É hora de almoço na Arizona Beverages. Don Vultaggio e meia dúzia de executivos de topo percorrem as salas da excêntrica sede da empresa em Long Island, Nova Iorque. A recepção tem a forma de uma lata de bebida, nas paredes alinham-se caveiras e o átrio é um decalque de uma estação de metro nova-iorquina: tudo obra dos carpinteiros da casa, a quem foi atribuída a missão de criar um espaço kitsch.
“Lembra a fábrica de chocolate de Willy Wonka, não acha?”, comenta um indivíduo que sai da cafetaria inspirada na estética da década de 1950, onde se destaca um relógio gigante feito com rodas dentadas.
Dirigem-se ao escritório de Vultaggio – o gabinete privado de Wonka – que inclui uma sala de estar palaciana, cozinha e mesas descomunais. Todas as tardes, o “gigante” Vultaggio (mais de 2 metros de altura) transforma o gabinete num restaurante de cinco estrelas. As reuniões decorrem ao sabor de um menu composto por vários pratos e porções generosas confeccionadas pelo seu chef pessoal, Armando. “Um dia veio cá um tipo de uma grande empresa e perguntou-me: ‘Qual é a dimensão do seu departamento de marketing’’”, diz Vultaggio com um sorriso afectado enquanto abre uma lata de Arnold Palmer Zero, da Arizona. “E eu respondi: ‘uns 2 metros’”.
Se está a pensar em anúncios publicitários ou outdoors dispendiosos, esqueça. Don Vultaggio sabe muito bem o que é preciso para dar as vistas. Cresceu em Brooklyn e viu sempre mais alto – privilégio da sua estatura. Quando começou a fabricar cerveja nos anos 1980, apostou em cartazes provocadores e numa bebida à base de malte a que chamou Crazy Horse – como veremos à frente, houve aqui um percalço.
Depois, no início da década de 1990, Vultaggio lançou-se na indústria dos chás ready-to-drink (prontos a beber). A sua proposta: uma lata de iced tea de 70 cl com cores garridas a menos de 1 euro. Era maior, mais arrojada e mais barata do que os produtos da concorrência. A estratégia foi um sucesso apesar dos gastos em publicidade terem sido praticamente nulos.
Se está a pensar em anúncios publicitários ou outdoors dispendiosos, esqueça. Don Vultaggio sabe muito bem o que é preciso para dar as vistas.
“Tomámos o mercado de assalto, assim do nada!”, explica Vultaggio, 65 anos, sentado entre filas e filas de latas e garrafas da Arizona, desde os modelos mais antigos aos mais recentes. “A Arizona é uma das poucas empresas de bebidas que começou do zero e se transformou numa empresa milionária em menos de 20 anos. É uma das maiores histórias de sucesso da indústria”, realça Michael Bellas, presidente da Beverage Marketing Corp., uma empresa de consultoria e research sediada em Manhattan.
Talvez seja, mas é possível que a empresa seja mais conhecida pela agressiva batalha judicial travada entre Vultaggio e John Ferolito do que pelas cores garridas das suas latas de bebidas. Ferolito foi sócio de Vultaggio durante 40 anos, detendo cada um 50% da empresa.
O processo entre ambos arrastou-se nos tribunais perto de dez anos e tornou-se num caso de estudo devido a uma luta interna que conseguiu estrangular um líder de mercado. Ficou para a história como uma das maiores dissoluções empresariais da cidade de Nova Iorque e só em 2015 é que as duas partes chegaram a um acordo que deu a titularidade da Arizona Beverages a Vultaggio, como ele sempre desejou.
“Sabia que ia comandar esta fábrica gigante e sonhava acordado com o dia em que isso iria acontecer”, explica, servindo-se de uma posta de salmão acabada de sair da grelha de Armando.
Para um miúdo que cresceu num bairro operário de Brooklyn na década de 1960, isto era o mesmo que sonhar muito alto.
Arriscar de cabeça
Quando saía da escola, Vultaggio ia empacotar mercearias numa pequena loja local. O pai, que geria um supermercado, muitas vezes arrancava o filho da cama para inspeccionar o “local do crime” quando havia um assalto ao supermercado.
A meio do liceu, convencido de que não era a escola que iria tornar o seu sonho realidade, tentou desistir dos estudos. Não disse nada à mãe e foi trabalhar para a Piels, uma fábrica local de cerveja do pai de um colega de liceu, como funcionário de reposição de stocks. Quando a fábrica fechou, em 1973, Vultaggio entrou para o negócio da distribuição com uma carteira que incluía as marcas mais populares, até que conheceu o sócio ideal, John Ferolito, um jovem que trabalhava na distribuição de cervejas e com quem partilhou “ideias grandiosas sobre negócios”.
O negócio que montaram era tudo menos grandioso: um grupo de miúdos que tinha um escritório sombrio em Brooklyn e uma velha carrinha para entregar cervejas e sodas em bairros ainda mais perigosos que o seu. Vultaggio solta uma gargalhada e diz: “Parecíamos o slogan da Star Trek: ‘íamos onde nenhum homem jamais fora’”.
Não foi fácil. Segundo as contas de Vultaggio, foram roubados em mais de cem ocasiões – peripécias que adora contar vezes sem conta aos convidados sentados à volta da sua mesa gigantesca, como aquela em que um indivíduo entrou pelo seu escritório adentro e lhe encostou uma arma à cabeça para o obrigar a entrar num armário.
Ou aquela em que lhes roubaram os computadores acabados de comprar, ou ainda a história de um ex-funcionário que assaltou um camião a meio da noite e que encontraram uns quarteirões adiante a vender a cerveja roubada. Muitas vezes, era ele e Ferolito quem ia atrás de eventuais suspeitos, porque a polícia tinha coisas mais importantes para fazer. “Naqueles tempos, mais parecia o Faroeste. O alarme tocava todas as noites”, recorda a mulher de Don, Ilene Vultaggio, 41 anos.
Em 1985, os sócios estrearam-se no fabrico de cerveja: a Midnight Dragon, à base de malte, comercializada numa garrafa de 120cl. O cartaz promocional exibia uma jovem com lingerie vermelha, uma palhinha na boca e a seguinte legenda:
“Passava a noite a chupar isto!” Vulgar, não é verdade? Sim, mas eficaz. Ao fim de poucos anos desistiram das outras marcas e dedicaram-se exclusivamente à venda da Midnight Dragon.
Em 1992 foram mais longe e lançaram uma segunda cerveja de malte – a Crazy Horse –, cujo design se inspirou nos antigos westerns. Foi outro sucesso, mas por poucos meses. Grupos de índios nativos americanos consideraram o nome ofensivo e o Congresso acabou por proibir o uso do nome “Crazy Horse” em todas as bebidas destiladas ou à base de malte.
O processo judicial arrastou-se ao longo de vários anos e Vultaggio acabou por chegar a um acordo com os nativos em 2004, e deu um novo nome à bebida: Crazy Stallion. Mas, por essa altura, já novos planos estavam em marcha.
“Chá gelado no Inverno?”, pensou Vultaggio. “Vou apostar no negócio dos chás!”. E assim foi.
A Arizona Iced Tea nasceu em 1991 num dia cinzento do mês de Fevereiro. Vultaggio estava num restaurante de Manhattan a vender a sua Midnight Dragon quando chegou um camião da Snapple e começou a descarregar caixas atrás de caixas. “Chá gelado no Inverno?”, pensou. “Vou apostar no negócio dos chás!”. E assim foi.
Vultaggio e Ferolito visitaram uma fábrica na zona Sul de Nova Jérsia para negociar uma garrafa de 50cl e rótulo – em tudo semelhantes à Snapple. “A caminho de casa, dei por mim a pensar: ‘porque é que os clientes vão comprar o nosso produto quando gostam da Snapple?’ Quando saímos da alameda de Brooklyn já tínhamos decidido não entrar no negócio dos chás”, explica Vultaggio.
A ideia ficou na prateleira durante dois meses e só depois de os dois sócios tropeçarem numa lata de 70cl de Gatorade, algures numa loja, é que se fez luz. Ou melhor, lembraram-se de um tipo de lata que costumavam ver no tempo em que faziam distribuição: as latas usadas pela marca Schlitz. “É isto que nós queremos! Vendemos 70cl pelo preço de uma Snapple de 50cl”, recorda Vultaggio.
O raciocínio foi quanto maior, melhor. Além disso, o êxito da cerveja de malte também lhe ensinara que quanto mais arrojado um produto, mais saída ele tem. E, para isso, não tinha de ir muito longe. Por essa altura, Vultaggio já transformara a sua casa em Queens numa estrutura algo sui generis: estuque branco e azul-turquesa, cobras com pintas cor-de-rosa enroscadas na garagem e um jardim de cactos.
Uma explosão de cor no meio de fachadas cinzentas – o padrão perfeito para entrar numa indústria onde a quota de mercado se ganha e se perde nos dois segundos que os clientes levam a escolher uma bebida numa loja de conveniência.
Vultaggio e Ferolito escolheram “Arizona” por ser um nome que remete para um estilo de vida saudável e puseram mãos à obra para criar um design que chamasse a atenção, à imagem da casa de Vultaggio em Queens. Nas primeiras latas de chá, com sabor a limão e framboesa, apostaram no rosa forte e no azul-turquesa.
Chegaram ao mercado em Maio de 1992 e o sucesso foi imediato: 18 milhões de caixas vendidas em apenas três anos. Os sócios reinvestiram os lucros na criação de novos sabores: pêssego, em 1994, manga, em 1995, e chá verde e ginseng e mel, em 1996 – que ainda hoje é o produto mais popular da marca. No início dos anos 2000, a Arizona vendia mais chá gelado do que a Snapple.
Mais tarde, em 2002, fechou um importante negócio: produzir a lendária Arnold Palmer Half & Half: metade chá gelado, metade limonada. Vultaggio contava que fosse um sucesso entre os jogadores de golfe, mas acabou por também ser um êxito de vendas nos supermercados. Este ano, em parceria com a também norte-americana MillerCoors, adicionou-lhe malte, criando a versão alcoólica Arnold Palmer Spiked.
Um divórcio quase fatal
Na última década, a Arizona esteve prestes a sucumbir à disputa entre Ferolito e Vultaggio. Tal como a maior parte dos divórcios, também este teve raízes profundas. Os problemas terão começado quando os sócios mudaram a sede da empresa de Brooklyn para Long Island, em 1994, decisão que afastou Ferolito do seu território, Nova Jérsia.
Nos documentos apresentados no tribunal, Ferolito alegava que, antes da mudança, Vultaggio dedicava-se essencialmente à supervisão do armazém, mas que depois disso passou a envolver-se em todas as vertentes do negócio. Começaram então os desentendimentos sobre o estilo de gestão e a tomada de decisão. Ferolito diz que Vultaggio começou a “tratá-lo com desconsideração”, recusando-se “a reunir com ele ou a atender as suas chamadas”, chegando, inclusive, “a evitá-lo quando estavam na empresa”.
Vultaggio refuta as acusações dizendo que, antes de mudarem a sede, já era ele quem geria a empresa e que Ferolito se afastara da parte operacional do negócio.
Os sócios acabaram por chegar a um acordo em 1998: Vultaggio passaria a gerir as operações, mas Ferolito mantinha a participação de 50%, tendo direito a metade dos lucros e uma palavra a dizer (meio voto) nas principais decisões. Vultaggio continuou a expandir o negócio da Arizona e Ferolito ficou com mais tempo livre para jogar golfe e dedicar-se à gestão dos seus investimentos pessoais, incluindo um campo de golfe em Colts Neck, Nova Jérsia.
“No dia em que ele me disse que queria vender o negócio, tentei dissuadi-lo”, conta Vultaggio, mas como o sócio continuava a insistir, decidiram explorar a possibilidade de vender os 50% de Ferolito a uma multinacional que pudesse funcionar como parceiro estratégico.
O problema é que Vultaggio gere o negócio como se fosse um prolongamento da sua pessoa. Adora contratar amigos e família, e fazer panquecas e omeletas para os cerca de 300 funcionários da empresa no seu aniversário. Ora, os compradores queriam algo que Vultaggio não iria ceder: o controlo da empresa. E explica porquê. “Tenho visto o que as grandes empresas fazem aos negócios pequenos e aos pequenos empreendedores. Há alguns casos de sucesso, mas a maior parte não resulta, pois, regra geral, atiram fora as ideias do empreendedor e impõem a sua filosofia e cultura empresarial”.
Como seria de esperar, Vultaggio não avançou com a venda. Sem acordo à vista, os dois sócios iniciaram uma saga de processos judiciais. Ferolito acusava Vultaggio e os executivos da Arizona de “opressão” e “conduta fraudulenta”, e de terem conspirado acabar com a distribuição de dividendos para o pressionarem a vender as suas acções com um desconto elevado.
O problema é que Vultaggio gere o negócio como se fosse um prolongamento da sua pessoa. Adora contratar amigos e família e fazer panquecas e omeletas para os cerca de 300 funcionários da empresa no seu aniversário.
Vultaggio contrapunha que Ferolito só pensava nos seus interesses pessoais e não nos da empresa “por puro egoísmo”, e que chegara a visitar a sede da Arizona acompanhado por cinco homens armados para intimidar o pessoal. “O processo judicial é uma espécie de tragédia grega”, reconhece Vultaggio. Ferolito, por sua vez, recusou-se a comentar.
Entretanto, os advogados começaram a apertar o cerco, questionando todas as decisões que pudessem afectar o balanço da empresa e comprometer o potencial preço de venda. Os melhores gestores evitavam a Arizona com receio de ficar no desemprego pouco tempo depois. Os planos de crescimento foram suspensos e Vultaggio deu por si a perder mais tempo com tribunais do que com o negócio propriamente dito. Os concorrentes, claro, aproveitaram.
“Foi assim que a Gold Peak e a Pure Leaf conseguiram entrar no mercado”, diz Bellas, consultor da indústria e testemunha no processo judicial. A Coca-Cola investiu na Gold Peak, enquanto a Pepsi apostou na Pure Leaf, em busca de alternativas ao declínio no consumo de sodas.
Paralelamente, surgiram start-ups com propostas de chás orgânicos, no âmbito do conceito bebidas saudáveis, como o chá de kombucha – feito a partir de chá preto ou verde adoçado e produzido por fermentação – da GT’s Living Foods.
A quota de mercado da Arizona nos EUA caiu de 20% em 2011 para os actuais 17%. “É como um comboio. Se separarmos a automotora das carruagens, o comboio vai continuar a andar… mas acabará por parar”, diz Vultaggio a propósito das consequências do processo judicial.
Pronto para conquistar o mundo
Findo o litígio, o tribunal decretou que Vultaggio teria de pagar cerca de mil milhões de euros a Ferolito pela participação deste na empresa (50%). Em Abril de 2015, as partes continuavam desavindas sobre os termos exactos, mas acabaram por chegar a um acordo confidencial no mesmo mês e o processo foi encerrado.
A Arizona pagou a Ferolito, usando dinheiro da empresa e um empréstimo bancário, que Vultaggio afirma estar praticamente amortizado. Ou seja, o comboio está de novo em andamento.
Vultaggio voltou, assim, a meter mãos à obra, testando novas linhas de produtos na esperança de complementar o leque de chás em carteira, mas sem os eliminar. Lançou a Good Brew, que concorre no mercado de rápido crescimento dos chás premium com os chás Tazo da Pure Leaf e da Starbucks, e começou também a investir nas águas minerais.
As bebidas alcoólicas também estão na mira, incluindo a Crazy Stallion e outras seis marcas próprias, apesar de representarem menos de 5% das vendas. Além disso, em Julho de 2016, Vultaggio chegou a um acordo com a Molson Coors para produzir uma nova versão da Arnold Palmer e, em Agosto, começou a importar uma lager (cerveja) da Alemanha chamada WinterStern. Mas não só.
A aposta também recai em aperitivos, como a pequena linha de nachos que já comercializa há alguns anos e o recém-lançado Crazy Cowboy, um snack de carne seca e salgada que visa estimular as vendas em lojas de conveniência oferecendo um produto que casa bem com o chá Arizona. Está também em curso a construção de uma nova fábrica em Nova Jérsia. Mas, para Vultaggio, o crescimento virá dos mercados internacionais. “Até aqui, explorámos muitos mercados, mas apenas de forma superficial”, explica.
A Arizona está presente no Canadá desde a década de 1990 e começou a vender os seus produtos no México em 2007. Próxima paragem? Europa, onde vai apostar numa expansão agressiva. “Há oportunidades para nós no mercado europeu e podemos fazer na Alemanha ou em Itália o que fizemos nos EUA”.
Nem todas as previsões são tão optimistas. “É muito difícil uma marca americana conseguir internacionalizar-se”, realça Tom Pirko, presidente da consultora Bevmark e antiga testemunha de Vultaggio. “Mas se o produto tiver o seu quê de diferente, os clientes vão querê-lo”.
Na sua opinião, porém, a Arizona só poderá crescer se investir num marketing mais sofisticado. Quando perguntámos a Vultaggio se um anúncio de televisão tradicional poderia ajudar a expandir a marca, disse: “Não tenho resposta para isso porque a publicidade tradicional morreu”.
Daqui se infere que as campanhas que sempre fez, simples e pouco sofisticadas, vão continuar na ordem do dia. “O nosso plano de marketing é fazer com que o produto seja apelativo, saiba bem e tenha um preço justo”. Vultaggio prepara-se deste modo para conquistar o mundo.