Filha de pais portugueses, nasceu na Guiné-Bissau, país no qual viveu até aos sete anos. Apesar de ser ainda uma criança quando regressou a Portugal, as boas memórias daquele período mantêm-se até hoje. Ana Paula Martins, 58 anos, que foi até recentemente presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, será agora a nova Ministra da Saúde do Governo de Luís Montenegro.
É uma mulher de causas e de ideologias: acredita que a política deve ser exercida por todos os cidadãos, pois, num sentido lato, tudo o que fazemos é política, e foi a pensar no bem comum que acabou por se ligar ao mundo da política partidária. Empreendedora, mulher de carreira na área da saúde, mais concretamente na área farmacêutica, esteve como Bastonária da Ordem dos Farmacêuticos durante seis anos, tendo sido apenas a segunda mulher a conduzir os destinos daquela organização profissional durante as mais de cinco décadas da sua existência.
“Para mim, as duas grandes transformações necessárias são a transformação digital e a transformação da política de Recursos Humanos”, diz Ana Paula Martins.
Ana Paula Martins recebeu a FORBES, há uns meses, no quarto piso do Hospital Santa Maria, onde se encontra a área reservada à administração, quando ainda era presidente daquela instituição e retomamos aqui algumas partes desta entrevista. Confessou, na altura, que entrou na política para ter voz ativa e participar da mudança. Foi vice-presidente do PSD, a convite de Rui Rio, e afirma que aceitou o desafio para assim contribuir para a discussão de ideias no país. Ao nível da saúde acredita que as reformas têm de passar por ter cada vez mais uma cultura de serviço, de perceber que há transformações na área digital, como a telemedicina, atransformação da aproximação com o cidadão, através de aplicações, dos sites. “Para mim, as duas grandes transformações necessárias são a transformação digital e a transformação da política de Recursos Humanos. Claro que há mais: há a transformação que temos de fazer ao nível das infraestruturas, a transformação que temos de fazer na área ambiental e de sustentabilidade, a transformação que temos de fazer nos modelos de financiamento, a aproximação que temos de fazer entre público, privado e social. Tudo isso são reformas importantes”, disse à FORBES.
Acredita ainda que as parcerias Público-Privadas, as chamadas PPP, são um importante processo de aprendizagem e transformação. “Lamento que as PPP tenham tido uma discussão tão pouco clara, pois discutimos muito sobre as PPP mas discutimos mais sobre as questões de ser público ou privado e menos sobre o que esta parceria pode resultar melhor num trabalho conjunto. Porque houve algumas que correram muito bem, outras eventualmente que podiam ser melhoradas, mas eram aprendizagens importantes e que aquilo que será preciso corrigir, corrigir-se-ia”, afirmou. Diz ainda que podemos ter acabado com as PPP mas jamais acabaremos com o trabalho com o setor privado e com o setor social, em todo o mundo. “Na Europa, qual é o país que tem um sistema em que toda a resposta seja pública? Nem um. Nem nós, há 40 anos quando António Arnaut e com com ele trabalhou, na construção do SNS”, disse na altura.
Os primeiros anos na Guiné-Bissau
A sua ligação à área farmacêutica vem das gerações anteriores. O seu avô paterno tinha farmácias em Lisboa e acabou por influenciar o filho, pai de Ana Paula, a seguir este caminho, ainda que o seu sonho fosse a medicina. Acabou por exercer a profissão, primeiro em Angola, mais tarde na Guiné Bissau. “O meu pai era um homem de África. Fez a licenciatura em Coimbra e partiu para Angola, onde constituiu a sua primeira família – eu sou fruto de uma segunda família”, revela. Em Bissau, além de ser farmacêutico no hospital local, trabalhava ainda na direção técnica num laboratório de importação de medicamentos e dava aulas de química no liceu. “Naquela altura havia tempo para tudo: almoçava-se em casa, dormia-se a sesta, tomava-se banho à chuva. Stress era uma palavra desconhecida. Havia muita liberdade e tudo isto marcou a minha infância”, relembra.
A mãe era professora na escola primária, apesar de não ser esta a sua formação de base – tinha frequentado o curso de História e mais tarde de Gestão de Empresas, – mas como explica, “em África, as pessoas faziam o que era necessário fazer, e a minha mãe encontrou uma colocação como professora primária e adaptou-se a essa função”. Frequentou a escola pública, onde a sua mãe dava aulas, e tem memórias dos seus colegas de escola, nem sempre boas, pois, por vezes, “penalizavam-na” por ser filha da professora que lhes dava os castigos. “Na altura, fazia queixa e o meu pai era duro comigo. Dizia: tens de te organizar. Como era mais velho do que a minha mãe – já tinha filhos adultos do primeiro casamento – talvez achasse que não ia proteger-me para sempre e que eu precisava aprender a defender-me sozinha”. Emocionada, fala do pai que partiu cedo demais, uns meses depois de regressarem a Portugal, e da falta que sempre lhe fez. Única filha deste casamento, e apesar de ter família em Portugal que a recebeu aquando da revolução, sente que os desafios foram muitos e a adaptação nem sempre foi fácil. “O contexto do regresso foi difícil, mas as pessoas que nascem em África têm outra apetência para o risco e enfrentam as situações”, recorda.
Desde criança que queria seguir medicina
Também ela, tal como o pai, queria entrar em medicina, e já em criança falava em ser médica pediatra – talvez porque via o sofrimento das crianças e dos pais que procuravam o seu na farmácia, para que criasse soluções para as suas maleitas. Por duas décimas não entrou no curso e acabou por seguir Ciências da Farmácia, área na qual se encaixou perfeitamente e já não quis mudar. “Em Angola, antes de eu nascer, o meu pai fez muito trabalho relacionado com plantas medicinais, de síntese química, e tinha muita capacidade de manipular e produzir medicamentos artesanais. Herdei os livrinhos dele, onde escrevia as fórmulas magistrais e a adaptação àquilo que eram as matérias-primas que tinha disponíveis”, revela.
Assim, acabou por construir a sua carreira na área farmacêutica: completou a licenciatura, fez um mestrado em Epidemiologia, e um doutoramento em Farmácia Clínica e foi professora na Faculdade de Farmácia de Lisboa. Manteve-se, ao longo dos anos, bastante ativa no associativismo, esteve à frente da Ordem dos Farmacêuticos, e foi até vice-presidente do Partido Social Democrata (PSD), no qual é filiada. Quando, em 2022, recebeu o convite para o centro hospitalar estava ligada a uma empresa farmacêutica, mas aceitou o novo desafio porque acredita que pode fazer a diferença na área da saúde pública. Casada, mãe de dois filhos, um rapaz e uma rapariga, entende que as mulheres da sua geração tiveram de trabalhar mais para crescer na carreira porque mantiveram o seu papel de esposas e mãe, o que já não acontecerá com as novas gerações. Ainda assim, não sentiu grande barreiras na área profissional, na qual as mulheres são predominantes. Ser mãe foi a melhor obra da sua vida e não se arrepende do caminho que escolheu. Adora animais, anseia voltar a África e conhecer o Japão.