Apesar da economia portuguesa ter crescido nos últimos anos, o economista Vítor Bento tem dúvidas de que a actual expansão seja sustentável. Diz que o investimento estrangeiro que Portugal tem acolhido não é dedicado à criação de emprego e riqueza e defende que sem o esforço de ajustamento o país estaria hoje numa situação desgraçada. Em entrevista à FORBES Portugal, Vítor Bento sublinha a importância da governance, lamentando que mesmo depois dos “desastres que houve” no Banco Espírito Santo (BES) e na Portugal Telecom (PT), por exemplo, as elites ainda não tenham consciência deste problema.
Estamos a assistir a um boom no imobiliário e ao aumento do recurso ao crédito pelas famílias. É um regresso ao passado ou desta vez é diferente?
Portugal, de certa forma, está inserido na tendência de recuperação a nível mundial a seguir à crise. Quanto aos riscos, face à repetição do passado, julgo que alguns estão contidos. Mas, apesar de tudo, continuamos a manter um endividamento muito grande, quer em termos público quer gerais, da sociedade. E isso é sempre uma vulnerabilidade para o caso de a conjuntura internacional se tornar mais desfavorável. Fora isso, penso que desta vez há mais cuidado com as contas orçamentais anuais por um lado e, por outro, as contas externas também estão mais controladas. O que é uma situação inédita na nossa história em muitas décadas.
Os bancos estão mais fortes e seguros do que há quatro anos?
Do que há quatro anos estão seguramente. Houve uma limpeza de balanços […] e reforços de capital. Desse ponto de vista sim. Se a banca está suficientemente sólida ou não, isso é algo que o decorrer do negócio irá mostrar, pois o sector é por natureza uma actividade muito contingente. O valor do balanço de um banco depende muito da dinâmica da própria economia e aquilo que num determinado momento pode parecer sólido, de um momento para o outro pode desabar.
Há dúvidas se o crédito está a chegar realmente à economia. Os bancos dizem que há liquidez, mas os empresários queixam-se de que não têm acesso a dinheiro com taxas acessíveis. Quem tem razão?
Cada um tem as suas verdades. O que é preciso ver é qual o ponto de encontro dessas verdades. É óbvio que hoje há muita liquidez e, portanto, não é por isso que não haverá crédito. Aquilo que terá acontecido, em termos de mudança estrutural, tem a ver precisamente com a pergunta anterior sobre os bancos de hoje que, por iniciativa própria e por imposição regulatória, têm critérios de avaliação de risco mais exigentes do que tiveram no passado.
Mas isso quer dizer que há empresas cuja rentabilidade do capital é baixa que vão ficar sem acesso a crédito por não cumprirem esses critérios.
Mas do ponto de vista económico isso é saudável. Por muito chocante que possa parecer, numa primeira observação isso é saudável.
Se estivermos a ter investimentos que não gerem riqueza adicional, no fundo não estamos a investir. Estamos a consumir. Ou seja, numa linguagem populista, estamos a derreter dinheiro. Isso pode ser muito bom para sustentar essas situações, mas do ponto de vista económico e social não tem efeito reprodutivo.
O malparado continua a ser o principal problema da banca. A plataforma que foi criada é a solução ideal no seu entender?
É pelo menos uma solução conveniente. Uma das vantagens que uma plataforma dessa natureza pode trazer é a unicidade de tratamento das situações problemáticas. Obviamente que a plataforma não cria capital. Neste momento, tudo indica, e utilizo este condicional porque não estou dentro dos bancos, que se esses níveis [do malparado] se mantêm é porque são aceitáveis, quer do ponto de vista da valorização do risco da gestão dos bancos quer porque os supervisores também consideram que são aceitáveis. E temos tido vários processos de stress tests que convivem com esses níveis.
Quatro anos depois do resgate ao BES
Já disse que a venda do Novo Banco à Lone Star foi a solução possível no timing em que teve de ser tomada. Mas esta não era a solução que tinha em mente quando aceitou ir para a liderança do BES…
Quando aceitei ir para a liderança do BES foi antes da resolução. Foi dentro de um quadro de actuação – sobre o qual não faço e não fiz, na altura, juízos – onde nomeadamente me foi dito que estava disponível a linha de financiamento pública no caso de haver necessidade. E insisto neste ponto: não faço juízos sobre se era bom ou mau. Aceitei na base de um horizonte possível no mínimo de médio prazo. Ao fim de pouco mais do que 15 dias a situação tomou um rumo diferente. E, a partir daí, a responsabilidade do que aconteceu é das autoridades. Eu não tinha legitimidade para contrapor modelos alternativos àqueles que eram as escolhas das autoridades que tinham legitimidade para isso.
Não é possível prever se o desfecho teria sido outro, é isso?
Se quer que lhe diga, e na altura escrevi sobre isso para quem de direito, à data parecia-me que as duas melhores soluções eram: o Estado assumir a responsabilidade do banco e a instituição deixar de ser um banco de transição e lhe fosse dado tempo para recuperar, ou que fosse vendido rapidamente. Acabou por ser a solução intermédia que foi uma venda lenta. E essa, do meu ponto de vista, destruiu mais valor do que aquele que preservou. […]. É relativamente fácil fazer juízos a posteriori e poderia estar tentado a fazer uma série de juízos. Mas só me interessam aqueles que eu tinha condições de fazer na altura em que tive de fazer opções e tomar decisões. E, no essencial, não creio que me enganei até aqui. Para mim foi claro na altura que um banco daquela dimensão não podia ser de transição muito tempo.
Era possível fazer uma venda tão rápida?
Claro que era. Basta ver se no mundo inteiro isso acontece ou não. E a verdade é que sim, já aconteceu.
Então porque não aconteceu?
Não sei. Aliás, quando saí do Novo Banco a afirmação era que ia ser feita uma venda rápida, o que para mim seria até ao final do ano.
Pelo tempo que esteve lá nessa altura e pelo estudo que fez às contas do banco, tinha noção que nos anos seguintes o banco teria de ‘suportar’ os prejuízos que teve até agora?
Eu estive muito pouco tempo no banco. E dentro de uma turbulência muito grande em que houve que responder a muitas minicrises e macrocrises que iam surgindo. Portanto, não dá para ter uma fotografia tão grande. Aquilo que eram as declarações oficiais até à véspera da intervenção era que o banco tinha condições para continuar a funcionar.
Apesar da venda, o Estado comprometeu-se a financiar em 3,9 mil milhões perdas com imparidades que o Novo Banco venha a sofrer. É aceitável este mecanismo para conseguir fechar a venda? Não há o risco da Lone Star sobre-provisionar para garantir dinheiro público?
Com as condições em que a venda foi negociada, no timing em que foi negociada com um horizonte temporal já muito apertado, obviamente que o comprador tem mais poder negocial do que o vendedor. E esse foi o equilíbrio que resultou da negociação. Mais uma vez, não adianta fazermos juízos morais. O contrato foi negociado naquelas condições e cada uma das partes utiliza as prerrogativas do contrato da forma que consideram mais adequadas aos seus interesses.
As lições da PT e do BES
Tem alertado várias vezes para a necessidade de se ter boas práticas de governance. O caso BES é um dos exemplos do que a má governação pode resultar?
Sim. Eu acho que é um dos desafios que o nosso país tem e sobre o qual não há suficiente consciência. Infelizmente, nós temos pouca capacidade preventiva. Depois dos desastres acontecerem tentamos melhorar as coisas. Ainda assim, creio que os desastres que houve, apesar de terem aumentado a consciência, ainda não foram suficientes para que a sociedade em geral e as elites em particular tenham consciência dos problemas de governance que existem. E os problemas de governance não se resolvem apenas ao nível formal. Até porque as empresas que tiveram problemas, como a PT, cumpriam os critérios formais.
Como se consegue garantir que os princípios de corporate governance são aplicados na prática?
Da mesma forma que acontece na sociedade: com regulação e fiscalização. Dou um exemplo: antes, o estacionamento em Lisboa era um caos e toda a gente pensava que ia continuar a ser. Hoje está disciplinadíssimo. O que foi feito? Por um lado, puseram pilaretes nos passeios e houve uma acção fiscalizadora muito mais actuante, nomeadamente através da EMEL. Ou seja, é possível resolver os problemas desde que haja vontade para isso e se queira fazer.
Estamos muito atrás das congéneres europeias neste campo?
Naquilo que deveriam ser as boas práticas ainda estamos. Em Portugal, naquilo que diz respeito à governance, aquilo que é supervisionado pelo estrangeiro, e estou-me a referir à banca, tem vindo a melhorar. Ao nível nacional essa supervisão não existe. Portanto, aquilo que está sujeito à supervisão nacional vai ser mais lento de mudar. Mas creio que os choques culturais se transmitem em todo o lado e um dia também cá chegarão. Há muita coisa que já melhorou. Mas ainda não melhorou o suficiente.
Se tivessem sido implementadas essas boas práticas antes, os desfechos do BES ou da PT poderiam ser diferentes?
Da PT estou convencido que seguramente. No caso BES, não sei. Mas admito que sim. No entanto, gostava de dar uma nota de cautela: o essencial de uma mudança não é resolver o mundo, porque o mundo nunca é resolúvel. Vão sempre surgir desafios e problemas para os quais nunca estamos preparados e nunca conseguimos ter um elemento de segurança à prova de bala. Há empresas que, apesar de muito bem governadas, podem falir por erros de estratégia. Uma boa governance não é em si garante de uma estratégia melhor. O que é importante é que os elementos da sua governação estejam organizados de forma a preservar o mais possível o valor da empresa.
Pode detalhar?
Os órgãos de fiscalização têm de ter mais a visão na sustentabilidade, enquanto os órgãos executivos estão mais focados na criação imediata de valor independentemente do resto. A primeira exigência está no processo de recrutamento. Se o processo for feito entre os amigos obviamente que se passa a ter um órgão de controlo enviesado. Mesmo que a intenção seja boa, que os amigos sejam os melhores. Mas o simples facto de estarem demasiado alinhados ao nível do pensamento reduz a possibilidade de olhar para os ângulos mortos. E como estão todos a olhar pela mesma janela não vêem o que se passa na janela ao lado. Não têm ângulo de visão para isso.
Então como se pode mudar esta situação?
Culturalmente. Chamando a atenção e, no fundo, explicando que em última instância é do interesse dos accionistas em geral. Por vezes, há accionistas minoritários que não têm capital suficiente para controlarem a empresa, mas querem assegurar o seu controlo indirecto. Querem assegurar uma distribuição de valor desproporcionada a seu favor. Este é um dos grandes riscos da governance. E se forem eles sozinhos a escolher a governance a seu belo prazer, obviamente que isto descura todos os outros stakeholders e todos em risco. Foi o que aconteceu nos casos que referiu [BES e PT].
Fardo da dívida
A economia portuguesa tem crescido nos últimos anos, mas a recuperação parece estar a perder força. O crescimento que temos tido é sustentável?
A actual taxa de crescimento não é sustentável. E não creio por limitações estruturais. Isto é, temos uma população activa que vai estar em queda o que significa que o potencial de emprego, a não ser que seja suprido por emigração, vai estar em queda. Continuamos a ter um nível de stock de capital muito baixo e precisávamos de investimentos muito elevados para melhorar a relação entre capital/trabalhador. É nisto que depende o crescimento sustentável. Quando o emprego estiver todo absorvido não há mais por onde crescer, a não ser que comece a haver uma transformação na qualidade do processo produtivo.
Nem com investimento estrangeiro?
O investimento estrangeiro que tenho visto é predominantemente dedicado à compra de activos. Não é dedicado à criação de emprego e, portanto, à criação de riqueza. Na prática, o que nós estamos a assistir é aquilo que era previsível e, perdoem-me a imodéstia, alertei para isso muitas vezes: estamos a vender os nossos activos. O que estamos a fazer é passar a propriedade nacional para propriedade estrangeira.
O crescimento registado nestes últimos anos deve-se sobretudo à conjuntura externa favorável ou também a medidas adoptadas a nível interno?
Há várias coisas que contribuíram para isso. Em primeiro lugar, é claro que a conjuntura internacional é relevante, sobretudo para economias de pequena dimensão abertas como a nossa. Depois, tivemos um ajustamento que foi violento, mas que produziu resultados. Estancámos as grandes hemorragias que tínhamos quer ao nível das contas públicas quer das contas externas. E isso criou-nos condições para melhorar a nossa própria situação. E aqui chamava a atenção para aquilo que foi provavelmente a maior reforma que foi feita durante o período de ajustamento, que se deve em grande parte ao sector privado, que foi a viragem da economia para o exterior. Claro que também estamos a beneficiar do boom do Turismo, que é um factor extraordinário. E, felizmente, o actual Governo tem mantido no essencial as reformas mais importantes que foram feitas e também não tem funcionado como elemento destabilizador desse potencial. Mas reitero: sem aquele esforço de ajustamento hoje estaríamos numa situação desgraçada. Quer dizer, teríamos tido a falência do Estado e da economia.
Também tivemos o aumento do salário mínimo. Pode-se afirmar que está provado que não afecta a competitividade da economia?
Essas coisas levam tempo a produzir efeitos. Sobre o salário mínimo eu tenho um sentimento misto. Por um lado, as coisas têm de ser feitas com cuidado porque o excesso de voluntarismo tem consequências indesejadas. Nós hoje estamos a viver um boom turístico que torna a própria actividade económica mais fácil e há certas restrições que podem não se sentir. Mas o facto de o salário mínimo se estar a aproximar muito do salário médio é um sinal amarelo a que se deve ter atenção.
Em relação à dívida pública, acha que a actual gestão que o Governo está a fazer é a mais correcta?
No que diz respeito ao problema mais macroeconómico da gestão da dívida, atendendo ao stock que temos, devíamos ser mais ambiciosos na sua redução. O que implica ser mais ambicioso na gestão orçamental. É óbvio que fico preocupado quando vejo argumentações dizendo que as folgas orçamentais – se é que isso existe, até porque se continuamos a ter défice não há folgas orçamentais – devem ser utilizadas para gastar mais quando devíamos estar a utilizar todas as folgas possíveis para reduzir a dívida. A dívida é um par de algemas que temos. É um saco de tijolos que temos às costas. E quantos mais tijolos conseguirmos tirar das costas, mais podemos correr. A economia faz-se por ciclos. Por isso, existe, todavia, o risco de uma nova crise.
A existir, Portugal está melhor preparado para a enfrentar?
Diria que está menos exposto do que estava em 2011. As contas externas estão equilibradas, o orçamento também está mais perto do equilíbrio, mas as duas dívidas continuam a ser muito pesadas. Os dois primeiros elementos estão mais controlados e desse ponto de vista a vulnerabilidade é menor. Agora, continuamos a ter as debilidades estruturais que tínhamos, nomeadamente uma produtividade baixa e demasiadas áreas protegidas da economia que funcionam com isso.
Que medidas consideraria serem essenciais para o Orçamento do Estado (OE) do próximo ano?
Eu já ficava satisfeito se o Governo apostasse na redução de défice estrutural. Mais do que ir para as medidas macroeconómicas iria para
o campo macroeconómico: continuação da redução do défice estrutural; controlo da despesa e baixa da carga fiscal. É quase como a quadratura do círculo, eu sei. A forma de quadrar esse círculo é ser mais exigente com a despesa.
Teme o risco de um OE eleitoralista ou o facto de Mário Centeno ser presidente do Eurogrupo aumenta a responsabilidade de se fazer um orçamento responsável, para dar o exemplo aos pares europeus?
Claro que aumenta a responsabilidade, mas estou convencido de que o próprio Governo deve ter criado algumas folgas para utilizar se necessário. Nenhum partido em ano eleitoral descura a utilização das políticas para favorecer o ciclo eleitoral. Isso faz parte das regras. A questão é saber se abusa desse poder ou se o gere com moderação. Agora que o ímpeto vai existir, vai.