Em teoria, depois do verão de 2023, as coisas seriam diferentes para o futebol feminino. Depois do sucesso que foi o Mundial, jogado na Austrália e Nova Zelândia, o mundo iria continuar a surfar essa onda de reconhecimento, atenção e interesse. Mas foi mesmo assim?
Mary Earps, guarda-redes inglesa, foi recentemente distinguida pela BBC como a personalidade do ano na categoria de desporto, numa altura em que a jornalista espanhola Sandra Riquelme partilhou nas redes sociais que “o impacto que provocou a conquista do Europeu em Inglaterra é inversamente proporcional ao que está a ter o Mundial em Espanha”. A Eslovénia chegou a acordo com a Federação e garantiu a igualdade salarial e de condições entre as equipas feminina e masculina, mas as jogadoras do Canadá ainda não chegaram ao acordo que desejavam, assim como as de muitas outras nacionalidades. No campo ficou provado que o domínio absoluto da seleção dos Estados Unidos já não é uma realidade, mas muitas das jogadoras que defrontaram as quatro vezes campeãs mundiais não jogam numa liga profissional. Portugal incluído.
Muitos acreditavam que haveria um antes e um depois do Mundial 2023, mas já ficou claro que a mudança não foi assim tão radical. E em Portugal?
Visibilidade
Portugal marcou presença na fase final de um Mundial pela primeira vez na sua história e com isso conquistou uma série de outros momentos históricos: o primeiro golo ou a primeira vitória no mesmo palco. Com as atenções todas voltadas para a equipa durante o torneio, o futebol português viu acontecer, em alguns aspetos, a mudança que tanto esperava.
“O futebol feminino em Portugal ganhou uma dimensão incrível, as pessoas começaram a reconhecer mais as jogadoras, a apoiar muito mais. Houve muita gente que começou a ver futebol feminino aí, começou a perceber que existe. Em termos de visibilidade e exposição, melhorou muito. Há de facto um antes e depois”, conta Matilde Fidalgo, jogadora do Famalicão, à Forbes Portugal.
Raquel Sampaio, fundadora da Teammate Football Management, sublinha o mesmo: “A exposição aumentou substancialmente, há mais comunicação, mais marketing, mais audiências, mais espetadores, mais espaço nos jornais, mais respeito, mais interesse”.
Condições
Ao mesmo tempo, permanece aquele que já era o crescimento que vinha a acontecer na modalidade mesmo antes do Mundial 2023. Ou seja, se a comparação for feita num intervalo de anos, as condições melhoraram, mas olhando apenas para os últimos meses, os problemas que já existiam antes do Mundial continuam a existir atualmente. “Em termos do dia-a-dia das jogadoras, condições, não, não acho que tenha havido um salto assim tão grande porque isso já se começava a sentir. O crescimento sente-se, mas sente-se o mesmo que se tem sentido nos últimos anos”, diz Matilde.
A qualidade dos campos, sintéticos na sua maioria, a ausência de equipas médicas em alguns clubes ou a falta de condições nos balneários são alguns dos pontos que diversas jogadoras foram mencionando ao longo do tempo. Tudo coisas que vão interferir na qualidade do jogo.
“Há clubes que oferecem ótimas condições de trabalho e desenvolvimento, mas outros que ainda estão muito aquém, que nem sequer atingem os mínimos. Há condições que têm mesmo de existir: psicólogos, preparadores físicos, nutricionistas, analistas, etc. Todos estes serviços são preciosos para a evolução da jogadora. Não faz sentido, em 2023, e na fase de crescimento em que estamos, que existam cada vez mais lesões de ligamentos (joelhos) por haver atletas que alternam o treino entre relvados sintéticos e naturais. Mesmo a questão das botas tem de ser revista. Na maioria dos casos, como sabemos, as botas existentes foram pensadas para homens. É urgente que também isto seja alterado”, diz Raquel.
Mercado de Transferências
Entre o Mundial e o início da nova época, houve tempo para o mercado de transferências. Também aí existia alguma expetativa para ver o que poderia mudar depois do torneio. Quem esperava uma valorização significativa, ficou um pouco desiludido.
“‘Mexeu’ um pouco, é verdade, mas foi isso mesmo: pouco. O sinal mais forte foi precisamente o facto de termos assistido ao início de um novo paradigma, com os clubes a alterarem o comportamento que existia, que era basicamente deixar as jogadoras terminar contrato para se transferirem sem qualquer valor associado. Isso já mudou e, agora, estamos na fase em que já se pagam valores de transferência para jogadoras mudarem de clubes durante a vigências dos contratos”, conta Raquel.
Destaque para Ágata Filipa, que se tornou a primeira portuguesa transferida por dinheiro para uma liga das Big 5 (Inglaterra, Alemanha, Espanha, Itália e França). A jogadora assinou pelo Fleury, da liga francesa, uma transferência que rondou os 40 mil euros. De sublinhar também a transferência de Tatiana Pinto do Levante para o Brighton, que levou a portuguesa para a liga mais competitiva da Europa.
Profissionalização
O que não mudou e continua sem um plano à vista é a questão da profissionalização. “A Liga precisa, claramente, de ser mais competitiva e isso consegue-se com a profissionalização. Será esse momento que permitirá à sponsorização atingir um nível que venha a nivelar a nossa liga com outras que já estão num patamar bastante mais adiantado. É a única forma de criar um produto mais atrativo para todos, desde o consumidor ao próprio sponsor”, diz Raquel.
Sim, Portugal continua a não ter uma liga profissional para as equipas femininas e isso acaba por afetar tudo o resto. Coisas como o facto de as jogadoras se verem obrigadas a encontrar um segundo trabalho, existirem clubes onde os balneários são em contentores ou algumas jogadoras estrangeiras não olharem para Portugal como uma opção viável, mudariam com a chegada da profissionalização e elevariam a liga portuguesa para um novo patamar.
“Para sintetizar: é um facto que o Mundial ajudou a mudar alguma coisa, mas dificilmente existirá continuidade nesta evolução, em Portugal, se o futebol feminino não avançar para um quadro de competição profissional. E deve fazê-lo o quanto antes. Se Portugal tem, neste momento, a hipótese de vir a ter três clubes UWCL (Champions League) já em 2025/26, então é urgente atuar!”, continua.
Também com a melhoria da liga em mente, Matilde apela para a necessidade de apostar na formação. Ao longo do Mundial e com o aumento do reconhecimento, as jogadoras portuguesas tornaram-se referências para as mais novas. Desta forma, estas começam a olhar para a modalidade como uma opção para o seu futuro. “A grande aposta para mim tem de ser na formação. Até há pouco tempo havia poucas atletas federadas. Já somos um país pequeno, a piscina de talento é sempre menor, depois se há pouco interesse há pouca margem para ir buscar gente de qualidade. Havendo 10 pessoas a jogar se calhar arranjam-se duas com qualidade, havendo 100 se calhar arranjam-se 20. Começa a ser mais interessante, mais competitivo, e acaba por trazer mais investimento, é um ciclo”, diz a jogadora.
Lições
Esta não era uma lição que alguém esperava que o futebol e a sociedade fossem tirar deste Mundial, porque ninguém esperava ou queria que tivesse acontecido, mas hoje espera-se que muito se tenha aprendido com a situação de assédio contra Jenni Hermoso na final do torneio.
Mas aprendeu mesmo?
“Talvez se tenha aprendido alguma coisa, mas continua a existir, também aqui, muito por fazer. Infelizmente, no caso em concreto, o mérito fantástico daquilo que Espanha tinha acabado de conseguir passou praticamente para segundo plano. Mas não é menos verdade que, apesar de tudo, o que ficou em primeiro plano durante várias semanas foi um assunto que tem mesmo de continuar a ser debatido para, um dia, acabar por ser erradicado. E acredito que esse dia está mais perto de chegar. O papel da jogadora é essencial neste aspeto. Tem de ser ela a estar no centro desta mudança, tendo para isso que ser apoiada, sem reservas, por todos os agentes da autoridade que dirigem o Desporto Nacional. O que não pode faltar é coragem! Para denunciar, combater e penalizar quem adota este tipo de comportamento. A Imprensa também pode ter um papel relevante nesta matéria. Pode e deve, em minha opinião”, conclui Raquel.
No final, defende Matilde Fidalgo, “não é que o futebol feminino estivesse num degrau e o Mundial tenha elevado tudo para um outro nível, a projeção e a importância que este Mundial teve é o culminar de um trabalho que tem vindo a ser feito. Não é o ponto de viragem, no sentido em que agora vai ser tudo melhor, é o prémio de uma trajetória crescente que tem vindo a ser uma tendência mundial”.