Em Timor-Leste, o caminho do desenvolvimento, tal como o foi o da luta pela independência, é diário, constante e difícil. Contudo, a consolidação da democracia é um garante dessa luta.
“Na democracia, somos um exemplo, apesar de o nosso Estado ser ainda frágil”, diz Kay Rala Xanana Gusmão ao Jornal Económico, à margem de um evento das Nações Unidas, em Genebra.
Há 25 anos o povo timorense votava a sua autodeterminação. Os resultados não deixaram margem para dúvidas, com o jugo indonésio a ser derrubado por mais de 78% dos eleitores. Hoje, “Timor é um exemplo de reconciliação e de paz”, diz, sem hesitar, Xanana Gusmão. No entanto, recorda, em dois momentos, 2006 e 2008, a estabilidade do país foi novamente testada.
A chave esteve na campanha de sensibilização levada a cabo pelo Estado, que “todo o povo aceitou”. “Não há risco, não há mais conflitos. Bem-vindo, desenvolvimento. Isto foi essencial”, continuou. E é a mensagem do desfecho da reconciliação com a Indonésia que Timor-Leste quer passar aos Estados de África em conflito.
Na breve entrevista dada ao JE, o líder timorense abordou a reforma da justiça no país. No plano da cooperação entre Portugal e Timor-Leste, Xanana Gusmão recorda a visita, no início de junho, da ministra da Justiça a Díli. “Estamos a orientar toda a cooperação de Portugal para a reforma no sector da Justiça, que se divide no médio e longo prazo”, afirmou.
Firmados vários acordos, ficou estabelecida a mobilidade académica entre os dois países, através de um programa de bolsas de estudo para jovens que “falem bem português”, tendo em vista a capacitação dos quadros do sistema judicial em Timor. 51 estudantes timorenses foram selecionados no âmbito do programa de reforma do sector. E, desse grupo, 48 irão frequentar faculdades de Direito e três irão especializar-se em Medicina Legal, em Portugal.
O ensino da língua portuguesa tem sido um ponto crítico para Xanana, que defende o reforço do ensino da língua, “um pilar na união dos timorenses”, como disse, em tempos, no decorrer das celebrações do Dia Mundial da Língua Portuguesa. Ainda sobre o sector da educação, Xanana Gusmão saudou o Projeto CAFE (Centros de Aprendizagem e Formação Escolar), fruto de financiamento conjunto de Portugal e Timor-Leste.
Passando ao papel do turismo na dinamização da economia timorense – “um sector com potencial” –, a visão de Xanana Gusmão privilegia o turismo comunitário, gerido localmente e que promova o desenvolvimento dessas economias. A estratégia não passa, por isso, pelo estabelecimento de grandes cadeias de hotelaria.
Na agenda da agricultura nacional, Xanana Gusmão insistiu na estratégia de fortalecimento e aposta na produção interna e “redução das importações”.
Sobre o diálogo com o atual Governo português, afastando qualquer favoritismo, Xanana Gusmão afirmou que “qualquer partido e governo português vai merecer uma atenção especial de Timor”.
“Falência moral” e cicatrizes
Em meados de junho, Xanana Gusmão esteve em Genebra – a representar o Presidente de Timor-Leste, José Ramos-Horta – como orador para o 60.º aniversário da UN Trade and Development, anterior Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD).
Perante centenas de representantes dos Estados-membros da ONU, entre outros, o líder timorense avançou com uma declaração aguçada direcionada para as instituições financeiras internacionais e para os “países industrializados”. O líder timorense acusou o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional de “cegueira ideológica e falência moral”, remetendo para os programas de ajustamento estrutural das décadas de 1980 e 1990.
“As cicatrizes destes programas permanecem na nossa região do
Sudeste Asiático”, atirou. “Temos um mundo de crescente conflito e desordem, onde o direito internacional é aplicado de forma seletiva pelo mundo desenvolvido. Temos uma emergência climática, causada pelos países industrializados, que afeta sobretudo o mundo em desenvolvimento”.
Sem deixar de abordar a crise pandémica, o antigo presidente de Timor-Leste afirmou que a UNCTAD, no decorrer da resposta internacional à Covid-19, “ajudou a expor as grandes disparidades no acesso às vacinas e destacou os desafios enfrentados pelo mundo em desenvolvimento”. “Sabemos que o desenvolvimento é um processo difícil e que não existe uma fórmula única para todos os casos. Em 2002, Timor-Leste emergiu de 24 anos de ocupação estrangeira e de quase cinco séculos de colonialismo. Começámos com nada mais do que as cicatrizes e o trauma da guerra. Aprendemos rapidamente que sem paz não pode haver desenvolvimento”.
Afirmando que Timor-Leste não está sozinho nessa luta, Xanana Gusmão recordou a fundação, em 2010, do Grupo g7+, – observador nas Nações Unidas desde 2019 – que ajudou a erguer, com outros países afetados por conflitos e frágeis, que lutam pela paz e pelo desenvolvimento.
“Reunimo-nos para partilhar as nossas experiências. Criámos o g7+, um grupo de cerca de 20 países frágeis, para falar a uma só voz sobre desenvolvimento, eficácia da ajuda e cooperação internacional”. Apesar dos grandes progressos registados desde a independência, Timor-Leste continua a ser um dos oito países designados pelas Nações Unidas como um país menos desenvolvido e um pequeno Estado insular em desenvolvimento”.
Citando António Guterres, que foi condecorado com a mais alta distinção de Timor-Leste pela intervenção que teve em 1999, “as instituições mundiais não podem ser eficazes se não forem representativas”.
“Lamentavelmente, no nosso país, as instituições financeiras internacionais têm sido rápidas a dar-nos lições, mas lentas para nos empregar”, acusou.