há outros fatores que fazem com que o sucesso aconteça?
Consecutivamente se fala do investimento do Benfica. Primeiro, ninguém sabe ao certo qual é o investimento do Benfica, e depois também não se sabe ao certo qual é o investimento dos outros clubes. Para mim não é só uma questão de investimento, é uma questão de projeto, de linha orientadora para todos desde a formação até à equipa A. Aquilo que tem sido feito em termos de aposta de departamentos a trabalhar diretamente com as atletas, infraestruturas, condições para que fosse possível a atleta crescer, desenvolver e chegar aos patamares, principalmente físicos, das atletas internacionais. Muitas das vezes era isso que observávamos que nos faltava. O Benfica teve visão no que toca a olhar para aquilo que eram os melhores exemplos lá fora, porque para mim não há problema de imitar uma visão com sucesso. Não temos que dizer ‘ah estamos a imitar os outros’. Nós temos que olhar para os clubes de sucesso no padrão internacional, perguntar, falar, questionar, refletir, debater para tentar perceber o que é que nos está a faltar para chegarmos lá e foi isso que nós fizemos. Procurámos saber o que é que se fazia no Barcelona, no Lyon, no Chelsea, e percebemos rapidamente para onde é que tínhamos de caminhar. Tínhamos de ter uma estrutura à volta do feminino muito idêntica ao que é feito no masculino. Departamentos de nutrição, departamentos de fisiologia, análise de vídeo, comunicação, psicologia, porque todas estas coisas juntas fazem com que a atleta esteja muito melhor preparada. E depois o resto da atleta tem. A jogadora portuguesa tem o futebol nas veias, o futebol corre no nosso sangue, só nos faltava ter condições e o Benfica promoveu essas condições a todos os níveis. Portanto, é mais do que um investimento, é um projeto, uma visão e uma linha condutora.
E quando vê uma jogadora portuguesa sua sair por 500 mil euros para uma das maiores equipas de futebol feminino o que é que sente como treinadora?
Tenho de me sentir orgulhosa, como é óbvio. Dela, de todas aquelas que saíram e de todas aquelas que continuam. Porque a verdade é que todas elas têm tido um crescimento gigante, todas elas têm desenvolvido ano após ano e todas elas são cobiçadas cada vez mais pelos clubes ditos de referência na Europa. Portanto, para nós só tem de ser um motivo de satisfação e orgulho. E tenho a certeza absoluta que as atletas que vão para fora, neste caso uma atleta em específico que vai para um campeão europeu, vão ter sucesso. E tenho a certeza também que aquelas que ficam cá vão continuar essa linha de sucesso, num outro contexto, mas irão continuar também essa linha. Portanto, enche-nos de orgulho e quer dizer que é sinal de um bom trabalho.
(Artigo completo na edição de dezembro/janeiro da Forbes Portugal)