Não sabia mergulhar, mas desceu ao fundo do mar seis vezes para depositar, avaliar e recolher as 102 garrafas de vinho do Porto vintage que a família Van Zeller decidiu envelhecer no fundo do oceano. Destemida, Francisca van Zeller, 37 anos, não tem medo de enfrentar novos desafios, sejam profissionais sejam pessoais, já que se assume quase como uma exploradora de novas oportunidades. Gosta de viver rodeada de gente, conhecer novas pessoas e culturas e não se sente intimidada por trabalhar num meio ainda predominantemente masculino.
Para ela, que nasceu no mundo dos vinhos, sente que é um privilégio não sentir atualmente barreiras por ser mulher, mas confessa que, inicialmente, antes de ter o curso de Viticultura e Enologia, houve momentos em que foi mais difícil ter voz. Nos Douro Boys, grupo criado em 2003 pelo pai e outros quatro produtores de vinhos do Douro – todos homens – pode ter sentido alguma apreensão inicial, mas hoje é ela que faz a introdução das apresentações em redor do mundo.
“Sempre me interessei muito pelo tema das mulheres. Quando estudei História a minha especialização foi sobre o papel das mulheres no mundo não ocidental. Sinto que é um privilégio enorme nunca ter sentido a discriminação na pele. Tenho um pai que nunca diferenciou entre mim e os meus dois irmãos. Aliás, sou eu que estou a dar seguimento ao negócio da família”, revela a responsável do marketing e comunicação da empresa familiar, ligada ao vinho do Porto desde 1620.
São já 14 as gerações no negócio do vinho do Porto
O pai, Cristiano van Zeller, CEO da Van Zellers e Co., que representa a 14º geração no negócio, confia nela para dar continuidade ao mesmo. Sendo a primeira de três filhos – Francisca tem dois irmãos rapazes, mas que seguem outros rumos profissionais, Cristiano é médico e João, o mais novo, é futebolista –, ainda que, com idades muito próximas, é a que está há mais anos a acompanhar as decisões empresariais da família.
Oriundo dos Países Baixos, os antepassados dos van Zeller chegaram a Portugal no início do século XVII e instalam-se no Porto como comerciantes de vinho do Porto. A Van Zellers & Co. foi fundada oficialmente em 1780 e, em 1811, exportava cerca de mil pipas ao ano. Foi vendida uns anos depois, mas a família continuou no negócio do Vinho do Porto através de outras empresas, como a Quinta do Noval e a Quinta de Roriz. Luís Vasconcelos Porto, avô de Cristiano van Zeller, e também dono da Quinta do Noval, recomprou a Van Zellers & Co., que operava dentro da quinta. Não tinha stocks próprios nem vinhas: tinha apenas as marcas. De volta à família, e estando Cristiano à frente da Quinta do Noval, quando vende esta propriedade, em 1993, separa a empresa, tornando-a independente. Ficou então nas mãos de um primo, até que, em 2007, este ofereceu a companhia, na altura apenas com as marcas VZ e a Van Zellers, ao atual CEO.
Desde 1993 que o pai de Francisca se dedica à produção de vinhos DOC Douro e vinhos do Porto, e trouxe para o mercado vinhos como o Quinta de Castro e Quinta do Vallado. Em 1996, Cristiano e Joana, sua esposa, criaram a marca Quinta Vale D. Maria, depois de terem adquirido à família de Joana esta propriedade. Anos depois, com a gestão da antiga empresa familiar em mãos, Cristiano dedicou-se a dar continuidade ao legado dos antepassados, acrescentando-lhe novas marcas, como o Vinho do Porto Velho e as CV – Curriculum Vitae. Em 2013, Francisca junta-se pela primeira vez, formalmente, ao negócio da família, tendo explorado pelo caminho outras opções profissionais, que falaremos a seguir.
Uma vida com História
Francisca van Zeller nasceu em agosto de 1986, no Porto, e no mês seguinte, época das vindimas, já se fazia à estrada em direção à quinta da família, no Douro, a acompanhar os pais. “Para mim, o ano não começa em janeiro, começa na altura das vindimas, porque é aqui que está o início de tudo”, graceja.
Relembra que as suas memórias afetivas estão muito ligadas ao Douro, uma região de muita proximidade, onde se recebem muitas pessoas. “O negócio do vinho do Porto sempre esteve orientado à exportação e, por isso, à nossa mesa estavam sempre pessoas do mundo inteiro. Era muito comum ver os meus pais nesse ambiente, a comunicar, a receber, a entreter. Foi-me incutida essa forma de abrir as portas de casa e por isso adoro conhecer novas pessoas e novas culturas”, diz.
Está ligada desde sempre à viagem sensorial do vinho, que passa pelo contraste entre a natureza, a terra e as vinhas, e as provas e o laboratório, um ambiente quase estéril, mas onde se faz magia. Recorda-se de ter 10 anos, estar com o pai a fazer misturas e dizer “quando for grande quero ser cozinheira de vinhos” porque associava isso aos bolos que fazia com a avó. E, com paciência, o pai explicou: a isso chama-se enologia e podes vir a estudar um dia.
“O negócio do vinho do Porto sempre esteve orientado à exportação e, por isso, à nossa mesa estavam sempre pessoas do mundo inteiro”, relembra Francisca van Zeller.
Mas na hora de escolher o percurso profissional futuro outra paixão teve mais força: a História. “Era umas das minhas disciplinas favoritas e fui então para Inglaterra tirar este curso. Ao estudar na cultura anglo-saxónica percebe-se que a ótica é sempre a de abrir possibilidades e não de as fechar. Ir para História não significa ter de ser professora, mas sim abrir algum mundo”, explica. Revela que, até tirar o curso de enologia, uns anos mais tarde, o que apaixonava no vinho era o seu lado das histórias, das pessoas, das vivências, e que a paixão pela terra e pelas vinhas só surgiu após esta formação mais específica.
“Tinha pouco mais de 20 anos quando o meu pai me desafiou a vender os vinhos da Quinta Vale Dona Maria na Califórnia, nos Estados Unidos”, recorda. Conta que foi sozinha à aventura, só com um número de telefone da pessoa de contacto, e percorreu a Califórnia inteira, visitando muitos locais, onde fazia provas e jantares vínicos. Terminou a roadtrip a festejar em S. Francisco Bay, com ostras e champanhe, tendo então ligado ao pai. “Pai, isto foi incrível, é isto que quero fazer o resto da vida. Eu não sabia vender vinho, não sabia falar de vinhos, mas o meu pai disse-me: conta as tuas vivências. E foi através delas que percebi como o vinho se vendia”, recorda, ainda com entusiasmo.
“Acima de tudo tive as bases para me apresentar sempre com segurança: sei do que falo, sei que trabalho muito, e sei comunicar. Por isso, atualmente, já ninguém pergunta: onde é que está o teu pai? É mais: manda um abraço ao teu pai”, diz Francisca van Zeller.
Mas não ficou logo por aqui, pois queria ter outras experiências profissionais. Além de se ter licenciado em História, fez uma pós-graduação em jornalismo. “Gosto da escrita, das palavras. Ambas as áreas têm muito em comum: em História podemos ler vários documentos e, mesmo assim, ter um ponto de vista e no jornalismo também”, afirma. Trabalhou como jornalista, mas o seu coração empurrava-a sempre para a área dos vinhos. Até que, em 2011, se candidatou a uma vaga na Bacalhoa – Vinhos de Portugal, onde esteve como Relações Públicas. Dois anos depois regressa ao Porto e vai trabalhar com o pai, para a Quinta Vale D. Maria – propriedade que, entretanto, a família vendeu à Aveleda, em 2020. Dedicou-se ao marketing e às vendas, tendo como responsabilidade abrir novos mercados.
Em 2014, iniciou a pós-graduação em Viticultura e Enologia, que acumulava com as funções na Quinta Vale Dona Maria e, em 2015, foi wine director do Six Senses, tendo feito a abertura do hotel e desenhado o seu programa vinícola. Este foi um desafio gigantesco: “a hotelaria é superorganizada, com uma engenharia maravilhosa e foi ótimo ter trabalhado numa estrutura desse género. O Six Senses é um hotel magnífico, no qual podia construir as experiências que queria que fossem implementadas. Fiz a carta de vinhos, fiz cursos internos e certificados que podiam ser dados a grupos, a empresas, a hóspedes, e fazíamos provas aromáticas”, revela.
Quando a família vendeu a quinta à Aveleda, em 2017, Francisca ficou no grupo como brand manager da marca, tendo assumido depois outras marcas da companhia e ao fim de três anos, tornou-se diretora de Relações Públicas e formou o departamento de RP dentro da Aveleda. “A partir de 2022 fiquei com duplas funções, porque trabalhava na Aveleda e na Van Zellers e Co. em simultâneo. Saí oficialmente da Aveleda em maio de 2023”, explica.
Os eixos da companhia centenária
Depois da venda da Quinta Vale D. Maria, o CEO e a esposa Joana dedicam-se a fazer crescer a Van Zellers & Co., sediada em S. João da Pesqueira, reforçando o seu portefólio. Em 2019, a empresa tinha em stock cerca de 40% dos vinhos do Porto Tawny mais antigos, 15 hectares de vinhas de vinho tinto nos vales de Torto e Pinhão, e um hectare de vinha de vinho branco em Murça. Em 2020 é relançada no mercado com uma nova identidade, procurando reinventar-se com novos projetos.
“A Van Zeller e Co. opera como uma empresa tradicional de vinho do Porto, com vinhas e stocks. No vinho do Porto o que é importante é ter muito bons vinhos Tawny,”, explica Francisca van Zeller. A responsável explica que o seu portefólio de vinhos se encaixa em três âncoras: os vinhos criados pela mão do homem – que são os blends de 20, 30, 40 anos; os vinhos criados pela natureza – vinhos que demonstram a natureza do terreno ou do lugar; e os vinhos criados pelo tempo – aqueles que ainda estão em barrica a envelhecer para serem engarrafados, e é o tempo que passam na pipa que vai definir o seu perfil. “No caso dos vinhos do Porto Tawny, 10, 20, 30, 40 anos, limitamos o engarrafamento por ano. Seis mil garrafas do de 10 anos, 3 mil do de 20 anos, 1.500 do de 30 anos, e 750 do de 40 anos. Temos ainda um vinho que acabamos de lançar, a pedido de um cliente, o de 50 anos, e dele fazemos apenas 150 garrafas por ano”, explica a gestora.
Os vinhos que estagiaram no fundo do mar foram lançados numa plataforma de NFT’s, a Winechain, ao preço de mil euros cada garrafa, mas o mercado ditará os valores que podem alcançar.
“Além disso, convidamos pessoas a colaborar connosco fora do negócio do vinho, o que nos desafia a pensar diferente, como foi o caso do Ocean Aged”, revela a responsável de marketing. Este foi um projeto surgiu de um jantar com o especialista Claúdio Martins, da Martins Wine Advisor, que disse ter comprado garrafas da Adega do Mar, em Sines, gerida pelo biólogo marinho e instrutor de mergulho, Joaquim Parrinha. Francisca pensou que seria uma boa ideia ter vinho do Porto a envelhecer debaixo do mar e o pai concordou.
Foi a própria, que nunca tinha feito mergulho, que foi colocar, a 2 de dezembro de 2022, as duas caixas, que continham 102 garrafas – as que cabiam – de vinho do porto vintage, ficando estas a estagiar a 10 metros de profundidade. Depois disto voltou ao fundo do mar mais quatro vezes, para avaliar a qualidade, tendo sido abertas quatro garrafas no processo. Trata-se de uma colaboração com a Zouri Shoes – marca de calçado eco-vegan, e juntas desenvolveram uma caixa em formato de concha com materiais reciclados e borracha natural – e que tem uma mensagem associada: a importância de cuidar dos oceanos. Parte das receitas serão canalizadas para apoiar um programa educativo organizado pelo Oceanário de Lisboa, dirigido a criança em idade escolar na região do Douro.
Os vinhos foram lançados numa plataforma de NFT’s, a Winechain, ao preço de mil euros cada garrafa, mas o mercado ditará os valores que podem alcançar. As primeiras foram vendidas aos distribuidores de vários países, além de Portugal, como Finlândia, Áustria, Suíça, Inglaterra e Canadá.
Mas a inovação não ficará por aqui, já que empresa tem outros projetos em estudo. Um deles é a coleção de 75 packs de três colheitas do século XIX. O pack é composto por uma caixa forrada a veludo, um decanter soprado na Atlantis, garrafas também feitas a sopro na Marinha Grande, e uma peça em prata, feita pela Leitão e Irmão, que acompanha as garrafas.
Para o futuro, o essencial é crescer sem perder as vantagens da pequenez. “A Van Zellers e Co. foca-se essencialmente na qualidade de um nicho. Por vezes é difícil ser pequenino e conseguir prosperar o negócio. Este tem de escalar, mas numa estratégia de manter sempre a qualidade e os pequenos engarrafamentos”, explica.
O sonho de uma vida
Francisca acredita que pode ser uma embaixadora dos vinhos do Porto, tentando rejuvenescer o seu público. “O meu sonho é manter o vinho do Porto sempre atual, e não há nada que mais me entristeça do que uma garrafa esquecida”, afirma.
Além disso, revela que, para trabalhar bem em família foi essencial aprender a fazer gestão de tempo, perceber onde acaba o trabalho e começa a família, como é que se desliga dos negócios, mesmo estando em família. “Para trabalhar em família é preciso muita persistência, é preciso saber dizer que não. Não é só em família, mas sim num negócio próprio, porque é muito difícil dividir aquilo que é trabalho e aquilo que sou eu, porque a certa altura tudo é a mesma coisa e não pode ser”, diz.
Entende que, para sobreviver no mundo de homens, o mais importante foi ter conhecimentos para se apresentar segura, e que a partir do momento em que fez o curso nesta área, essa confiança foi maior. “Acima de tudo tive as bases para me apresentar sempre com segurança: sei do que falo, sei que trabalho muito, e sei comunicar. Por isso, atualmente, já ninguém pergunta: onde é que está o teu pai? É mais: manda um abraço ao teu pai”, refere.
“Sempre me interessei muito pelo tema das mulheres. Sinto que é um privilégio enorme nunca ter sentido a discriminação na pele. Tenho um pai que nunca diferenciou entre mim e os meus dois irmãos. Aliás, sou eu que estou a dar seguimento ao negócio da família”, afirma Francisca van Zeller.
De qualquer forma acha importante que se discuta o tema das mulheres nos vinhos. E por isso mesmo se uniu, há uns anos, a um grupo – agora em standby -, chamado D’Uva Portugal Wine Girls, que englobava, além dela, mais sete mulheres ligadas ao vinho: Catarina Vieira, Luísa Amorim, Rita Nabeiro, Rita Fino, Mafalda Guedes, Rita Pinto e Maria Manuel Maia. Juntas criaram o vinho Amália 100, feito em honra da Amália, em que a totalidade do lucro reverte para a fundação Amália Rodrigues.
Novos projetos estão na calha, revela. Um deles é uma homenagem ao pai, que está a começar a ser desenhado em pormenor desde o vinho à garrafa. Depois está a também a desenvolver experiências de enoturismo. “São jantares exclusivos, para grupos pequenos, 12 pessoas máximo, que jantam comigo, ou com o meu pai e com a minha mãe, sempre com os nossos vinhos”. Recentemente surgiu uma outra ideia inovadora, que junta know how na produção de vinhos com imobiliário. “O conceito é identificamos vinhas, bem localizada, que produzam bons vinhos e desenhar para elas um projeto imobiliário. Quem comprar o terreno, pode desenvolver o projeto ou não, mas pelo menos tem quem tome conta da vinha e fica com vinho de marca própria para consumo”, revela.