Em 2023, abriu em Lisboa uma livraria que foi notícia em diversos meios de comunicação. Porquê? Só vende livros escritos por mulheres. Se o facto de o tema ser notícia não deixar já claro o quão pouco comum, e por isso necessário, isto é, as reações às notícias fazem esse trabalho. “Que exagero”, “sexismo”, “imagina se só vendessem obras escritas por homens” ou “não é justo” são algumas das coisas que se podem ler pelas redes sociais.
O que muitos decidiram não lembrar é o facto de que as livrarias sempre estiveram recheadas de obras escritas por homens. Já em relação à mulher, Virginia Woolf defendia que esta necessita de “um quarto só seu” e de estabilidade financeira para dar asas à criatividade. Em muitas sociedades, isso ainda não é uma realidade.
“Se quiserem abrir uma livraria apenas com homens apenas precisam encontrar uma loja muito ampla, não pequena como a minha. O problema é que qualquer coisa, por mais mínima que seja, que façamos para alcançar alguma igualdade sempre será vista como um grande ato de violência contra os homens” diz Lorena Travassos, proprietária da Livraria Greta, à Forbes.
O projeto é um sonho antigo de Lorena, mas só foi possível depois de um crowdfunding e do apoio do café Mokambo, da Nestlé, para comprar os primeiros livros do acervo da livraria. Foi exatamente aqui que se encontrou o primeiro problema: É que a produção de livros escritos por mulheres e pessoas não-binárias que se consideram feministas, os únicos que vende na livraria, “ainda é muito inferior àquela produzida e publicada por homens, infelizmente”.
Mas não fica por aqui. “Não consigo quantificar, mas noto que é preciso rolar a página várias vezes até encontrar uma publicação feita por uma mulher nos catálogos das editoras”, conta Lorena. As obras escritas por mulheres estrangeiras demoram a chegar a Portugal; também nesta indústria há menos mulheres nos cargos de chefia; no 8.º ano, por exemplo, de 34 livros indicados no programa, apenas cinco são de mulheres e no 9.º ano, de 30 livros apenas quatro foram escritos por mulheres. “No fim, os alunos das escolas portuguesas podem terminar os seus estudos sem ter lido nenhum livro escrito por mulheres, mostrando que o Estado é também um entrave para o conhecimento e publicação desses livros”, afirma.
Confrontada com o mesmo cenário, Helena Magalhães avançou com a editora Aurora, em parceria com o Grupo Infinito Particular.
“Quisemos abrir um diálogo em torno de uma questão em particular, muito pouco defendida e discutida em Portugal, mas também muito fraturante: a falta de espaço e de oportunidades dadas às mulheres na literatura em Portugal. Eu gostava de fazer um trabalho, até meio sádico, de ir às livrarias e, na estante da literatura lusófona, contar o número de autores homens versus mulheres. Era uma coisa que fazia já de forma inconsciente sempre que entrava numa livraria e as desigualdades eram gritantes”, conta à Forbes.
Também aqui a iniciativa lidou com um coro de críticas, algo que só veio mostrar que o caminho é exatamente este. E a mudança já está à vista. “Sempre que se abordam as desigualdades existentes em Portugal, que uma grande fatia dos portugueses continua a ignorar porque somos um povo ainda muito patriarcal e conservador, isso gera controvérsia. Mas nós sabíamos que a crítica vinha precisamente de um espaço de reflexão e mostrava que estávamos a tocar nas feridas certas das nossas fundações enquanto sociedade. Mas as críticas foram passageiras e a Aurora veio fazer aquilo que era o nosso objetivo: abrir este diálogo e aumentar a presença de vozes femininas na literatura em Portugal. E isso reflete-se nos números. Nunca se publicaram tantos livros escritos por mulheres como nos últimos dois anos”, garante.
Mudança (nome feminino)
Além de fazer a curadoria da Aurora, Helena Magalhães é uma das mulheres que podemos encontrar nas prateleiras onde os nomes femininos começam a ganhar mais espaço. A autora de “Diz-lhe que Não”, “Raparigas como nós”, “Ferozes” e “A Devastação” sente na pele o que é ser mulher no universo literário.
“Hoje até me desafia a explorar ainda mais a minha arte e a minha criatividade, serve-me até de gatilho para continuar motivada. Este ano lancei ‘A Devastação’, um livro que faz uma crítica social ao patriarcado português e à conivência da Igreja com os abusos sexuais, e nenhum crítico o quis ler, foi recusado por grande parte das revistas e jornais, há um desinteresse generalizado. Cheguei a saber de uma colega jornalista que disse que não precisava de ler para saber que não prestava, o que me tem feito refletir, claro, mas também me ajuda a canalizar essas emoções para o meu trabalho”, conta.
Só que valor e vendas são duas coisas diferentes quando se fala deste tema, o que torna ainda menos justificável o facto de não se valorizar aquilo que mais está a vender. Helena dá o exemplo de Collen Hoover, um fenómeno adolescente que no ano passado ultrapassou as vendas de Dr. Seuss, James Patterson e John Grisham juntos. Mas é aí que se afunila o preconceito e, não podendo questionar a autora, porque as vendas falam por isso, alarga-se a desvalorização para o género literário.
“As vendas não refletem essa diferença, muitas autoras não aceites na sociedade literária vendem mais que muitos autores bem estabelecidos no mercado. Collen Hoover é um fenómeno de vendas que, ao mesmo tempo, é continuamente desvalorizado por serem romances centrados num público adolescente. Pelo que um dos maiores problemas talvez seja o tentar-se engavetar os autores e os géneros literários”, defende.
Maria Francisca Gama, autora de “Madalena” e “A Profeta”, segue o mesmo pensamento que Helena. E a mesma experiência quando se coloca na frente das estantes de uma livraria.
“Enquanto leitora e pessoa que passa algum tempo nas livrarias a olhar para as estantes, reparo que predominam homens nos destaques e na secção de autores portugueses. Claro que cada um lê o que quer e que bom que assim o é, mas acho que não partimos todos do mesmo ponto porque há um preconceito associado às mulheres: ora só falam de amor, ora só escrevem histórias fáceis, com finais felizes e cheios de corações e beijos esvoaçantes. Não é o meu caso, e não é o caso de muitas das mulheres portuguesas que leio, mas estou certa de que, infelizmente, muitos leitores não o sabem”, diz Maria Francisca à Forbes.
Para que este cenário mude, a reforma tem de começar na base de todo o processo. Maria Francisca deixa o exemplo: Está numa editora chefiada por uma mulher (Clara Capitão), a sua editora é uma mulher (Diana Garrido), o seu próximo livro foi revisto, paginado e ilustrado por mulheres. “Se há remodelações nas estruturas, isto é, nos locais que publicam os livros, há margem para que entrem pela janela novos ares: acho que, neste momento, com as pessoas certas, partimos do mesmo ponto, independentemente do sexo ou género”, defende.
Ler no digital
A tendência estava a acontecer em vários lugares e Portugal não escapou: o número de leitores era cada vez mais reduzido. “Se pensarmos que todos saímos da escola com uma bagagem de leitura extremamente antiquada, a percentagem de jovens que passava anos sem voltar a pegar num livro era demasiado elevada, tornavam-se adultos que não liam um livro há anos e anos”, diz Helena. Mas a tendência começa a mudar de sentido e as redes sociais são o motivo.
Os números divulgados pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) indicam que 62% dos inquiridos compraram livros no último ano. É verdade que o número ainda corresponde a menos de dois terços dos portugueses, mas significa um aumento de leitores em relação aos anos anteriores. Principalmente entre os mais jovens.
“Tendo completado há pouco tempo 26 anos, agradam-me especialmente os mais recentes dados estatísticos, quanto à compra e leitura de livros: afinal, a geração que todos diziam querer tudo rápido e mastigado, tem cérebro e pretende usá-lo”, afirma Maria Francisca.
Se o digital também trouxe pontos negativos? Sim. Mas para isso Maria Francisca tem uma solução simples: “O online é perfeito para espalhar mensagens, sejam elas a favor da inclusão ou longe desse ideal. Os machistas deviam ler mais e comentar menos coisas nas redes sociais”.
Aprender com quem não sabe
“Se olharmos a fundo para muitos dos grandes autores da História portuguesa e os lermos à luz dos dias de hoje, claro que pouco sentido faz: muitos tinham visões misóginas, racistas e os seus livros estão cheios de personagens que refletem a forma como era o mundo de então e o papel reduzido e limitado que as mulheres tinham. Quando entramos nos autores de hoje, muitos escrevem sobre mulheres de forma muito enviesada e com base nas suas próprias fantasias e visões masculinas. É por isso que é tão importante que haja mais mulheres no plano nacional de leitura e nas leituras do plano curricular, porque temos toda uma geração de jovens que continua a aprender sobre o mundo pela visão dos homens”, afirma Helena Magalhães.