A grande surpresa é o silêncio. Ali, na Antiga Confeitaria de Belém, ou, como é conhecida, nos Pastéis de Belém, produzem-se em média 20 mil pastéis por dia, mas, ao invés de caos, na fábrica propriamente dita só se encontram ordem e alumínio reluzente envoltos num silêncio que quase incomoda, por parecer estranho. “Há pessoas que trabalham aqui há décadas. Algumas casaram com colegas, já tiveram filhos aqui a trabalhar. É uma empresa familiar em todos os sentidos”, conta em jeito de brincadeira Miguel Clarinha, representante da quinta geração da família a quem pertence o segredo mais bem guardado de Lisboa. “Actualmente estou eu, a minha prima Penélope e o meu pai na gerência da empresa.” São eles, portanto, que em conjunto com os três mestres pasteleiros, fecham o grupo de pessoas que sabe qual a receita que um dia do século XIX saiu dos claustros do Mosteiro dos Jerónimos para as mãos de Domingos Rafael Alves.
Pastéis de Belém é uma marca registada a 27 de Abril de 1918 no então Ministério do Fomento, na Repartição da Propriedade Industrial, e por isso encontram-se protegidos pelo Direito de Propriedade Industrial. Não se sabe exactamente como a marca chegou à família Clarinha, mas “acredita-se que terá sido um negócio normal. Um antepassado nosso terá comprado o negócio e a receita. Não sabemos. Não há registos desses tempos”, resume Miguel, que apesar de repetir e recontar a história não perde o ar afável e a disponibilidade para falar sobre uma das mais curiosas empresas do país. Uma sociedade por quotas da qual fazem parte alguns sócios não pertencentes à família, que ainda assim mantém o controlo da companhia.
Sentados à mesa de uma das salas da Fábrica, um espaço com cerca de 5 mil metros quadrados – contando com as zonas de fabrico, o armazém, o espaço do pessoal e os escritórios –, Miguel levanta o véu sobre a nova esplanada que possivelmente abrirá ao público já no próximo Verão. O dia, soalheiro, deixa-nos a imaginar como será provar os pastéis, quentinhos, ao sol de Lisboa, ali no espaço exterior que conseguimos vislumbrar.
Trabalham nos Pastéis de Belém cerca de 160 pessoas, sendo que, dessas, 30 estão dedicadas somente ao atendimento aos clientes. À confecção dos pastéis dedicam-se cerca de 50 pessoas. São elas que, depois de feitos a massa e o creme pelos mestres, criam os famosos doces: a massa é cortada e enformada à mão, e o enchimento das formas é agora supervisionado “pelo senhor Vítor”. “O processo é automático apenas há uns oito anos”, conta o funcionário à FORBES, sem parar de ajustar formas e tabuleiros. São 18 anos a garantir que o recheio cai bem na massa. “Antes disso, as formas eram preenchidas, uma a uma, com sacos de pasteleiro”, explica.
“Encher as formas automaticamente não tem qualquer influência no produto, em termos de resultado final”, explica Miguel. “Por isso é que o fazemos”. Enquanto isso, já Vítor colocou um novo panelão de creme nos ganchos que agora substituem os dois homens que seriam necessários para o levantar, e que o vertem para dentro da máquina que continuará a encher os tabuleiros até que estejam prontos a cozer.
O segredo está nos mestres
Os três fornos têm, cada um, capacidade para cozer 900 pastéis de cada vez. Em Agosto, por norma o mês mais agitado, funcionam a todo o vapor durante todo o dia.
Os pastéis são depois deixados a arrefecer à vista dos clientes, por detrás da enorme janela de vidro que separa a fábrica da zona da loja, e é com muita destreza que são desenformados, à mão, e triados para irem para as mesas ou para o balcão. “Os que estão muito queimados, por exemplo, ou vão para o lixo, se não puderem ser consumidos, ou vão para instituições de solidariedade social aqui da zona”, explica Miguel.
Lá fora, apesar de ser Fevereiro, a fila de turistas e lisboetas não para de aumentar. “Estimamos servir uma média de quatro a cinco mil pessoas por dia, pela quantidade de pastéis que vendemos”, diz-nos o responsável enquanto passeamos de bata e touca por entre os funcionários que já não conseguem comer pastéis. “Há anos que não como um”, conta-nos uma das senhoras, enquanto a do lado comenta que “assim de vez em quando ainda vai, mas às vezes até o cheiro enjoa”. Não conseguimos perceber bem o que elas querem dizer, enquanto pelo nariz só sentimos um cheirinho a memória e nem cogitamos ser possível fartarmo-nos daquele odor doce com travo a canela.
Queremos saber mais sobre a misteriosa receita. Miguel sorri e diz que “apesar do que às vezes se escreve nos jornais, não temos a certeza se já tentaram roubá-la muitas vezes. Temos algumas pessoas que afirmam sabê-la, mas também ainda não temos provas de que seja verdade”. Na verdade, “mesmo que a tivessem, não é a receita em si que é o segredo. É a receita aliada ao conhecimento, à experiência. Duvido de que alguém conseguisse fazer Pastéis de Belém à primeira mesmo que tivesse a receita original”, garante. A receita, essa, passa de boca em boca e não é certo de que esteja escrita em algum lugar. Miguel não confirma nem desmente a informação. “Essas dúvidas, esse mistério, também fazem parte da casa, não é?”, continua de olhos brilhantes, antes de explicar: “quando é escolhido um novo mestre, a receita é ensinada pelo antigo, passo-a-passo. Não temos receio de que os mestres revelem a receita – e não seria o contrato de confidencialidade que os impediria. São pessoas escolhidas com muito critério, não chega ser o melhor pasteleiro. Por norma são pessoas que trabalham connosco há 15 ou 20 anos, que têm uma conduta na qual confiamos, que fazem parte da nossa história e que sabemos que a querem perpetuar. Até agora tem corrido bem”, remata.
Pastéis de Belém só mesmo em Belém
A atenção aos detalhes espalha-se a toda a gestão da empresa. Por exemplo, a manutenção das máquinas é feita por pessoas que trabalham na Fábrica. “Têm de estar sempre a ser afinadas, e como estão sempre a funcionar, o Sr. Alves até nas folgas recebe telefonemas, coitado”, comenta Miguel. No entanto, a automatização só serve para acelerar processos, não podendo provocar qualquer alteração nos pastéis. O responsável pela gestão desta empresa secular revela que grande parte do investimento realizado tem sido dedicado a isso.
“Temos de ir evoluindo, não perdendo todo o processo artesanal, mas respondendo sempre, também, às regras que vão sendo impostas”,
em termos de qualidade e segurança no trabalho. Outra das apostas tem sido nos espaços dedicados ao pessoal, “que tem de se sentir bem, tem de sentir esta casa como sua”. Quanto à eventual exportação dos famosos pastéis ou venda em outros pontos do país, não está nos planos. “Não temos capacidade de produção, por um lado, e por outro o processo artesanal é muito dos Pastéis de Belém. O produto é perecível e até à data não nos fez sentido permitir a revenda ou congelar, porque não conseguimos garantir a qualidade do produto final”, refere Miguel, embora admita que “as próximas gerações possam continuar a fazer testes” nesse sentido. Aliás, o facto de os Pastéis de Belém só serem servidos num único lugar, o mesmo onde já se comiam há mais de um século, acrescenta valor à marca. “Dá-lhes uma certa magia, não é?”Dá magia e garante vendas com um investimento muito reduzido em publicidade. Há mais de cinco anos que a Antiga Confeitaria de Belém regista mais de 8 milhões de euros em vendas, todas no mercado nacional.
Indiferente à crise, este negócio guloso sentiu pouco os efeitos da quebra da economia – depois de um ligeiro decréscimo em 2012 e 2013, a facturação da empresa cresceu quase 6% em 2014 e terá subido cerca de 3% em 2015, considerando os valores provisórios relativos ao ano passado: 9 milhões de euros, avança o responsável da companhia. “Temos muita sorte, porque estamos mesmo ao lado do Mosteiro dos Jerónimos. Temos uma localização muito privilegiada. E claro que a mensagem vai passando, porque as pessoas passam, vêem as filas à porta, ficam curiosas…”, nota o responsável.
Tão rápido como apareceu, Miguel despede-se e desaparece por entre os clientes que enchem três das salas abertas, a caminho do escritório onde o trabalho nunca pára. Aqui não há Sábados, Domingos ou feriados – aliás, existem, mas esses dias são os que mais gente levam à Confeitaria. Por detrás do vidro, na sala onde estivemos ainda há pouco, o ritmo mantém-se inalterado: sem parar, formas vão sendo cheias de massa, depois de creme; os tabuleiros entram no forno e saem, escaldantes, para arrefecer; e os milhares de pastéis seguem o seu caminho, para as bocas ávidas de provar – ou relembrar – o sabor do segredo conventual mais badalado do país.