Lembras-te da primeira vez que ouviste falar das ondas da Nazaré?
Tudo começou através do meu pai. Já há bastante tempo que ele anda envolvido no mundo das ondas grandes e dos resgates com motas de água. Aliás, até temos uma empresa que é a Jet Resgate Portugal, damos cursos e formações. Durante a minha infância toda vi o meu pai ou a vir para a Nazaré ou a ir para a Galiza para surfar ondas grandes. Foi mais ou menos essa a minha infância e lembro-me perfeitamente que a primeira vez que ouvi falar da Nazaré foi o meu pai. Foi uma sessão que estava tão grande que eles não conseguiram surfar na Praia do Norte e acabaram por surfar na Praia da Vila. De tanto vê-lo a fazer, acabei por ficar curioso e por começar a fazer o mesmo.
O que te levou a pensar que querias surfar estas ondas?
A primeira vez em que senti aquela adrenalina de ‘vou lá experimentar’ foi numa sessão em Peniche. O meu pai estava a fazer segurança, eu era para ter ficado numa outra mota de água que avariou à última da hora, por isso acabei por ficar com a prancha do meu pai no canal, a zona segura. Tinha uns 12 anos na altura, comecei a ver um amigo meu a fazer ondas, os outros a fazerem ondas, e pensei: ‘se eles conseguem eu também consigo’. Foi quando experimentei. Não apanhei nenhuma onda, só levei com ondas em cima, mas foi a primeira vez que tive aquela sensação de ‘ok, isto aqui pode ser qualquer coisa’.

Há outro lugar assim no mundo ou a Nazaré é única?
Ainda há muitos sítios do mundo por explorar em termos de ondas grandes, mas do que sabemos até hoje, a Nazaré é única. Não só por ser considerada a maior onda, todos os recordes mundiais até hoje foram na Nazaré, mas também porque é dos únicos sítios do mundo em que o público consegue estar tão perto da onda e ver a onda. Em todos os outros sítios para onde já viajei acaba por ser um bocado afastado, é difícil ver a onda tão bem. Nos dias grandes, quem está no farol até sente o farol meio que a tremer. O que temos aqui em Portugal, na Nazaré, é único. É considerada a onda mais recente porque só há mais ou menos 14 anos é que se começou a falar muito da Nazaré, quando as outras ondas todas como Mavericks, nos Estados Unidos, e Jaws, no Havaí, são ondas que já são surfadas há mais tempo.
Tu és de cá, de alguma forma sentes o fator casa quando estás a surfar na Praia do Norte?
Na minha primeira competição da WSL estava a fazer parceria com a Justine Dupont e na primeira onda do campeonato ela lesionou-se, partiu o pé e a nossa equipa ficou fora. Este ano no dia antes do campeonato lesionei-me a treinar, mas pensei que mesmo assim iria conseguir surfar. Infelizmente não consegui, no dia do campeonato estava com bastantes dores, depois ainda houve uma altura em que a conduzir para a Maya Gabeira perdemos o jet-ski e a minha lesão ficou ainda pior. De momento estou lesionado e não posso surfar, por isso acabei por nem ter oportunidade de surfar, só conduzi para a Maya e felizmente consegui levá-la à vitória. Mas é incrível estar dentro de água. Quando fazemos uma onda boa e o farol e a encosta estão cheios de gente, dentro de água só ouvimos gente a gritar e a bater palmas. Como foi o caso do dia 29 de outubro de 2020, que foi aquele swell histórico quando o Sebastian conseguiu o recorde mundial. Cada onda que fazíamos, seja qualquer surfista, só se ouviam gritos e aplausos. Acaba por dar uma energia e uma motivação extra.
Como é que estas ondas se formam na Nazaré?
Na Nazaré nós temos um canhão debaixo de água, que começa nas Berlengas. Basicamente as ondulações vêm a ganhar cada vez mais energia até aqui à Nazaré. Há uma altura em que a ondulação que vem de lá, que se propaga mais rápido, vai colidir com a ondulação normal, que é quando cria aquele efeito daqueles picos gigantes. Quando estão as condições perfeitas, temos esse fenómeno aqui na Nazaré. Daí ser um sítio único no mundo porque não são todos os sítios que têm um fenómeno destes que vem até terra.

Como é o teu processo de preparação?
Estamos o ano todo preparados e a preparar-nos. Quando não é altura de surf na Nazaré, é altura de surf no hemisfério sul. Nós surfistas de ondas grandes estamos sempre a viajar de sítio para sítio para surfar as maiores ondas do mundo. Aqui na Nazaré acaba por ser o sítio que eu tenho uma estrutura mais sólida porque sou daqui, tenho a minha base aqui, os meus jet-skis, as minhas pranchas. A preparação num dia de surf acaba por ser acordar cedo, fazer uns exercícios de respiração e de alongamento para ativar o corpo, ir ver o mar lá a cima ao farol. Algo que me faz muita confusão é entrar na água sem fazer o meu planeamento, o meu gerenciamento de risco, que é ir ver o mar, saber que a corrente está assim por isso se acontecer isto temos de fazer isto, ter atenção que hoje a direção do swell está mais desta forma.
É algo que te dá mais segurança?
Dá-me mais segurança. E também para escolher a prancha que vou levar. Num dia grande estar com uma prancha que não estamos tão à vontade é suficiente para começar a pensar ‘devia estar com outra prancha’. Mentalmente já faz a diferença e como não temos manobra de risco, é um desporto muito perigoso, temos de estar lá 100% mentalmente e não podemos estar indecisos ou inseguros. Tem de haver um gerenciamento de risco antes e obviamente que a experiência que tenho vindo a acumular ao longo dos anos também ajuda bastante para ter aquelas reações de última hora quando acontece alguma coisa.
A preparação mental é tão importante quanto a física?
Costumo dizer que está tudo relacionado, porque se estivermos bem fisicamente a nossa mente vai saber que estamos bem, que andamos a treinar, que nos andamos a esforçar para estar o mais preparados possível. Porque a verdade é que, a meu ver, ninguém no mundo está preparado a 100% para surfar ondas grandes. Estamos a falar da natureza e a natureza é uma força que ninguém consegue controlar. Nós andamos lá a surfar as ondas grandes, mas sabemos perfeitamente que a qualquer altura as coisas podem correr muito mal e é impossível alguém estar 100% preparado para a natureza quando decide que as coisas vão acontecer da maneira que nós menos esperamos e menos queremos. Sem dúvida alguma que a parte mental é mais importante que a parte física, mas está tudo relacionado. O mais importante é estar forte mentalmente e não entrar em pânico dentro de água, porque assim que uma pessoa entra em pânico é quando as coisas podem correr muito, muito mal.
E toda a gente sente medo. Achas que a diferença é que vocês conseguem lidar com o medo de outra forma?
O medo é uma coisa comum na vida de todas as pessoas. Há certas formas de lidar com o medo: ficar paralisado e sem saber o que fazer, que nós dentro de água dizemos que é entrar em pânico, ou aquele medo em que estamos com receio, mas mesmo assim vamos fazê-lo, é a sensação de sair da zona de conforto. Para mim, ondas grandes e surfar em sítios novos é sair da zona de conforto, para outras pessoas, não sei, fazer uma palestra para 100 pessoas já é sair da zona de conforto. A verdade é que a sensação de estar com medo, mas mesmo assim fazer aquilo que nos dá medo e resulta, a sensação de conquista é simplesmente incrível. Acontece a toda a gente ter medo e conseguir superar esse medo, como também já aconteceu pelo menos uma vez na vida a pessoa ter medo e simplesmente bloquear.

Essas sensações podem ser importantes? Ou seja, alguém que não sinta medo pode ter confiança a mais e ser um pouco inconsequente lá dentro?
Sem dúvida que o fator medo é importante para nós surfarmos ondas grandes. É impossível não ter medo daquelas ondas gigantes quando as vemos, é impossível. E a verdade é que o fator medo é uma coisa que nos ajuda bastante porque nos deixa mais atentos, mais preocupados com aquilo que pode correr mal. Quando estamos mais preocupados com aquilo que pode correr mal, vacilamos menos em pequenos erros, em pequenos detalhes.
E tem-se noção de tudo isto com apenas 12 anos?
Quando se tem 12 anos não se sente nada disso. Dos 12 aos meus 16 anos, foi aquela altura em que na minha cabeça era: eles conseguem, eu consigo, se eles fazem, eu faço. Só aos 16 anos é que começou a ser um bocado diferente. ‘Ok, tenho de ter atenção porque posso-me lesionar a sério, pode acontecer isto ou aquilo, posso meter a minha equipa em risco’. Porque também foi aos 16 anos que decidi levar o surf de ondas grandes a sério e foi quando me comecei a dedicar mais aos treinos fisicamente, a ter acompanhamento psicológico, foi nessa altura que me comecei a aperceber que isto não é só ‘eles conseguem, eu consigo’.
Há um vídeo teu em que dizes que vocês não são super-heróis, são apenas um pouco loucos. Quanta loucura é necessária e o que é que achas que leva as pessoas a olhar para vocês como heróis?
As ondas que surfamos são surreais, são ondas gigantes e muitas vezes temos wipeouts, que é quando caímos na onda, demasiado violentos e acabamos por sobreviver e voltamos à mesma situação. É por isso que as pessoas devem olhar para nós e dizer ‘não, estas pessoas não são humanas’. Mas a verdade é que nós não somos super-heróis, somos pessoas normais, um bocado loucas e que gostamos de adrenalina. Nem é a loucura, é a adrenalina. A adrenalina que nos dá sair da zona de conforto, descer uma onda daquelas, é surreal. É uma descarga tão grande, quando estamos lá em cima a adrenalina é imensa e quando saímos da água é uma quebra tão grande. Quando acabam as sessões, na maior parte das vezes, adormeço. Sento-me um bocado no sofá a descansar e quando dou por mim acordo uma hora depois.
Quando estás no topo da onda o que te passa pela cabeça?
Não consigo responder porque não me consigo lembrar daquilo que o meu cérebro pensa num momento desses. Estamos tão concentrados no momento, tão focados, e usamos tanta energia naqueles 5/10 segundos, que depois não me consigo lembrar o que é que eu penso durante a onda ou antes de começar a onda. É um bocado estranho, mas é assim que funciona pelo menos para mim. É difícil lembrar-me.

Durante o Big Wave Challenge o teu jet-ski virou. Como é que se lida com essas situações?
Fun fact, no dia antes nós tivemos uma reunião aqui no meu armazém para definir tudo o que poderíamos fazer se acontecesse isto ou aquilo. Há um vídeo que eu partilhei em que eu digo: Talvez o melhor plano, se por acaso perdermos o jet-ski, seja deixar o jet-ski ir para a areia e irmos diretos para o outro, para não perder tempo na competição. Nós falámos sobre isso. Assim que o jet-ski virou eu pensei ‘ok, nós temos um plano para isto’. Mas ao mesmo tempo são os meus jet-skis novinhos em folha, de um novo patrocínio da Sea-Doo, eu fiquei a olhar para o jet-ski e a pensar que talvez o consiga resgatar. Fui pedir para me deixarem no jet-ski, tentei virá-lo, não consegui, saltei do jet-ski e assim que vi que já estava muito perto da areia pensei ‘já não há nada que eu possa fazer’. Arranquei direto para ao pé da Maya, o meu pai também nos deu o jet-ski que ele tinha, ele estava a fazer segurança, e foi ao porto de abrigo buscar outro. E a verdade é que por termos tudo planeado em menos de dois minutos, talvez três minutos, a Maya já estava pronta para apanhar outra onda. Foi o que eu falei sobre o gerenciamento de risco, ter tudo estudado.
Os acidentes influenciam de alguma forma os próximos meses, tornam mais difícil regressar ao mar?
Depende um bocado da situação. Se for uma situação muito feia, agressiva, sem dúvida que custa voltar a entrar na água e passar pela mesma situação. A situação que eu tive acabou por não ser nada de outro mundo. Quer dizer, fui engolido por uma onda com o jet-ski, é sempre preocupante, mas acabou por não ser muito agressivo. Infelizmente eu lesionei-me, foi o mais agressivo, mas para mim a parte mais difícil mesmo foi a parte mental, a parte de aceitar que tinha perdido outra vez a oportunidade de competir no campeonato mundial de ondas grandes, no sítio de onde eu sou. Isso foi a parte mais difícil de aceitar, mas depois a Maya ganhou, meio que ajudou a aliviar um bocado aquela tristeza de não competir mais um ano. O mais difícil agora na lesão é a parte mental, querer surfar e não poder, a minha equipa ir para dentro de água e eu não poder ir com eles. É sem dúvida a parte mais difícil, conseguir aceitar isso mentalmente.
Como olhas para a progressão do surf de ondas grandes na Nazaré?
Falando de surf mesmo, a abordagem que as pessoas estão a fazer ao surf de ondas grandes, a Nazaré é o melhor centro de treinos para evoluir no surf de ondas grandes de tow-in, que é quando é a mota de água que nos põe nas ondas. É um dos sítios mais consistentes que eu alguma vez vi na minha vida para surfar ondas grandes. Todos os meses, quase todas as semanas temos no mínimo uma sessão de treino, e são poucos os sítios que funcionam assim. O surf de ondas grandes tem ficado cada vez mais famoso e hoje em dia a Nazaré está cheia os 12 meses do ano. Antigamente era mais na altura do verão, devido ao turismo religioso, mas hoje em dia vêm pessoas do mundo inteiro, em qualquer altura do ano, para verem a famosa onda grande da Praia do Norte.
A onda de 30 metros já foi surfada?
A medição das ondas é algo muito complexo e difícil. Eu próprio em 2020 tentei medir uma onda minha, surfada no mesmo dia que o Sebastian ganhou o recorde. A onda foi medida pelo professor Miguel Moreira, da FMH, com 30,9 metros. Só que é isso, a medição é uma coisa muito complexa, não há uma organização oficial a fazer a medição de todas as ondas. Umas pessoas medem aqui, outras no Brasil, outras vão medir nos EUA. Mas sem dúvida alguma que já foram surfadas ondas maiores do que aquelas do recorde do Sebastian, só que na altura não decidiram tentar andar com isso para a frente, digo eu. Se a onda de 30 metros já foi surfada? É uma pergunta bastante difícil de responder. Já foram surfadas ondas demasiado grandes, mesmo, e não se sabe ao certo o tamanho.
Porque é que a dele foi um recorde?
A dele foi um recorde porque a onda em si era gigante, foi surfada no crítico e foi através da WSL, que está relacionada com o Guinness. Ou seja, ele ganhou a onda do ano e ao mesmo tempo, por ter sido uma das melhores ondas de sempre até hoje, ganhou também o recorde do Guinness.
Falta uma entidade oficial?
Sim. E que fossem divulgados os estudos que foram feitos para medir a onda, que é algo que não é feito. Foi só dito que a onda do Sebastian tinha 26 ponto qualquer coisa, mas não se sabe como se chegou lá. É interessante para qualquer pessoa, para pessoas leigas, para pessoas que queiram só perceber como funciona e para nós surfistas que vivemos disto, perceber como as medições são feitas e não só saber que a onda tem este tamanho.
(Artigo completo na edição de abril/maio da FORBES, já nas bancas)
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