Mais uma vez, a Rússia e a NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) estão frente a frente numa tensa negociação. Desta vez, por causa da concentração de tropas russas ao longo da sua fronteira com o seu vizinho, a Ucrânia.
Este último impasse – o mais grave desde o fim da Guerra Fria – está em marcha há várias e tensas semanas e muitos acreditam que a Europa está no limiar de um grande conflito. Com a guerra à porta, a Ucrânia está preparada para reagir.
Na sexta-feira passada, o presidente dos EUA, Joe Biden, pediu aos cidadãos dos EUA que deixassem a Ucrânia dentro de 48 horas, temendo ataques aéreos da Rússia. Outros países também pediram aos seus cidadãos que deixem o estado ameaçado.
“Qualquer americano na Ucrânia deve sair o mais rápido possível e, em qualquer caso, nas próximas 24 a 48 horas”, afirmou o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan, num briefing na Casa Branca. O pessoal da embaixada dos EUA em Kiev foi instruído a sair, e o suspense sobre o que poderá acontecer a seguir continua a crescer.
Do lado português, o consulado e a embaixada na Ucrânia recomendaram, igualmente, aos cerca de 240 portugueses que aí residem que abandonem o país temporariamente, caso não tenham razões essenciais para ficar.
Caso a ação militar comece, as forças armadas ucranianas e o povo ucraniano prometeram ripostar. Mais importante, esta nação de elevado nível de educação e tecnologicamente avançada de 40 milhões de habitantes também já deixou claro que resistirá a quaisquer ingerências diplomáticas pressionadas por influências externas que não representem a visão que ela tem para o seu futuro.
Com a tensão em crescendo, os últimos dias têm sido palco de manifestações com milhares de ucranianos a saírem à rua em solidariedade para mostrar união contra a ameaça vizinha russa.
“É bom que os esforços diplomáticos estejam em curso, pois é realmente difícil avaliar a probabilidade do que quer que seja”, diz Tymofiy Mylovanov, presidente da Escola de Economia de Kiev e conselheiro do chefe do gabinete do presidente da Ucrânia. “Deve ser e será resolvido pela diplomacia”, entende este responsável.
Um conflito que vem de há oito anos
Mylovanov salienta que a Ucrânia está em guerra com a Rússia há oito anos, enfrentando várias escaladas e incursões militares. Todavia, ao contrário do que se verificava há oito anos, quando a Rússia infringiu a lei internacional pela primeira vez ao invadir a Ucrânia e anexar a Crimeia, a economia e a sociedade da Ucrânia e a preparação militar estão agora em boa forma. Na visão de Mylovanov, a capacidade de resistência da Ucrânia é subestimada.
Ameaçar a Ucrânia com uma ação militar é apenas o capítulo mais recente de uma ofensiva russa de largos anos contra os seus países vizinhos.
A Rússia invadiu a Ucrânia em 2014 após o povo ucraniano ter derrubado o seu presidente pró-Rússia, Viktor Yanukovytch, durante a Revolução Maidan.
A Rússia recusou-se a reconhecer o novo governo interino, chamando a revolução de um “golpe de Estado”. Naquela época, as forças russas entraram na península do sul da Ucrânia, a Crimeia, e anexaram-na.
A Rússia também fomentou a discórdia na província de Donbas, no leste da Ucrânia, fornecendo aos separatistas materiais e outros apoios, incluindo forças especiais russas e assistência militar.
Sentimento de traição em 2014; sentimento de resistência agora
“O exército e os voluntários conseguiram resistir em 2014, quando o ‘irmão’ nos esfaqueou descaradamente pelas costas”, disse o ministro da Defesa ucraniano, Oleksii Reznikov, em comunicado conjunto com o comandante das Forças Armadas da Ucrânia, tenente-general Valerii Zaluzhnyi.
“Na altura, muitas pessoas não estavam psicologicamente preparadas para resistir àqueles com quem se sentaram à mesma mesa ontem. Agora a situação é completamente diferente. O Kremlin está bem ciente disso, e isso constitui um importante impedimento. Hoje temos o exército mais poderoso que a Ucrânia teve em 15 anos e o exército mais poderoso da Europa – o nosso exército é liderado por generais e oficiais de combate.”
O impasse entre o Ocidente e a Rússia pode muito bem ser o resultado da falta de resposta do Ocidente ao exagero e desdém pelo direito internacional que a Rússia demonstrou durante anos sob o presidente Vladimir Putin.
Além de invadir a Ucrânia, a Rússia ocupou ilegalmente territórios na Geórgia e na Moldávia há anos. Quando anexou a Crimeia em 2014, foi sancionado e inicialmente excluído do G20 e da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (PACE). Mas, mais tarde, a Rússia progressivamente, voltou à comunidade internacional, regressou à PACE e até sediou o Mundial de Futebol em 2018 – tudo isso mantendo-se como agressor, ocupante e infrator da lei internacional.
Oligarcas russos, pessoas do círculo íntimo de Putin e os seus filhos continuam a viver em países ocidentais, armazenam o seu dinheiro em bancos ocidentais e investem em imóveis de primeira linha na Europa e nos EUA.
130 mil militares posicionados na fronteira
Este recente aumento da tensão foi causado pela deslocalização por parte da Rússia de mais de 130.000 soldados, artilharia, veículos blindados, tanques, caças e outros equipamentos militares ao longo da fronteira com toda a Ucrânia, em bases na Rússia, Bielorrússia e na região separatista da Moldávia apoiada pela Rússia.
Na Crimeia (antiga região autónoma da Ucrânia que foi tomada pela Rússia em 2014 e cuja anexação a maior parte da comunidade internacional não reconhece), existe uma base militar russa que abriga dezenas de navios de guerra no Mar Negro. O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmytro Kuleba, afirma que o Mar de Azov está completamente bloqueado e o Mar Negro quase totalmente isolado pelas forças russas.
Toda a operação, que a Rússia chama oficialmente de “exercício militar planeado”, parece uma preparação para um ataque militar total. Além das forças militares e especiais, a Rússia preparou “ciberguerra eletrónica, comando e controlo, logística, engenheiros e outras capacidades ao longo da fronteira com a Ucrânia”, de acordo com o general Mark Milley, presidente do Estado-Maior Conjunto dos EUA.
NATO em “alerta intensificado”
A oeste, a Ucrânia faz fronteira com a Polónia, Eslováquia, Hungria e Roménia – todos estados membros da NATO. Impulsionada pelo flagrante aumento da escalada militar em larga escala da Rússia, a NATO mobilizou-se e os EUA colocaram 8.500 soldados na região em “alerta intensificado” para ajudar na defesa dos aliados da NATO na Europa Oriental, se necessário. Embora a Ucrânia não seja membro da NATO, a agressão russa levou outras nações a fornecer ao país em apuros uma ajuda significativa para as suas defesas, incluindo 300 mísseis Javelin.
“Os Estados Unidos continuam os esforços, com os nossos aliados e parceiros, para instar a Rússia a diminuir as tensões e escolher o caminho da diplomacia”, reitera a vice-secretária de Estado dos EUA, Wendy Sherman, durante uma conversa online com Kersti Kaljulaid, ex-presidente da Estónia.
A conversa de Sherman e Kaljulaid tem a particularidade de ter sido facilitada pela YES, uma plataforma fundada pelo bilionário e filantropo ucraniano Victor Pinchuk. “Se a Rússia invadir ainda mais a Ucrânia”, continuou Sherman, “haverá consequências significativas – muito além do que enfrentaram em 2014”.
Democracia de mercado livre bem sucedida
Em trinta anos desde que a União Soviética foi dissolvida pacificamente, das 15 ex-repúblicas soviéticas, a Ucrânia provou ser um exemplo de democracia de livre mercado bem-sucedida, assim como os Estados Bálticos que agora fazem parte da União Europeia.
Residentes da vizinha Bielorrússia e da Rússia, incapazes de viver e trabalhar normalmente nos seus países devido à repressão dos seus regimes autoritários, têm migrado cada vez mais para a Ucrânia em busca de melhores oportunidades. O povo ucraniano – que sofreu duas revoluções, em 2004 e 2014 – tem demonstrado acreditar que a resistência à ditadura pode ter sucesso, mesmo que isso signifique perder vidas.
A insegurança de Putin sobre a Ucrânia está no centro da atual escalada militar e é proeminente entre os tópicos que ele deseja negociar. A aliança da Ucrânia com o Ocidente é possivelmente o que Putin mais teme. As últimas pesquisas mostram que a população ucraniana é fortemente a favor da adesão à NATO – devido em grande medida às ações do seu vizinho agressivo ao leste, e ao cansaço da guerra em curso nas regiões orientais da Ucrânia de Donetsk e Luhansk, onde a Rússia instalou governos por procuração.
As exigências russas
Em dezembro último, a Rússia emitiu exigências de segurança, insistindo que essas regiões orientais fossem incorporadas à Ucrânia e que as eleições fossem realizadas nessas áreas sem a retirada da Rússia das suas forças militares estacionadas lá. Isso permitiria que representantes de Donbas (onde se localizam as províncias de Lugansk e Donetsk) representassem a agenda do Kremlin no parlamento ucraniano e impediriam o país de quaisquer iniciativas progressistas que fossem contra os interesses da Rússia, incluindo a cooperação da Ucrânia com o Ocidente. Os ucranianos não querem isso e vão resistir a qualquer pressão do Ocidente para ceder a tal pretensão.
“A soberania e a integridade territorial da Ucrânia não são negociáveis”, avisa o Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky.
Além disso, as exigências da Rússia incluíam um pedido para que a NATO negasse a adesão da Ucrânia e outros ex-países soviéticos à Organização do Atlântico Norte, e que a NATO removesse instalações militares em países do antigo bloco soviético.
Rejeitado numa resposta por escrito do secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, Putin disse ao presidente francês Emmanuel Macron na sexta-feira, 28 de janeiro, que sentiu que o Ocidente ignorou as preocupações de segurança da Rússia.
Para além de querer garantias juridicamente válidas de que a Ucrânia nunca fará parte da NATO, Moscovo exige o regresso das tropas aliadas nos países vizinhos às posições anteriores a 1997.
As tentativas da Rússia de enfraquecer a Ucrânia e trazê-la de volta à sua órbita historicamente incluíram estratégias para desestabilizar o seu vizinho por dentro.
Em 2014, a Rússia tomou o controle de Donetsk e Luhansk organizando protestos pró-russos, supostamente orquestrados pela população local, após os quais a milícia russa se mudaria e protegeria as cidades. De momento, destaca Tymofiy Mylovanov, presidente da Escola de Economia de Kiev e conselheiro do chefe do gabinete do presidente da Ucrânia, este tipo de atividade não se verifica, uma situação diferente da de 2014. Porém, nada impede que este tipo de jogadas não venham a ocorrer.
“Ninguém pode olhar para as cabeças dos líderes do Kremlin e dizer com certeza quais as ações que exatamente podem ser tomadas”, afirma Reznikov, ministro da Defesa da Ucrânia. “Mas calculamos absolutamente todos os cenários de desenvolvimento e estamos prontos para eles. Hoje, muitas declarações estão a ser feitas e Moscou está mesmo a declarar que a Ucrânia está a planear atacar a Rússia. Isso é um absurdo. Não vamos atacar ninguém, mas estamos a fazer tudo para fortalecer as nossas defesas e eliminar a possibilidade de escalada. Pretendemos seguir o caminho político-diplomático.”
A retórica dos EUA é a de que a guerra é iminente ou altamente possível, e que a Rússia poderia atacar com ataques aéreos. A Ucrânia, embora em alerta máximo, continua a conduzir os negócios como de costume.
Por exemplo, na semana passada, o governo ucraniano lançou a Diia City – uma iniciativa digital que deveria transformar a Ucrânia num importante centro tecnológico europeu, fornecendo uma estrutura económica especial com benefícios legais, fiscais e trabalhistas para empresas de tecnologia locais e estrangeiras e seus funcionários. Cúpulas, conferências e outros eventos em Kiev e no resto da Ucrânia continuam como planeado.
A pergunta agora é: até quando esta aparente normalidade se manterá?
Cenário de sanções económicas
Garantido é que, as sanções ocidentais contra a Rússia entrarão em vigor “imediatamente” em caso de invasão da Ucrânia por Moscovo.
“No caso de uma agressão militar contra a Ucrânia, que poria em risco a sua soberania e integridade territorial, isso levaria a duras sanções, que preparámos cuidadosamente e que podemos pôr em prática imediatamente com os nossos aliados na Europa e no seio da NATO”, deixou claro este domingo, o novo chanceler da Alemanha, Olaf Scholz.
O chanceler alemão esteve em Kiev, tendo-se encontrado com o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Esta terça-feira, Olaf Scholz viaja para Moscovo para se encontrar com Putin.
Que capacidade terá a diplomacia de vencer este desafio e de afastar a via militar, é a dúvida que os próximos dias irão esclarecer.
Saiba mais:
A jornalista da FORBES Katya Soldak e editora das edições internacionais da FORBES é autora do documentário “The Long Breakup” (de 2020, com 85 minutos) sobre a luta da Ucrânia para escapar ao braço da Rússia, deixar o seu passado soviético e tornar-se um país verdadeiramente independente. O documentário está temporariamente disponível neste link.
Tradução e edição: Paulo Marmé