Durante os primeiros anos desta década, andava a Troika por Portugal, pensava-se que se Angola espirrasse, a economia nacional apanharia uma constipação.
O sentimento era especialmente sentido num armazém em Frielas, município de Loures, onde empresários de origem moçambicana montaram um negócio para distribuição de medicamentos na rota Lisboa-Luanda, articulando a portuguesa Farmaka com uma empresa também sua naquele país, a Farwell.
Tudo corria bem para a Farmaka em Luanda. Conseguia impor a qualidade dos medicamentos portugueses e praticamente arredar das farmácias e do mercado informal os medicamentos asiáticos num momento de alta do preço do petróleo, aproveitando o poder de compra e a fundação de novas farmácias… até que a economia angolana espirrou.
Iniciou-se então o processo de inversão da hegemonia dos produtos portugueses, que, muito pela mão da empresa de Frielas, chegaram a valer 80% do mercado, segundo contas do director-geral da Farmaka, Bruno Patinho.
O aforro amealhado nos anos do “el dorado angolano”, de 2010 a 2015, começou a esvair-se para cobrir o corte da liquidez dos clientes em Angola.
As facturações passaram do crescimento contínuo (com 2014 como cume da escalada de dividendos da empresa), para uma queda vertiginosa nos anos seguintes. Bruno refere que 2015 e 2016 ainda foram anos “muito consistentes”, mas, em 2017 e 2018, com a restrição ao nível da disponibilização de divisas para o exterior, os clientes da Farmaka não conseguiam libertar recursos.
O primeiro e principal destes clientes era a Farwell, cuja estrutura accionista se cruza com a da Farmaka, numa ligação familiar entre Lisboa e Luanda.
A agilidade dos gestores da Farmaka e da Farwell tem sido posta à prova como nunca desde 2014, altura em que o mercado dos medicamentos em Angola aqueceu com uma clientela sedenta de produtos de qualidade e desconfiado de algumas referências asiáticas.
Na altura foi necessário responder rapidamente à procura, confessa Jalaludin Rehemtula, director-geral da Farwell, que recebe a FORBES no bairro da Maianga, em Luanda. Era ali que se faziam filas à porta da empresa, numa procura desenfreada.
A Farwell, que usa os produtos portugueses e faz deles bandeira de qualidade, começou a receber pedidos superiores à capacidade de importação – o que só foi regularizado passando a vender apenas às farmácias licenciadas, num país onde o mercado informal é dominante e existe uma zona especializada em medicamentos, o designado Mercado dos Kwanzas. “A procura era desenfreada: o que chegava vendia-se em um ou dois dias. E se aceitasse vender tudo o que cada um nos pedia, o stock durava uma manhã”, explica Jalaludin.
A confusão chegou a incluir desacatos e cenas de pugilato, quando os revendedores de medicamentos se digladiavam por medicamentos portugueses que, a partir de 2017, se tornaram cada vez mais diminutos. Inversamente, a dívida da Farwell ao exterior acumulava-se e os créditos reclamados pela Farmaka tocaram nos 10 milhões de euros.
Dos 100 contentores por ano recheados de medicamentos registados no período áureo, a Farwell estava em meados de 2018 reduzida a 12, estrangulada pela falta de divisas para pagar a mercadoria exportada de Portugal.
Não havia dois caminhos: ou a banca abria a torneira, ou os fornecedores fechavam as suas. A gorar expectativas criadas pelo Governo de João Lourenço, as prometidas cartas de crédito borregavam repetidamente na banca comercial.
Em 2016, com a linha de crédito de 500 milhões de euros aberta pelo Governo de António Costa para os produtores portugueses clientes de Angola, a Farmaka conseguiu encher contentores pela última vez. “Foi muito útil. No segundo semestre de 2016 e em 2017 houve muita exportação com a linha de crédito”, conta o director-geral da empresa.
Contudo, ainda no final do primeiro desses anos, a dotação do Terreiro do Paço estava esgotada. “Todos os recursos da Farmaka foram investidos em Angola. Foi-se o balão de oxigénio”, explica Bruno, que, fechadas as contas de 2017 praticamente sem entrada de capital, começaria a receber em 2018 a factura dos juros da linha de crédito.
Por Terras de Vera Cruz
A partir de 2017, quando em Angola a escassez de divisas para importar mercadoria se começou a fazer sentir com maior intensidade, os medicamentos asiáticos viram chegar a hora de servir a vingança. Depois de durante anos terem sido esmagados pela qualidade dos produtos portugueses, “os armazenistas asiáticos organizaram-se e esmagaram os produtos portugueses para atrair os consumidores para os asiáticos”, explica Bruno.
O preço praticado chega a ser de 20% aquele que consta na embalagem portuguesa. Havia que agir. Bruno e Jalaludin mantiveram a prioridade nos produtos portugueses e procuraram outros mais baratos que os deixassem “descansados em termos de efeitos adversos”.
Foi assim que, em 2018, fizeram uma investida no outro lado do Atlântico, iniciando uma triangulação Lisboa-São Paulo-Luanda, através dos laboratórios brasileiros Teuto – que até 2017 e após uma ligação de sete anos contavam com uma participação de 40% da Pfizer.
No Brasil, os gestores encontraram valências que estavam habituados a propalar como elemento diferenciador da qualidade dos produtos portugueses, designadamente a língua da informação na caixa, posologia e blisters – ainda que, como constatámos no armazém da Maianga, em Luanda, com alguns percalços ortográficos.
Os genéricos brasileiros – mais baratos também que os portugueses que a Farmaka envia para a Farwell, de empresas como a Generis – trouxeram preços “substancialmente” mais baixos ao portefólio da empresa e a experiência “está a ter muito boa aceitação”, diz Jalaludin.
“O Brasil tem muito bons laboratórios, é um país tropical e muitas das doenças são semelhantes”, nota o gestor da firma angolana, reconhecendo que se não desse ao seu cliente um produto de preço alternativo para o “manter agarrado à casa”, acabaria por perdê-lo para outro distribuidor. O argumento é inatacável: “o bolso decide”.
Com alguma libertação de divisas na economia angolana e a oferta brasileira que a Farmaka começou a fazer, o stock da empresa associada em Luanda aumentou, o que tornou possível reabrir instalações numa zona a sul da capital angolana, na Zona Industrial de Viana, onde as farmácias puderam começar a fazer compras directamente. Certo para os gestores das duas empresas, é que os tempos áureos são passado.
“Nunca mais, com certeza”, haverá venda tão expressiva de medicamentos, admite Jalaludin, já que os asiáticos ganharam o seu espaço e têm o argumento de peso da validação pela autoridade do medicamento – Direcção Nacional de Medicamentos e Equipamentos, congénere do Infarmed. Contudo, os tempos são agora menos sombrios do que há uns anos. “Os dois últimos semestres parecem dois anos e dois países diferentes”, refere Bruno..