Uma lata de conservas é algo estável ao longo dos anos. O que está dentro do invólucro metálico mantém-se com qualidade durante muito tempo. É um activo seguro, forte, em bons e maus tempos, tanto nos dias de prosperidade como nos de catástrofe. Não é por acaso que “no Verão, a [chanceler Angela] Merkel recomendou aos alemães acumularem conservas para 15 dias”, recorda Manuel Guerreiro Ramirez, presidente executivo da conserveira mais antiga de Portugal, a Ramirez.
A Ramirez é um exemplo de como uma empresa pode permanecer durante décadas sob alçada da mesma família. Fundada em 1853 por Sebastián Ramirez (bisavô do actual presidente) em Vila Real de Santo António, um empreendedor vindo do outro lado da fronteira, que aliou duas actividades: a produção de tecidos de juta e a preparação de atum em salmoura. Hoje, a conserveira continua nas mãos deste clã de origem algarvia, mas que está, desde a década de 1950, assente no Norte do país.
O segredo para o negócio nunca ter saído da alçada familiar deve-se ao bom senso de todos, especialmente na altura em que dois ramos da família se separaram, em 1940. Da parte de Emílio Ramirez, pai de Manuel Guerreiro Ramirez, eram poucos os sucessores, mas da parte do tio do actual líder da empresa contavam-se seis sucessores. Nesta divisão de activos prevaleceu a tal sensatez: procedeu-se a uma separação das empresas, se bem que as duas partes da família continuaram a trabalhar em conjunto durante mais de 10 anos.
A separação definitiva consuma-se em 1950, quando o ramo da família de Manuel Guerreiro Ramirez vai viver para o Porto.
Actualmente, a empresa está nas mãos de pai e filho, que lideram em conjunto, como presidente e vice-presidente da conserveira, respectivamente. Trabalham lado a lado, na mesma sala, num open space. Manuel Marques Ramirez, o filho, dá a chave principal para o sucesso das reuniões familiares: “cultivamos a família, o nosso núcleo e os nossos valores”, assegura. Alicerçam a tomada de decisões na conversa, partilhando a experiência estratégica de duas gerações.
“Há discórdias, obviamente”, diz o vice-presidente, mas “tentamos buscar o melhor de cada ideia”, sempre “com bom senso.”
Manter a tradição
Na Ramirez, há uma estratégia enraizada de geração em geração para formar gestores na família. Um autêntico modelo de educação para que os vários membros possam ganhar competências específicas no métier: pô-los a explorar o mundo desde cedo e dar-lhes uma educação internacional. Foi isso que sucedeu Emílio Ramirez que, em 1932, foi emancipado legalmente pelo seu pai, Manuel Garcia Ramirez, para estudar na Alemanha. Anos mais tarde, era Emílio quem repetia a receita com Manuel Guerreiro Ramirez, que partiu rumo a outras paragens. O actual vice-presidente da empresa licenciou-se em Engenharia Alimentar em Paris e depois foi para a Alemanha, tal como o pai, trabalhar com peixe. “Em Bremen, todos os dias de manhã saíamos para visitar os barcos que chegavam” a cidades costeiras como Kiel, no Norte do país, recorda. Quando terminou o “estágio”, Emílio cometeu “uma pequena maldade” ao filho: tirou-o do mundo para mandá-lo para a unidade fabril que a empresa tinha no remanso de Vila Real de Santo António, em 1962. Apesar de não ter ficado satisfeito com a mudança, começou a pôr as mãos na massa: implementou novos sistemas de refrigeração e lançou a lata de abertura fácil, com a anilha que todos conhecemos, a nível mundial.
O presidente da empresa recorda um dos momentos mais difíceis que teve de passar ao leme da conserveira. No 11 de Março de 1975, Manuel Guerreiro Ramirez e os filhos tinham uma metralhadora apontada a si na própria casa, em Monte Gordo. “O nosso crime era ter uma fábrica de conservas”, recorda. Foram horas de tensão até que os filhos, Manuel e Vasco, começaram a ficar com sono. Recorda-se de um revolucionário passar-lhes a mão pelo cabelo e mandá-los dormir, numa mostra de desanuviamento. Eram crianças num contexto que ainda não poderiam entender. O presidente da conserveira lembra que debelou a crise “à boa maneira portuguesa”: a conversar. Em 48 horas acabou a contestação, conta. Com os funcionários, continuou a trabalhar até ao encerramento da fábrica em 1996. As contingências do meio ambiente começaram a afectar a laboração. Acabara a matéria-prima no Algarve e, com ela, o futuro da instalação fabril naquela cidade que, década antes, ainda ouvia as sirenes que convocavam os trabalhadores, fosse à hora que fosse, quando chegava o peixe, para começar a labuta.
Saltar fronteiras
Em 2013, a Ramirez deu um grande passo ao iniciar a construção da nova fábrica, em Lavra, Matosinhos, a poucos quilómetros das antigas instalações. Quando pai e filho mostraram a fábrica à FORBES, que ocupa uma área coberta de 25 mil metros e que está a laborar desde 2015, notava-se o orgulho pelas novas instalações da empresa, sustentável ambientalmente – prevêem investir este ano no reforço da produção de energia fotovoltaica nas instalações da empresa – e que garante todas as certificações necessárias para exportar para países diferentes.
A nova fábrica, que consolidou as operações das unidades de Matosinhos e Peniche, foi construída sem recurso a financiamento bancário, alicerçada nos frutos do negócio. Manuel Guerreiro Ramirez revela que se tratou de um investimento de 18 milhões de euros – a que se somaram 6 milhões de euros de fundos comunitários do programa PROMAR – que foi garantido através de dinheiro que “nunca gastámos”. A família, diz, nunca precisou da banca, “com excepção dos anos 1940”, salienta. “Nos tempos modernos, a banca é que procurou a Ramirez. E mais não digo”, atira, sorrindo. Em tempos mais recentes, já em época de crise, o presidente executivo da conserveira recorda que os bancos, em 2013, não tinham dinheiro para emprestar à Ramirez. “Muitos banqueiros disseram-me depois que tiveram muita pena de não terem sido os mentores financeiros desta obra”.
Actualmente, a empresa exporta para cerca de 40 países, tem um portefólio de 18 marcas e produz, em média, 300 mil latas por dia.
O mercado internacional é uma aposta centenária da Ramirez. Contudo, longe vai o ano de 2008 em que, pela primeira vez, o mercado externo superava o mercado doméstico – muito por conta de um negócio de 3 milhões de euros assinado com o Governo venezuelano de Hugo Chávez, que pressupunha a troca de petróleo por alimentos. Porém, hoje, se bem que com menos vivacidade face a outros tempos, a exportação continua a ter grande relevância na estratégia de crescimento da empresa. Exemplo disso é a aquisição, em 2016, de uma marca de Setúbal, a Berthe, que exportava sardinha em azeite para França. Tudo isto depois de mais de cem anos desde o arranque da internacionalização da empresa, depois de o filho do fundador, Manuel Garcia Ramirez, ter impulsionado, no final do século XIX, marcas como a Cocagne, ainda hoje uma insígnia icónica na Bélgica.
Ao sabor da vontade do mar
Fingindo indiferença às variáveis do mundo, pai e filho continuam a trabalhar no crescimento da sua empresa. Quando interrogado sobre como vê a Ramirez nos próximos dez anos, Manuel Guerreiro Ramirez responde peremptoriamente: “no mundo que hoje conhecemos, alguém pode tomar uma estratégia? Quando os bancos podem falir, quando têm juros negativos, quando tudo pode ruir, quando a grande tempestade está desenhada no horizonte?”. Um pessimismo lúcido. “Continuamos a trabalhar como se a tempestade não existisse. O único projecto que temos é o de ter uma indústria que fabrica um bem essencial.” As conservas, que nos salvam nos bons e maus tempos, perenes nas prateleiras das nossas despensas, dizem.
Golfinhos em fila indiana em Leça, orcas na costa do Algarve, flamingos no estuário do Mondego e no Douro. O exotismo de espécies a aparecer em sítios onde não eram habituais parece não ter que ver com o negócio da Ramirez. Mas tem, e muito: são exemplos grotescos que os dois gestores citam à FORBES para mostrar como o aquecimento global os afecta num factor importantíssimo: a matéria-prima. “Nós éramos o país que mais exportava sardinha”, assegura Manuel Guerreiro Ramirez. “Qualquer coisa que se passasse na Europa em sardinha, era a Portugal que dizia respeito”, sublinha o presidente da empresa. E à Ramirez, por conseguinte.
A crescente escassez de sardinha nos mares obrigou a medidas drásticas que reduziram a captação desta espécie. Castro e Melo, secretário-geral da Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe, fala à FORBES de uma “crise da sardinha”. Segundo o especialista, a diminuição da espécie faz com que a Comissão Europeia, baseada em pareceres científicos do Conselho Internacional para a Exploração do Mar, recomende aos países ibéricos limites na captação. Em 2016, para Portugal e Espanha, a Comissão recomendou a captação de 17 mil toneladas. A Portugal couberam 12 mil toneladas. “Mas só a nossa indústria de conservas necessita a anualmente de cerca de 35 mil toneladas desta matéria-prima, e, por isso, teve de lançar mão não só da importação, mas também diversificar as produções para outras espécies”, explica Castro e Melo. Sobre estes números, Manuel Guerreiro Ramirez é sarcástico: “17 mil toneladas dão para uma semana em Portugal”, reforçando que chegaram a produzir 75 mil toneladas anuais.
As restrições impostas pela Comissão, que começaram em 2012, impactaram severamente os resultados da empresa: a Ramirez viu os resultados líquidos passarem de 2,2 milhões de euros em 2013 para 305 mil euros em 2015. Um dos factores para este desempenho foi o reforço da compra de matéria-prima no estrangeiro: “Compramos em Portugal o que podemos e também compramos noutros sítios”, diz. O que tem “salvo” a Ramirez destas contingências naturais é o poder das suas marcas, que lhe tem permitido lançar com sucesso produtos mais focados noutros peixes.