Sara Sousa: “Sempre me interessei por perceber como é que se faz dinheiro”

Desde criança que Sara Sousa, 36 anos, revelou ser dona de uma personalidade firme e persistente. E, assume, meio a brincar e em jeito de confissão, que “desde pequena que gosto de meter o nariz por onde quero”. Focada e dotada de uma força peculiar foi decidindo o seu caminho profissional sem se preocupar muito…
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Sara Sousa é diretora-geral da Blip, tecnológica nacional fundada no Porto em 2009, e que pertence ao grupo Flutter Entertainment. Iniciou a sua carreira em Londres, na área dos Recursos Humanos, e lidera agora uma empresa de soluções para apostas desportivas e jogos online que já tem mais de mil colaboradores.
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Desde criança que Sara Sousa, 36 anos, revelou ser dona de uma personalidade firme e persistente. E, assume, meio a brincar e em jeito de confissão, que “desde pequena que gosto de meter o nariz por onde quero”. Focada e dotada de uma força peculiar foi decidindo o seu caminho profissional sem se preocupar muito com a vontade ou opinião dos outros, culminado na liderança de uma empresa nacional de aplicações de apostas desportivas e jogos online, a Blip, que pertence a um grupo internacional, o Flutter Entertainment. Além de ser a primeira mulher a liderar a conceituada tecnológica, reconhecida pelas suas boas práticas de recursos humanos, foi ainda ela que “criou” a sua atual função, a de diretora-geral, cargo que não existia anteriormente na Blip.

Cursou Psicologia Clínica, mas depressa descobriu que não era este o seu caminho, até que se reencontrou no mestrado de Psicologia do Trabalho. Isto sim, era o percurso que realmente a fazia feliz. “Sempre me interessei por pessoas e por empresas, e por saber como é que se faz dinheiro, como é que funciona aquilo a que agora chamo modelo de negócio, mas que, na altura, nem sabia o nome”, explica. Nunca gostou de seguir a maré, nem ir pelas convenções. Foi a sua irrequietude e vontade de explorar que a levou a querer ir para fora de fronteiras: fazer Erasmus e ter uma carreira internacional, sempre esteve nos seus planos. E batalhou para o conseguir.

“Sempre me interessei por pessoas e por empresas, e por saber como é que se faz dinheiro, como é que funciona aquilo a que agora chamo modelo de negócio (…)”, diz Sara Sousa. 

Regressou a Portugal, ingressou na Blip, constituiu família, mas a garra levou-a a crescer profissionalmente e a procurar o seu caminho. É um exemplo de força de vencer, e nem as dificuldades a deixaram abater-se. Com origem numa família que considera matriarcal, é agora mãe de duas crianças pequenas – uma com dois anos e outra com seis meses – e partilha com o marido, arquiteto de profissão, todas as tarefas familiares que considera uma obrigação dos dois. E se o marido não partilhasse da mesma filosofia? “Nunca seria meu marido”, graceja. Conheça a seguir a história da gestora que a Forbes Portugal incluiu na sua lista de 2024 das 55 Mulheres Portuguesas Mais Poderosas, colocada na quinta posição da categoria de Entretenimento.

Desenvolver uma personalidade autónoma

Nasceu em Felgueiras, numa família de quatro elementos e tem apenas uma irmã, seis anos mais nova. Revela que muito da sua personalidade independente advém do facto de a sua irmã ter sido uma criança com problemas de saúde, que estava muitas vezes no hospital, e que por isso ficava muito tempo com os avós, tornando-se mais autónoma. “A minha mãe tinha uma família grande, e eu era criada por todos, era um pouco a filha de todos”, graceja.

Frequentou os estudos na cidade onde nasceu até o décimo ano, quando, fruto do seu espírito aventureiro, decidiu que queria ir para Guimarães. A mãe avisou-a: se queres ir, vais ter de te orientar. O que fez, sem pestanejar, como sempre. “E eu que nem nunca tinha andado autocarro na vida, lá fui sozinha, apenas porque sim”, relembra. Oriunda de uma família que diz ser matriarcal, vê na força das mulheres da família um exemplo de vida. Dos nove filhos da avó oito eram mulheres, e eram elas, no fundo, que ditavam as regras da casa. Estes ensinamentos ficaram para sempre. “Em casa da minha avó, que já fez 90 anos, era ela que conduzia. O meu avô, que não sabia ler nem escrever, não tinha a carta de condução”, refere. Talvez este facto tenha marcado a sua personalidade de total autonomia, sem medo de arriscar. Explica que ver a avó conduzir, ou a liderar a família, normalizou muito certos papéis que, na geração dela, por exemplo, não eram normais. “Eu estava habituada a ver isso. Mas é certo que, nas coisas de casa, elas ainda acumulavam tarefas; não se libertaram de tudo, mas já arriscavam muito a nível de decisão, no contexto familiar, o que eu acho muito interessante”, remata.

Sara Sousa. Foto/Ricardo Castelo

Quando ingressou no ensino superior optou por Psicologia porque queria um curso que lhe permitisse trabalhar sozinha, sem ter de trabalhar para alguém. Recorda que foi a primeira da família alargada a concluir um curso superior. Porém, depressa percebeu que Psicologia Clínica não era tão interessante como pensava. “O curso não tinha nada a ver comigo, era a categorização de pessoas por critérios e nunca gostei de seguir as normas, as convenções”, diz, e acabou por optar, no Mestrado, por Psicologia do Trabalho. Determinada, decidiu que seria a melhor aluna do mestrado, já que as empresas e a forma como funcionavam, sempre lhe despertaram curiosidade.

Ávida de novos desafios, assim que o terminou o mestrado quis ir para Londres trabalhar, para onde partiu sozinha. Tinha essa vontade de ter uma experiência internacional, e só o Erasmus não foi suficiente para satisfazer esse desejo. Enviou currículos, manteve contactos com uma recrutadora, mas foi sem nada em concreto, apenas à espera que a sorte a bafejasse. “Foi um período muito difícil, o mais difícil da minha vida”, recorda, dizendo que não tinha nem dinheiro para o passe dos transportes públicos. Mas não quis desistir, nem tão pouco pedir ajuda à família. “Eu sabia que se desistisse, nunca mais recuperava desta decisão”, desabafa. Recusou, pelo caminho, uma vaga de um programa do InovContac ao qual se tinha candidatado em Portugal, apenas porque já estava em Londres e não queria andar para trás. Durante algum tempo essa decisão ainda lhe pesou, porque não tinha ainda encontrado um trabalho que realmente a satisfizesse. Trabalhou nos Recursos Humanos de uma empresa relacionada com o imobiliário e recorda que tinha de fazer um pouco de tudo e não estava satisfeita. Chegou até a ter problemas de saúde. E pensava “Quando sair daqui vou internar-me num hospital psiquiátrico. Mas desistir nunca, isso para mim não era opção”, afirma, perentória.

“Gosto muito de arquitetura e imobiliário. Faço investimentos imobiliários, e se tivesse outra profissão seria comprar imóveis para reabilitar”, afirma Sara Sousa. 

Demorou ainda um ano a encontrar outro empregador na área que queria, mas com perseverança lá conseguiu ir trabalhar para os Recursos Humanos de uma empresa que geria faturas de eletricidade para grandes clientes. Embora tivesse já 20 anos, a organização funcionava como uma startup. Três meses depois a empresa foi comprada por uma empresa americana cotada no NASDAQ e começou aqui a grande aventura internacional. A empresa tinha filiais em vários países e Sara Sousa começou a reorganizar todos os processos que conseguia das várias filiais na área do RH. “Criei um monstro para gerir porque era só uma e não tinha capacidade para fazer tudo”, afirma. Mas felizmente, a empresa foi comprada por outra ainda maior, mais organizada, sediada em Boston, e propôs-se para outro cargo, ficando então como “generalista” de RH para a Europa, uma função que não existia, mas que ela própria propôs à empresa. “Cerca de 60% das funções que já tive surgiram assim, com uma auto-proposta”, remata.

Quando ingressou no ensino superior optou por Psicologia porque queria um curso que lhe permitisse trabalhar sozinha, sem ter de trabalhar para alguém. Recorda que foi a primeira da família alargada a concluir um curso superior.

Afirma que tentou conhecer toda a empresa ao pormenor, conhecer todos os escritórios e sobretudo chamar toda a gente pelo nome. Viajava constantemente, estava mais tempo fora do que em Londres. Quando o negócio começou a ganhar uma estrutura mais formal tornou-se RH Business Partner para a região EMEA, mais um cargo auto-proposto. “Foi a primeira vez que fiz parte de uma equipa de liderança”, recorda. E acrescenta: “Ali tive a perspetiva de estratégia, do que é que é uma estratégia para uma região, e pensar na perspetiva mais comercial”. Revela que progrediu muito rapidamente na carreira e que conseguiu assim ganhar o respeito profissional de pessoas que têm posições sénior em empresas, como o CEO da Siemens, na Alemanha. Esteve nesta empresa durante quatro anos, na qual cresceu imenso profissionalmente.

O salto para Portugal deu-se quando veio fazer uma pequena cirurgia, em maio de 2016, e percebe o quanto tinha saudades do sol. “Eu decido as coisas durante a noite. Um dia acordo e estou decidida. Nunca consulto ninguém, decido e fica decidido. E decidi que tinha de me vir embora”. E foi assim que resolveu regressar a Portugal. Falou com o responsável para lhe dizer que vinha para Portugal, trabalhar a partir de casa, e a proposta foi aceite.

O regresso a Portugal  

Apenas um mês depois desta decisão, surge o contacto para uma vaga na portuguesa Blip, que, na altura, já tinha sido adquirida pelo Betfaire Group. Fundada em 2009, no Porto, a empresa desenvolvia software para jogos online e apostas desportivas, e a partir de Londres, a gestora fez a entrevista, aceitou a oferta. Assumiu assim o cargo de senior HRVP – ou seja, a responsável pelos Recursos Humanos da equipa nacional, que era, na altura, constituída por 250 pessoas. Os primeiros quatro meses foram entusiasmantes, mas também difíceis, com muitas horas de trabalho. Teve que redefinir a equipa de RH e as suas funções, e contratou pessoas que achava que fariam um bom trabalho.

“Não tenho muitos hobbies. O meu principal hobbie é comer. Sou capaz de fazer muito quilómetros para ir comer a um determinado sítio e coleciono menus”, refere Sara Sousa. 

A sua carreira foi evoluindo na empresa ao longo destes mais de oito anos, até culminar em mais um cargo de liderança, o de diretora-geral, criado por uma proposta sua. Vejamos como tal aconteceu. O grupo que adquiriu a Blip em 2012 fundiu-se com outro, dando origem a um novo conglomerado, o Flutter Entertainment, com inúmeras divisões de negócio. A Blip implementava em Portugal estratégias definidas a nível central e, apesar de ser uma única entidade laboral, mantinha equipas a trabalhar em áreas diferentes do negócio. A empresa portuguesa é atualmente o hub do grupo especializado em apostas desportivas, desenvolvendo componentes que podem ser aplicados nas diversas marcas deste universo empresarial.

Ou seja, com toda a complexidade das relações das marcas, os gestores séniores reportavam às diferentes marcas não havendo alguém que gerisse toda a equipa de forma concertada. “Propus então que a estrutura de gestão de hubs como o nosso deveria ser alterada, para que houvesse um diretor-geral da localização e essa pessoa teria de tomar decisões relativas às práticas de gestão da localização”, explica Sara Sousa. Ou seja, ao responsável de uma marca que contrate pessoas na Blip é que decide o que as pessoas vão fazer, mas a forma como as pessoas são geridas fica do lado do diretor-geral local. Sara conseguiu que esta proposta fosse aprovada – e até já replicada em outros hubs – e candidatou-se ao cargo. Na corrida estavas duas candidatas, mas Sara alcançou o seu objetivo.

Sara Sousa. Foto/Ricardo Castelo

A empresa nacional que gere cresce a um ritmo acelerado, em parte devido às suas competências. “Grande parte do que foi desenvolvido para a área de sports do grupo, foi desenvolvido aqui no Porto, o que nos dá uma grande vantagem competitiva internamente”, explica Sara Sousa.  A equipa acabou de atingir a marca dos mil colaboradores em Portugal, tendo crescido cerca de 150% nos últimos três anos e meio, uma vez que a procura interna tem aumentado consideravelmente.

A Flutter Entertainment está cotada em bolsa e gerou receitas de cerca de 11,8 mil milhões de dólares (cerca de 11,3 mil milhões de euros) em 2023. Com várias marcas, como a Betfair, a SportsBet, a Pocketstars, chega a cerca de 12,3 milhões de utilizadores todos os meses. O crescimento acelerado do mesmo tem sido promovido pela aquisição de novas marcas, uma constante dos últimos anos.

Liderança feminina, sim ou não?

Sara Sousa nunca sentiu ter sido prejudicada na sua carreira pelo facto de ser mulher, mas também não sentiu que foi mais valorizada por isso – aludindo a uma possível discriminação positiva em nome da diversidade. Admite, no entanto, que talvez não sinta tanto na pele o desafio, pois tem um perfil de atuação que talvez seja mais associado ao dos homens, como por exemplo, o não ter tanto receio de interromper uma reunião para apresentar uma ideia que possa parecer descabida. “Mas não vejo a questão apenas como ser homem ou mulher, mas antes com o perfil de cada um”, refere.

Não se define com um estilo de liderança concreto, mas “na minha função de líder sénior o importante é ser capaz de orientar num determinado caminho e visão e de inspirar as pessoas a seguirem esse caminho”, diz. Afirma que não é polícia, nem tenta saber o que as pessoas fazem e como e quando o fazem, tem é de definir o que é para fazer e o que é esperado de cada um. “A partir daí tenho de dar as melhores condições possíveis às pessoas, para que elas também deem o melhor delas”, acrescenta.

“Adoro viajar e o Japão foi o país que mais gostei de conhecer. A seguir, gostaria de ir conhecer o Iraque”, diz Sara Sousa. 

Questionada sobre a política de responsabilidade social do grupo a que pertence a Blip – já que a área dos jogos é uma área sensível – Sara explica que a empresa tem várias iniciativas a decorrer e faz grandes investimentos no sentido de trabalhar com as melhores práticas – e até com os reguladores – para garantir que o produto da empresa é um produto de entretenimento, tal como existem outros, e não que traga dependência e vício. O grupo anuncia no seu site que investiu cerca de 100 milhões de dólares (cerca de 96,2 milhões de euros) em 2023 iniciativas do género, para garantir mecanismos que previnam comportamentos de maior adição e que os mitigam.

Para o futuro da empresa, a diretora-geral estima que o negócio continue a crescer ao mesmo ritmo, embora sinta, que a nível tecnológico possam surgir alguns desafios, como por exemplo, com a Inteligência Artificial. “Haver novas tecnologias é ótimo, mas a necessidade de regulamentação e de impor limites àquilo que é possível fazer e perceber os perigos que podem trazer é importante”, remata a responsável.

(Artigo originalmente publicado na edição da Forbes Portugal de fevereiro/março)

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