A série ‘Rabo de Peixe’ saiu da gaveta de ideias de Augusto Fraga, brilhou num concurso organizado pela Netflix e pelo Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) e prepara-se, agora, para saltar para os ecrãs de milhões de utilizadores em vários países.
A segunda produção nacional com o selo da plataforma de streaming, depois de ‘Glória’, vem acompanhada de um elevado nível de exigência e de um investimento diferente daquele que é a realidade no país.
Quem o diz é Augusto Fraga, o realizador açoriano que até aqui voltava a sua atenção para a área da publicidade. “O que a Netflix vem trazer ao mercado é um grau de exigência muito grande”, diz à FORBES, a poucos minutos da antestreia do projeto. Essa exigência passa um pouco por todo o lado: dos guiões, à preparação do set e dos atores, passando pela montagem ou sonorização.
Em relação ao investimento, o realizador opta por não o descrever como maior, mas sim como correto. “Os valores investidos neste projeto são os valores que deveriam ser investidos sempre num projeto desta dimensão. A realidade que se vivia antes das entradas das plataformas de streaming em Portugal era um under value, era muito abaixo do valor real. Isso não se coaduna com uma indústria”, afirma.
Mas há ainda um outro fator que Augusto Fraga espera que seja diferente a partir de ‘Rabo de Peixe’. Lado a lado com ‘Glória’, esta produção poderá ser a responsável pelo “final do divórcio entre o espectador e os criadores do audiovisual em Portugal. Ou seja, o público português começa agora a prestar mais atenção ao que é feito no país, enquanto os projetos são escritos e criados a pensar nesses mesmos espetadores. “O público não é um problema, o público é o nosso objetivo”, defende.
Ventos de mudança
Da mesma forma que as coisas vão mudar na vida de Eduardo, Sílvia, Rafael e Carlinhos na história que chega à Netflix na próxima sexta-feira (26), também a indústria do audiovisual em Portugal precisa de enfrentar a mudança.
“Eu penso que o grande problema é olhar para o cinema e para o audiovisual como cultura apenas e não os entender como uma indústria. A indústria do audiovisual é uma das maiores do entretenimento, das maiores indústrias do mundo, e quando olharmos para esta indústria como uma indústria e não como cultura apenas, que também é, o retorno do investimento que o Estado faça ou os apoios que sejam dados é sempre maior do que aquele que é investido. É essa mentalidade que tem de mudar”, diz Augusto.
Para Pêpê Rapazote, um dos atores do projeto, o caminho passa por levar as histórias portuguesas e em português lá para fora, “muito mais do que trazermos uma Netflix ou Amazon para cá”. O ator usa mesmo o exemplo de ‘Narcos’, a série falada maioritariamente em espanhol que colocou os norte-americanos a ler legendas.
“Há truques que podem levar a que determinadas séries sejam exportáveis. Somos 10 milhões, não tenhamos ilusões, temos de ser nós a ir lá para fora, fazer coisas com outra gente lá fora. Mistura de línguas, mistura de histórias, sobretudo de histórias, temos das histórias mais ricas do mundo que nunca foram contadas. Esse acho que é um dos caminhos e é capaz de ser dos melhores”, diz o ator à FORBES.
O que é necessário para que isso aconteça?
“É começar”, diz.
Aquilo que é o comum em Portugal não é exatamente aquilo que vai fazer mais pelo cinema português, pela perspetiva de Pêpê. Falamos do “cinema de autor que depois concorre a festivais, tem pouco púbico, faz pouco box office aqui, mas que depois ganha prémios europeus”. Olhando para o estrangeiro, a percentagem do entretenimento é superior à do cinema de autor, querendo um produto exportável é necessário corresponder a esses valores em Portugal.
“O mundo está tão aberto que não precisas de sair do teu país para poder trabalhar”
Pêpê Rapazote foi um dos primeiros atores portugueses a arriscar uma carreira no estrangeiro, primeiro em Espanha e mais tarde nos Estados Unidos. “Eu comecei a fazê-lo muito cedo porque achei que o nosso país era muito pequeno e não me via a fazer determinadas coisas daqui a 20 anos, só essas coisas. Mais facilmente mudaria de profissão novamente do que continuaria a fazer determinadas coisas”, diz.
O ator confessa que foi um processo “difícil”, sendo que foi mais complicado chegar do que dar provas depois de já lá estar. Essa é uma das diferenças quando se olha para a realidade de hoje. Enquanto Pêpê sentiu dificuldades no processo de imigração e em encontrar um representante, José Condessa fala sobre a oportunidade de trabalhar para lá, a partir de cá.
“Estamos nesta geração em que o mundo se está a abrir cada vez mais e temos a oportunidade de levar a ficção portuguesa para o mundo. O que acontece é que agora o mundo está tão aberto que não precisas de sair do teu país para poder trabalhar. Ou seja, tu daqui consegues mandar uma self tape para o outro lado do mundo e há cada vez mais interesse também de quem produz de ter outras pessoas de outros sítios e não sempre do país onde constróis a história. Acho que nós como atores temos de estar preparados para essa mudança e eu quero fazer parte da mudança”, diz José à FORBES, realçando que a vontade de continuar sempre a trabalhar em Portugal.
Na verdade, José já faz parte dessa mudança. Poucos dias antes da antestreia de ‘Rabo de Peixe’, o ator esteve no Festival de Cannes com a curta ‘Estranha Forma de Vida’, de Pedro Almodôvar. “Parece que foi tudo ao mesmo tempo. É engraçado que eu comparo isto ao que aconteceu há um ano, quando eu fiz tudo ao mesmo tempo. A curta foi logo a seguir a ‘Rabo de Peixe’, ainda coincidiu um bocadinho. Na verdade, acho que foi o Augusto que ajudou muito a que acontecesse, no sentido em que eu fui escolhido, fiquei com o papel, e depois havia ali umas datas que coincidiam com a nossa série e o Augusto foi o primeiro a defender e a dizer: ‘Tu vais ter de fazer isto, isto é importante para ti’”, afirma o ator.
Dos Açores para o mundo
Casa, família, amor, carinho. São estas as palavras que José usa para descrever Rabo de Peixe e as pessoas que lá conheceu. Chegou aos Açores uma semana antes de começar a gravar e fez logo amizades com dois locais que hoje vê como irmãos mais novos. “Eles deram-me a conhecer tudo o que eu tinha para conhecer na vila. E depois conheci as pessoas que me levaram a pescar para eu construir a personagem, que me ensinaram a cozer umas redes, preparar o isco. Tudo o que precisava para a personagem, mas que depois guardei como Zé no coração”, conta.
Aliás, algo de muito positivo que sai deste projeto é exatamente sobre essas pessoas e a forma como são vistas do lado de fora.
“A série marcou um ponto de viragem na forma de todos nós continentais vermos Rabo de Peixe. Tinha um estereótipo muito pesado, por tudo o que aconteceu, pela pobreza, pela falta de condições, e eles não querem estar mais agarrados a isso. O que eu vi foram pessoas muito trabalhadoras, com uma vida muito difícil. Viver do mar é muito ingrato, parece que têm um destino destinado”, diz José.
E o que é que o projeto diz sobre a indústria em Portugal?
“Acho que traz uma linguagem nova, uma coisa fresca, que vamos conseguir competir olhos nos olhos com o que é feito lá fora e essa sempre foi a nossa ambição desde o primeiro momento”, conclui o ator.