Aos portugueses diz que são duas vezes a cidade de Lisboa, e aos estrangeiros que são três bairros de Manhattan, para facilitar a visualização. Na verdade, são 18 mil hectares de terras, entre os solos férteis da lezíria e os terrenos florestais da charneca, explica António Saraiva, o regedor destas terras que levou a FORBES numa visita guiada pela Companhia das Lezírias, e que nos explicou como se gere um tão vasto património.
A primeira coisa que um gestor deve saber é “o que não fazer”, e não “o que fazer”, defende como máxima o presidente do conselho de administração da Companhia que, actualmente, se queda pelas margens do Tejo e do seu afluente Sorraia e a que chegamos através da estrada nacional 118, que liga Alcochete ao Porto Alto.
Quando António Saraiva chegou a esta empresa 100% detida pelo Estado, em 2012, constatou a existência de muitas apostas feitas ao longo do tempo e deixadas a meio, concluindo que “era necessária uma nova abordagem” na gestão.
A Companhia não era deficitária, pelo contrário. É até um oásis no sector do Estado acumulando lucros ano após ano: em 2014 superou o milhão de euros, em 2015 teve novo recorde, tal como aconteceu em 2016, ao superar os 2 milhões. Em 2017 deverá fechar o ano com um novo máximo e este ano ainda mais, prevê o responsável. Com os activos em crescendo desde 2013 – de 42,8 milhões de euros para 47,3 milhões de euros registados no ano passado, – e passivo em queda, a situar-se nos 4,2 milhões de euros em 2016, os dados do negócio revelam uma confortável saúde financeira. “Acho que na altura em que o meu nome foi sugerido se procurava uma gestão apartidária para a Companhia, com pessoas que tivessem experiência no sector privado. Creio que fui a pessoa certa na altura certa. Tive essa sorte”, diz o também funcionário – em licença sem vencimento – da multinacional Syngenta.
Quando entrou para a empresa, queria-se “abrir mais a Companhia das Lezírias à sociedade, divulgá-la mais e torná-la um exemplo de boas práticas agrícolas e ambientais”. Condição incontornável num território com dois terços de área com classificação ambiental e uma estratégia com que o gestor não poderia concordar mais – e que, assegura, “se tem mantido em termos de orientações da tutela”. António já vai no segundo de um máximo estatutário de três mandatos, cada um com três anos de vigência.
Engenheiro agrónomo de formação, regozija-se por conhecer agora o outro lado da agro-indústria. “Hoje estou nas botas do agricultor. É o sonho do agrónomo”, diz-nos, à mesa do “A Coudelaria”, restaurante criado há 20 anos na Companhia das Lezírias, enquanto nos servem um arroz de tomate malandrinho feito com a matéria-prima proveniente dos terrenos dos orizicultores locais. Estes estão unidos na associação Orivárzea, maior produtor de arroz carolino no país, e responsável pela assistência técnica, venda dos factores de produção, recepção da produção, transformação, venda e exportação de arroz em casca ou já transformado, sob várias marcas, designadamente a Bom Sucesso.
Para acompanhar a refeição, um Tyto Alba branco, um dos produtos nascidos no consulado de António e do enólogo que trouxe então para a empresa, Bernardo Cabral. É a ambos que se deve a bem sucedida reestruturação da oferta vinícola da empresa.
Explosão de azeitona
Chegado a esta fortuna ecológica bem junto do Tejo, o engenheiro agrónomo começou por visitar tudo, ler os relatórios e falar com as pessoas. Apercebeu-se rapidamente de que faltava dimensão comercial nos vinhos e produtividade no olival, as duas divisões que mais revolucionou e que hoje são garante da estabilidade do negócio.
A Companhia das Lezírias, que está constituída como sociedade anónima, depende dos ministérios da Agricultura e das Finanças para efeitos estratégicos e financeiros, mas tem “total autonomia” em termos de administração, explica António. Esta é composta por três administradores, cada um com seu pelouro, e vários directores, sendo os trabalhos seguidos em reuniões de acompanhamento. “Não podemos ter actividades separadas. Trabalhamos todos para um bem comum, todos sabem o que se passa dentro da Companhia, cada um com responsabilidades próprias dentro da sua área, com contabilidade específica, analítica”, garante o responsável. “A vinha e o olival não estavam tão bem exploradas”, exemplifica. Olhando os números da Companhia relativos ao primeiro ano completo da actual administração, 2013, é possível verificar um crescimento de 21% nas vendas, em que os vinhos e azeites contribuíram com mais 36% que no ano anterior: 1,12 milhões de euros.
Na olivicultura, as árvores que davam 500 quilos de azeitona por hectare rendem hoje cerca de 7,5 toneladas, apenas com a introdução de alterações nos métodos agrícolas, revela o presidente, admitindo que a Companhia das Lezírias já é excedentária face às necessidades das suas marcas próprias. Em breve entrará nos expositores do Lidl. Também vende azeite para fora, a granel, ponto em que os espanhóis são bons clientes – em Bolsa, a cotação ronda 3,6 euros por litro. O investimento poderá redundar este ano na duplicação do melhor ano de sempre.
No vinho há, igualmente, excedente – que integra várias marcas alentejanas – resultado de trabalhos na vinha que incluíram aproximá-la, literalmente, do consumidor: o vinhedo está agora em destaque para quem entra no terreno que alberga a loja e a adega. É uma forma de as vinhas próprias sobressaírem junto dos visitantes. Antes,
a plantação só era visível penetrando nos terrenos da Companhia. Além de ser mais icónico ter um vinhedo do que um tapete de relva na entrada da herdade de Catapereiro, este é um “jardim” mais fácil de manter, explica o gestor, que introduziu também algumas alterações para melhorar a eficiência dos processos. “Um empilhador levava 10 minutos para ir ao armazém levar uma palete e voltar à adega”, explica o enólogo que também nos acompanha na visita. Anexa a esta está a renovada loja de venda ao público– “a antiga não tinha dignidade nenhuma”– com uma funcionária que, ao contrário do que acontecia antes, não está adstrita a este espaço, efectuando outras tarefas (nomeadamente embalamento de vinho) quando não há clientes. “Era esta cultura que faltava aqui um bocadinho”, diz António enquanto visitamos a nova adega.
O voo do Tyto
Bernardo salienta que conhece bem o anterior responsável de enologia, sublinhando que este ergueu a área vitivinícola quase do zero, construiu a adega antiga e “introduziu vinho com qualidade”. Contudo, “faltava conceito”, pelo que Bernardo apostou na condução da vinha (técnicas de plantação, conservação e evolução das plantas) e gestão da água. Havia um culto de poupar que era contraproducente, explica o enólogo, dando como exemplo a poda. “Nós gastámos mais 50% do que se gastava, mas o retorno foi mais de 1000% acima”, explica. “Não se gasta dinheiro sem estar justificado”, ressalva Bernardo, enquanto António nota que nestes casos se fala de investimento e não de gastos.
O responsável pelos vinhos da Companhia das Lezírias foi mesmo mais longe, ao serrar uma vinha de cerca de 5 hectares, que ficou a repousar durante um ano. “Rebentou outra vez, reconduzimos a vinha e até agora andamos sempre nas oito ou nove toneladas por hectare”, conta, orgulhoso. Antes do corte, a média era de 2,5 toneladas por hectare.
Entre alterações na vinificação, nos estágios e na busca por cada vez mais castas portuguesas, sente-se “muito em sintonia” com o presidente da Companhia das Lezírias.
Também com os funcionários que encontrou aqui conseguiu uma boa articulação. “A nossa administração foi bem acolhida porque trouxe uma visão mais empresarial à Companhia”. Reorganizou os vinhos por marcas, para conseguir alinhar os preços pela qualidade crescente, e promoveu um “caminho de valorização da oferta, diferenciando, criando referências mais caras para mercados mais exclusivos. Não são mercados ingénuos, pagam se o vinho tem valor, por isso temos de fazer trabalho no campo, na adega e na comercialização”, explica. E não há melhor forma de fundamentar decisões do que através de melhores resultados.
A rentabilidade dos vinhos tem agora associada uma mensagem sobre a Companhia. A forma mais fácil de chegar às pessoas e de contar a sua história é através do vinho (que era comercializado sob a insígnia Coruche IPR) ou azeite, defende, explicando que os restantes produtos da empresa são maioritariamente commodities – cortiça e madeira –, de venda indiferenciada, como acontece com o arroz, ou de pequeno volume, como a carne.
Na configuração actual, o Catapereiro (que já existia, em referência à propriedade onde está a vinha) é a base, Tyto Alba – nome científico da coruja das torres, símbolo da biodiversidade da propriedade – representa a gama média, e o 1836 é o topo de gama. O nome é referência ao ano de criação da Companhia das Lezírias. A estes junta-se também o vinho bag in box Ermida Senhora Alcamé – nome de um dos dois templos da lezíria. O novo capítulo do sector chega já este ano 2018 sob a forma de um vinho biológico, cujo nome ainda não foi revelado.
Ao sabor das águas
Como um náufrago à deriva no mar, a lezíria sente a água banhar-lhe o corpo, mas não a pode sorver. A seca é um desafio para estes 18 mil hectares de propriedade agrícola, entre arroz, milho, olival, vinha, pinheiro e sobro. E ainda para o pasto e feno necessários para alimentar as 3400 cabeças de gado, os cavalos Lusitanos, os porcos que os espanhóis vêm buscar para transformar em presunto pata negra “espanhol” e para a fauna com que nos vamos cruzando – parte passível de ser caçada, actividade que serve como controlo cinegético.
António assume que há o risco de os solos saturarem com a salinização que emerge naturalmente nos terrenos, acumulando o problema da falta de quantidade com a escassa qualidade da água existente. Tem-se tentado esbater o problema da salinização em articulação com a EDP – para que a descarga das barragens seja aproveitada através da abertura das comportas da parte norte da propriedade, no Tejo. A água chega depois, por canalização, à zona norte (a partir de 2020 estará inteiramente infra-estruturada) e no lado sul cada agricultor pode usar os seus motores para tirar a água das valas de rega.
A elevada quantidade de sal na água “é uma coisa que nos preocupa imenso”, diz o responsável da propriedade, fazendo ainda referência ao plano de navegabilidade do rio que abrirá canais para as embarcações e reduzirá ainda mais a resistência da água doce à salgada. Na qualidade de líder da Associação dos Beneficiários da Lezíria Grande de Vila Franca de Xira, que faz o aproveitamento hidroagrícola do território, António já aconselhou os agricultores a conterem-se nos compromissos para a próxima campanha agrícola. “É muito questionável a disponibilidade de água”, alerta o engenheiro.
Fazemos então a inevitável pergunta: e privatizar a Companhia das Lezírias? O gestor é peremptório: seria “assinar uma certidão de óbito” a uma empresa consistentemente rentável. “Jamais participaria num processo desses”, garante. A ideia chegou a ser contemplada no primeiro Governo de Cavaco Silva, e a última vez que teve defesa pública foi com Durão Barroso. José Sócrates afastou-a e António Saraiva afiança que o tema nunca surgiu nas conversas com os Executivos de Passos Coelho e António Costa. Apesar de haver alguns constrangimentos em termos de recursos humanos e de orçamento, a verdade é que a gestão pública tem funcionado, sobretudo se tivermos em conta que garante alguma segurança num sector violentamente atingido sempre que há imponderáveis da natureza. Neste sentido, a empresa deverá continuar a dar lucros e a crescer, sendo um bom exemplo daquilo que pode ser a res publica em Portugal.