Foi para os Estados Unidos numa altura em que se ia totalmente atrás do desconhecido e nem a internet estava presente para diminuir a distância entre os dois lados do Atlântico, mas tornou-se uma das melhores jogadoras da história da WNBA. O percurso de Ticha Penicheiro é contado agora no documentário “Feel the Magic: Ticha Penicheiro Against All Odds”, com realização de André Braz.
“A ideia surgiu da Betclic, eles acharam que a minha história era digna de um documentário e eu acho que, de alguma maneira, o é. É uma história de vida, uma história de perseverança, de resiliência, de luta, de acreditar nos meus sonhos”, conta Ticha Penicheiro à Forbes, numa entrevista que decorreu um dia antes da estreia do documentário, em Lisboa.

Quais foram os momentos mais especiais da sua carreira?
Acho que o primeiro foi o passo no escuro, ir ao desconhecido para os Estados Unidos com 18 anos. Estamos a falar de 1994, sem internet, sem maneira de comunicar com a família como se comunica hoje. Mas eu sabia que queria ser a melhor jogadora de basquetebol que eu pudesse ser e sabia que queria ir para os Estados Unidos, pensei que aí reunisse as melhores condições para o fazer. Foi importante ter o apoio dos meus pais, verem a sua menina partir e estarmos separados por um oceano não foi fácil. Mas acho que o primeiro passo foi o mais importante, porque se eu nunca tivesse decidido sair se calhar não estávamos aqui hoje a falar de um documentário que sai amanhã [a estreia aconteceu na passada quinta-feira, no Tribeca Festival].
Como é que foi lidar com essa mudança?
Não foi fácil, mas eu sabia que estava ali por um motivo. Também tive a sorte de levar uma amiga minha, a Clarice Machanguana, que foi uma parte importante da minha carreira e é como uma irmã para mim. No ano a seguir foi a Mery Andrade, eram o meu apoio, chamavam-nos a Portuguese Connection, isso ajudou muito à minha adaptação nos Estados Unidos. Mas eram os anos 90, não é fácil, há muitos sacrifícios que se fazem, as saudades de casa, dos amigos, da família, mas eu sabia que estava ali por um motivo e é como plantar as sementes para depois colher mais tarde. Foi isso que eu fiz.
Ouvimos muito a frase “vim para os Estados Unidos por causa da Ticha”. Como é que se sente nesse papel de referência?
Com orgulho de saber que fui um exemplo e que muita gente também arriscou porque eu arrisquei e tive a carreira que tive. Eu digo sempre que prefiro arriscar e falhar do que nunca arriscar e passar a vida toda a pensar ‘e se’. Saber que jogadores decidiram ir porque eu fui, acho que é um motivo de orgulho.
Vê alguma portuguesa a conseguir chegar à WNBA a curto/médio prazo?
Sim, por acaso é uma cliente minha. Eu agora represento a Clara Silva, que está a jogar na TCU [Texas Christian University], que jogou na seleção portuguesa e fez uma exibição incrível no Mundial. Tem dois metros e qualquer coisa e muita técnica, acho que tem um futuro incrível. Ela vai continuar a evoluir, tanto fisicamente quanto taticamente. Ainda temos três anos de espera para ver se ela consegue chegar lá, mas eu não tenho dúvidas nenhumas que ela vai ser a próxima [portuguesa] na WNBA.
Em que momento está o basquetebol feminino português?
Acho que está muito bem, tanto a seleção feminina como a masculina a competirem no Eurobasket, a jogarem bem e a vencerem jogos. Já não somos os coitadinhos que estamos no fim da Europa. Acho que a Federação está a fazer um trabalho incrível, nas camadas jovens, no feminino e no masculino. Estamos de parabéns.
Com a chegada do Neemias à NBA, o basquetebol ganhou um palco maior em Portugal. Como é que olha para esta onda de atenção à modalidade?
Finalmente. Já estávamos há tanto tempo à espera que um português chegasse à NBA e toda a gente estava a depositar a fé no Neemias. Acho que é o quarto ano dele, se não estou em erro, ele está neste momento a entrar no cinco inicial, acho que vai ser um ano importante para ele, para continuar a desenvolver-se e a deixar a sua marca na NBA. Portugal está muito orgulhoso.

A WNBA está a passar por um momento em que, por um lado, bate recordes temporada atrás de temporada, mas por outro estão as negociações de um novo acordo coletivo de trabalho e alguns conflitos com a própria comissária da liga. Como é que olha para este momento da WNBA?
Eu acho que as jogadoras estão um bocado fartas do ‘estamos só contentes porque há WNBA’. Não, já são 29 anos de WNBA e continuam a existir condições salariais, entre outras, que não estão onde deviam estar. Com o crescimento da liga, os pavilhões estão cheios, a audiência é incrível, as vendas de merchandising estão também a bater recordes, acho que as jogadoras sabem que este é o momento de pedirem aquilo que elas acham que merecem e têm todo o meu apoio.
Algumas das exigências delas passam por melhores salários, uma participação maior nas receitas da liga e a remoção do conceito de priorização, concorda com estas exigências?
Sim, é o mínimo. Aliás, a lei da priorização já acontece há três anos e eles não pagam o suficiente para exigir que as jogadoras só joguem na WNBA. As jogadoras têm mais opções, além da WNBA podem ir para a Europa, China, Austrália, podem jogar na Unrivaled, há várias opções para as jogadoras. A WNBA não tem mais nenhuma opção, as jogadoras são a WNBA, é esta a vantagem que as jogadoras sabem que têm e por isso estão a lutar para realmente receberem aquilo que merecem.
E porque é que acha que está a levar tanto tempo para que a liga responda a estas exigências?
Advogados, cada um puxa a brasa à sua sardinha. Porque eles também têm que fazer o que acham que, em termos financeiros, tem sentido e não só olhar para hoje, mas olhar para daqui a algum tempo, uma vez que isto é um contrato que vai ficar assinado por vários anos. Antes tinham medo que a liga caísse, porque já aconteceu outras ligas tentarem e depois não havia fundos suficientes e entraram na banca rota, mas também temos o apoio da NBA e temos um produto. No fim, ninguém faz favores a ninguém, as jogadoras merecem porque põem o produto, é um jogo interessante de ver, é competitivo, as jogadoras trabalham imenso para darem tudo o que têm e este é o momento em que elas acham que têm de merecer mais.
Na WNBA de hoje em dia, qual é para si o cinco ideal?
A começar por bases, eu gosto de Chelsea Gray, de Las Vegas, é uma jogadora que já tem quatro campeonatos ganhos e é uma veterana. De Las Vegas, escolho a Chelsea Gray e a A’ja Wilson, que obviamente, neste momento e com 28 anos, tem a carreira que já tem, que é incrível. Vou também escolher a Breanna Stewart, de New York. A Napheesa Collier vou pôr a três, porque ela joga a 3-4. Falta uma, vou pôr a minha jogadora, que é a Kayla McBride. Vou puxar a brasa à minha sardinha.
Ao longo dos seus anos como jogadora, pensava no fim da carreira? Preparava-o?
Quando comecei a ver que estava a luz no fim do túnel, acho que me comecei a preparar, porque o que eu não queria que acontecesse era que acabasse e que eu não tivesse outra opção. Joguei na WNBA, não joguei na NBA, os meus salários não davam para me retirar no verdadeiro sentido da palavra. Eu tinha que me retirar de jogar, mas continuar a fazer outra coisa. Então, no meu último ano, que foi em 2012, comecei a preparar-me para tirar o exame de agente e fiquei licenciada com a FIBA e com a WNBPA. Assim que terminei foi uma transição fácil, porque eu já estava preparada e eu sabia que não queria ser treinadora. Comecei a pensar no que é que queria fazer e achei que era a profissão ideal para mim, porque não tinha exatamente a mesma rotina. Eu não queria ter a mesma rotina de estar dentro de pavilhões, ver vídeos, ir aos treinos, ir para os jogos, a mesma rotina que tive basicamente toda a minha vida, mas queria continuar ligada ao basquetebol. Na altura, não havia muitas mulheres a representar mulheres e, principalmente, mulheres que jogassem, que pudessem não só ser agentes, mas mentoras, como uma irmã mais velha.

Foi mais difícil ser uma mulher atleta ou uma mulher agente?
Acho que um bocadinho as duas. Ser mulher no desporto é sempre complicado. Acho que nos dias de hoje as coisas estão um bocadinho melhores, mas ser mulher no desporto, nascer na Figueira da Foz, numa cidade pequena, num país pequeno onde só se fala de futebol, e ter conseguido a carreira que eu consegui, essa parte foi mais difícil. Quando eu me tornei agente, em 2012, o basquetebol feminino já estava mais desenvolvido, eu já estava nos Estados Unidos, é outra mentalidade, outra cultura. Acho que consegui abrir mais portas e bater a menos portas do que tive que bater quando era jovem.
Considera que é possível chegar ao fim da carreira e estar totalmente preparada ou quando acaba existe sempre um pouco de incerteza?
Depende da situação. Eu estava preparadíssima, comecei a sentir o meu corpo. De manhã quase não conseguia andar, tinha muitas dores nos pés, nos tendões de Aquiles. É preciso ter paz, estar em paz com aquilo que nós conseguimos e também sairmos nos nossos termos. E há jogadoras que se calhar não se retiraram quando deviam e depois são empurradas para fora, aí é difícil termos paz. Na minha situação, eu estou em paz plena, olho para trás e acho que consegui muito mais. Eu sempre tive sonhos grandes e queria ser a melhor jogadora que pudesse ser, mas acho que consegui exceder todas as minhas expetativas.
É melhor agente por ter sido jogadora?
Acho que sim, porque dou conselhos por experiência. Todas as coisas que elas estão a passar, eu já passei por elas. Seja perder jogos, seja o treinador não a pôr a jogar, ter de ir para a Europa e ter saudades da família. Seja o que for, seja qual for a situação, de certeza que eu já passei por ela. Acho que é mais fácil dar conselhos e meter-me nos pés delas quando eu já passei por isso.
Como é que descreve a realidade que encontrou quando se tornou agente em 2012 e a realidade que tem hoje em dia?
Deu uma volta de 180º. Há muitas mais agências agora, pessoas a querer ser agentes, porque eles olham para o basquetebol feminino como um lucro, há dinheiro para ser ganho. Eu fiz pelo amor à camisola, pelo amor ao desporto, por querer passar o testemunho para a próxima jogadora, mas neste momento é um negócio que dá para ganhar muito dinheiro.
Quais é que são os maiores desafios da profissão que tem hoje?
O maior desafio é lidar com alguns clubes europeus que continuam a ser pouco profissionais. Assinamos um contrato, chega o dia de pagar e ninguém paga. Ainda há muito pouco profissionalismo. Não em todos os clubes, eu tento sempre lidar com clubes que são profissionais e que, se calhar, estão dois ou três dias com atraso, mas, às vezes, os clubes que pagam mais – por exemplo na Turquia – são os que pagam mais tarde e que são menos profissionais. Isso ainda é aquilo que eu gosto menos desta profissão. Embora seja o trabalho delas, às vezes não é olhado como tal, assinamos um contrato e depois temos que ir para o tribunal.
Em Portugal também se fala da importância de existirem condições para que as jogadoras sejam profissionais no seu país. De que forma vê isso a acontecer?
Com mais companhias a investirem no basquetebol feminino, no desporto feminino, não olhar como um ato de caridade, olhar como um investimento, saber que eu posso dar este dinheiro e este dinheiro vai ser bem usado e eu vou ter um retorno. Se tivermos sempre medo de investir nunca vamos ter esse retorno. A Nike, por exemplo. ‘Não vamos fazer sapatilhas para as mulheres porque não vendem’. Quando se pôs o dinheiro e quando se pôs as pessoas a fazerem o produto, quando o produto foi anunciado da maneira que tem de ser divulgado, o produto vende. A A’ja Wilson e a Sabrina Ionesco têm sapatilhas, vê-se os jogadores da NBA a usarem porque é um bom produto e porque eles investiram da maneira que se deve investir. Olhar para o desporto feminino em Portugal ou em qualquer lado como uma forma de investimento e fazer por gosto, não por uma obra de caridade. Ter essa vontade, ter esse desejo de ajudar quando se deve ajudar.

Sempre foi uma líder ou ser uma líder é algo que se aprende?
Eu acho que é uma qualidade inata, mas também se pode aprender e melhorar como qualquer coisa na vida. Para mim, jogando a base, acho que é quase obrigatório, mas acho que eu também fui uma líder porque gostava de ser a primeira a chegar ao treino, a última a sair, não pedi que as minhas colegas fizessem algo se eu não estivesse disposta a fazê-lo. Isso é ganhar o respeito dos treinadores e das colegas de equipa, para depois liderar de uma maneira diferente e mais orgânica.
O que é que ainda lhe falta fazer?
Não sei, eu gostava de continuar a ter sucesso naquilo que faço. Ser agente é uma coisa que eu gosto, que me completa. O que eu quero é que as minhas clientes, as minhas jogadoras, continuem a ter sucesso dentro e fora do campo, e eu saber que estou a ajudá-las a chegar onde elas querem chegar. E posso falar da Clara outra vez, por exemplo: eu sei que o sonho dela é jogar na WNBA e eu sei que posso fazer tudo o que ela necessita que eu faça para lhe proporcionar esse sonho. Em termos de carreira, de certeza que não vou jogar mais, as botas estão arrumadas, mas acho que há sempre coisas em que podemos evoluir. Continuar a assinar as jogadoras, para mim é importante o caráter, não é só ser boa jogadora, é importante ser boa pessoa, ser respeitadora, trabalhadora. Essas qualidades que eu acho que tinha, que também vejo nas jogadoras, são coisas importantes, não terem expetativas irreais, porque se não sou eu que vou falhar e se calhar a culpa não é minha.
Foi a Ticha que deu mais ao basquetebol ou foi o basquetebol que lhe deu mais a si?
Acho que o basquetebol me deu mais. Também tive a sorte de ter um irmão mais velho e os meus pais acharem que eu podia fazer exatamente a mesma coisa que ele, que era jogar basquetebol. E nos anos 80 não é fácil dizer: a minha filha vai jogar basquetebol. Ainda por cima na Figueira não havia equipas femininas, eu tinha de jogar com os rapazes. Ter pais que fossem tão à frente na mentalidade de acreditarem que eu era igual a meu irmão, não é fácil. Mas ter começado a jogar basquetebol decididamente mudou a minha vida e eu dei muito ao basquetebol, mas acho que o basquetebol me deu mais a mim.
Jogou nos Estados Unidos e na Europa, foi campeã da WNBA e da Euroleague, nomeada uma das melhores jogadoras da história da liga norte-americana, no Hall of Fame da WNBA e da FIBA, entre uma série de outros prémios e recordes. Sente que, por tudo isto que conquistou ao longo da sua carreira, teve sempre o reconhecimento que merecia em Portugal?
O reconhecimento é feito pelas pessoas que são importantes para mim e essas pessoas reconheceram. Reconheceram o meu trabalho e os meus êxitos, mas também as vezes que eu não tive êxitos e que falhei. Se falamos da comunicação social, se calhar posso dizer que não, mas isso acho que é a mentalidade do país, que continua muito virado para o futebol. Penso que está um bocadinho melhor, mas ainda há muita coisa que se podia fazer de maneira diferente. É uma pergunta que é justa, mas que é injusta, porque a mentalidade do país não pode ser mudada por uma pessoa, tem de ser uma coisa coletiva. Não que eu necessitasse, mas as pessoas que tinham que reconhecer o que eu fiz, reconheceram e para mim isso é suficiente.
E o que é que quem vê estes números e estes títulos não fica a saber sobre a Ticha?
Sou uma pessoa muito simples. Às vezes, quando estão a ler o currículo, até digo: sou eu? Nascer numa cidade pacata, com uma família que me educou com bons valores, ter sempre os pés assentes na terra, ser humilde, essas coisas todas que são valores que são muito importantes para mim. E a verdade é que sou a mesma pessoa. Passou muito rápido, muito rápido mesmo, foram anos e anos de muito sacrifício, de muitas viagens. Acho que não mudava nada, mas sim, fazem-se muitos sacrifícios e estar fora do nosso país e da nossa zona de conforto, da nossa família, se calhar é o sacrifício número um. Mas não mudava nada. No final, sou exatamente a mesma pessoa que nasceu a 18 de setembro de 1974, na Figueira do Foz.





