É no mínimo curioso que uma das maiores empresas portuguesas de produtos de peixe congelado importe quase todo o peixe do exterior. Assim sucede na Gelpeixe, um dos maiores players do mercado nacional desta área.
Os fornecedores são praticamente todos internacionais, de países tão exóticos como África do Sul e Índia. De todo o peixe utilizado, apenas 2% do pescado provém de águas nacionais, na sua maioria sardinha.
De acordo com Manuel Tarré, presidente executivo da empresa, a importação não é uma opção, mas uma necessidade, pois só assim a Gelpeixe consegue manter um constante ritmo de vendas todos os meses, que está perto das 40 toneladas de peixe por dia. “O peixe não passa de moda”, diz Manuel à FORBES, nas instalações da empresa, em Loures.
A procura de pescado continua a ser estável, principalmente em Portugal, o quarto maior consumidor de peixe no mundo per capita, com 53,8 quilos anuais, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação relativos a 2013.
Mas há um enorme problema: as mudanças nos ciclos reprodutivos desta matéria-prima estão a fazer com que os cientistas e produtores cocem a cabeça de confusão. Isto é: começa a não haver peixe onde tradicionalmente costumava haver.
Ao contrário da aquicultura, o peixe de mar, o mais procurado, não é de reprodução controlável. As alterações climáticas estão a fazer com que as espécies “desapareçam dos sítios onde deviam estar e não estão”, explica Manuel.
“O peixe não passa de moda”, diz Manuel Tarré à FORBES, nas instalações da Gelpeixe, em Loures
Ainda mais estranho quando espécies que se reproduzem muito depressa, como a lula, deixaram de se reproduzir com a normal celeridade. “Países que produziam milhares de toneladas de lula deixaram de fazê-lo. Ela não aparece!”, exclama.
O que faz soar os alarmes junto de empresas como a Gelpeixe. “O peixe, como nós o temos hoje, será uma delicatessen em 20 anos. Um quilo de peixe, quer seja fresco ou congelado, é sempre mais caro do que um quilo de frango, que alimenta mais pessoas”, assume Manuel.
A dificuldade crescente na captação de pescado levou a Gelpeixe a diversificar o leque de produtos para conseguir aumentar as vendas. Uma mudança de estratégia que se transcreveu no novo slogan da empresa, com imagem acabada de estrear: “Gelpeixe, muito mais do que peixe”.
No portefólio, fazem hoje parte géneros como carne, pão, vegetais, queijo, doçaria variada que já representam 20% da facturação total (e que, muitas vezes, não aparecem com a marca da empresa).
São mais mil referências, ao todo, no “catálogo”, contabiliza o gestor. Tudo congelado, claro. Uma diversificação que torna a empresa “mais apelativa”, mas que, do ponto de vista da rendibilidade, tem as suas desvantagens: “há referências que vendem muito pouco”, assume.
A solução para este impasse? Descobrir novos mercados, tal como o pai de Manuel começou a fazer há mais de 40 anos na então pacata região de Loures.
Dos tecidos aos congelados
A Gelpeixe foi estabelecida formalmente em 1977, mas a sua história começa a traçar-se muitos anos antes, num estabelecimento em Loures – ainda um espaço rural na orla da cidade de Lisboa – fundado em meados do século passado.
O pai de Manuel, Francisco Tarré, vendia tecidos, roupa, sapatos e chapéus às comunidades da zona. Era uma altura em que as pessoas pagavam através de letras e em que não havia variedade de produtos. À época, os alimentos eram consumidos exclusivamente frescos, recorda Manuel, com a salga a ser a única forma de conservação. Até que chegam os alimentos congelados.
Com o passar do tempo, Francisco tornou o estabelecimento mais abrangente e começou a vender alguns electrodomésticos. Corria a década de 1960 e os lares começavam a investir nestes bens em força: ferros de engomar eléctricos, fogões a gás, arcas congeladoras.
Estas últimas representaram uma oportunidade para a família Tarré, com um modelo de negócio muito especial. As arcas eram colocadas em mercearias na região de Loures. O propósito era trazer aos pontos de venda esse produto inovador que era o alimento congelado. “Nós vendíamos a arca [aos donos das mercearias] mas tínhamos a obrigação de estabelecer um relacionamento entre esse cliente e duas empresas de congelados”.
A Iglo fornecia gelados, e a Gelmar fornecia o peixe. “E, através das vendas que faziam desses gelados e do peixe, lucravam o suficiente para pagar a letra da arca. E ainda lhes sobraria alguma coisa.”
Mas alguns clientes não tinham dimensão suficiente para que as duas grandes fornecedoras estivessem dispostas a percorrer grandes distâncias para entregar poucas quantidades.
Começaram a ter clientes insatisfeitos. Sem produto, não vendiam – o que implicava terem de devolver as arcas. Concluíram que tinham de fazer algo para solucionar a falha deste modelo. “Percebemos que havia espaço para fazermos alguma coisa”, lembra Manuel. Começaram a ir buscar eles mesmos os gelados à Olá e o peixe à Gelmar para os distribuírem. Anos mais tarde, já depois da Revolução de 1974, passaram também a assumir a compra da matéria-prima. Assim nascia a Gelpeixe, que inauguraria a sua primeira unidade fabril no final dos anos 1970.
Pressão no retalho
Um dos marcos da Gelpeixe foi a entrada no circuito da grande distribuição. Com a disseminação das grandes superfícies, a rede de pequenos comércios que sustentava o negócio começou a fechar e a diminuir. Para acompanhar as mudanças, a Gelpeixe passou a fornecer produto para estes novos tipos de estabelecimento no início dos anos 1990. Nos primeiros tempos, o processo era simples: os grandes retalhistas compravam produtos com a marca Gelpeixe e vendiam-nos nas lojas.
Havia, contudo, nessa época, para estar presente nessas Mecas do consumo, um preço a pagar: para vender em determinado supermercado em vias de inauguração, a Gelpeixe pagava por referência uma determinada quantia. “Os valores que todos os fornecedores pagavam acabava por suportar grande parte da abertura de determinado supermercado”, lembra Manuel. Um esforço que, garante, “levou à destruição de muito do tecido empresarial da altura.”
A relação com a grande distribuição é “um acordo de cavalheiros”, em que ambas as partes negoceiam com “bom senso”, segundo o líder da Gelpeixe.
Mais tarde, no final da década de 1990, a abordagem das retalhistas mudou. Começaram a pedir aos fornecedores que passassem a fornecer produto para as marcas próprias dos hipermercados.
“A maior parte anuiu”, realça Manuel. A Gelpeixe embarcou. E se no início perto de 80% das vendas eram feitas através da marca própria, hoje em dia apenas um quinto das vendas da empresa diz respeito a produtos com insígnia sua, revela o empresário. Nas instalações fabris da Gelpeixe, no concelho de Loures, a FORBES constatou isso mesmo: eram omnipresentes caixas e caixas das chamadas “marcas brancas” dos grandes hipermercados.
Manuel caracteriza a relação com a grande distribuição como “um acordo de cavalheiros”, em que ambas as partes negoceiam com “bom senso”, apesar de eventuais pressões para redução de preços e realização de campanhas promocionais. Os interlocutores “podem ser mais ou menos difíceis, podem usar determinada estratégia comercial”, mas o factor bom senso prevalece na negociação, realça. E conclui: “Toda a gente sabe hoje em dia o custo da matéria-prima, de manter uma fábrica. Abaixo do preço de custo, nós não podemos viver”, diz. Contudo, não é só com a grande distribuição que a Gelpeixe factura. O mundo é um mar de oportunidades.
A média global de consumo de peixe é de 19,7 quilos, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – muito abaixo dos 53,8 quilos consumidos pelos portugueses. Isto significa que “há margem para crescer em muitos países”, assume Manuel. Contudo, é preciso analisar muito bem cada mercado antes de apostar nele a toda a força, defende o empresário. “Nós só não exportamos para mais países porque eles não nos querem comprar”, atira o gestor. “Não podemos vender peixe onde já o têm. E não podemos ir vender o nosso produto a mercados que não consomem aquilo que temos para oferecer.”
É por essa razão que Manuel não aposta no mercado chinês. Por o consumo de pescado por parte dos chineses passar exclusivamente pelo peixe fresco, qualquer tentativa de dizer que os produtos congelados são confortáveis e melhores sai gorada na China. “A tradição deles não é essa”, diz.
Mas há mais marés do que marinheiros. Um dos vectores de internacionalização da Gelpeixe é a presença em países africanos de expressão portuguesa como Cabo Verde, Angola e Moçambique, com costa mas sem peixe embalado. Manuel destaca Angola, um mercado “muito importante” para a Gelpeixe. Estão presentes há 15 anos naquele território e é onde a marca própria da empresa tem maior exposição no retalho, revela. Porém, a crise que tem afectado o país nos últimos anos devido à quebra do preço do petróleo e à falta de divisas fez com que a Gelpeixe passasse a exigir garantias de pagamento aos parceiros locais – também para assegurar o pagamento atempado aos próprios fornecedores.
A atenuar as restrições está o facto de a entrada de produtos alimentares no país ser facilitada face a outros bens. “Os produtos não têm todos o mesmo tipo de tratamento”, regozija-se. Tanto lá como cá, o peixe congelado tem o seu lugar.