As Raparigas do Código são uma comunidade jovem focada em promover a inclusão digital através de atividades variadas (como clubes de programação, hackatons, webinars e encontros) associadas ao ensino da programação para raparigas em idade escolar – ensino básico, secundário e superior. O objetivo é desmistificar o papel da mulher na tecnologia, encorajando mais raparigas e mulheres a ingressar no setor das tecnologias de informação.
Miriam Santos, estudante de doutoramento em engenharia informática, fundadora e formadora desta comunidade com quem conversámos e que explica como tem vindo a desenvolver-se este projeto e quais os passos seguintes que estão planeados serem dados.
O projeto inspirou-se nalguma realidade existente noutro país?
Miriam Santos (MS): O projeto surgiu, na verdade, como uma resposta à realidade existente no nosso país, na sequência da 3ª Conferência do Fórum Permanente para as Competências Digitais, realizada no âmbito do Portugal INCoDE 2030, em 2020. Ao contrário do contexto que encontramos noutros países, como os Estados Unidos, os projetos de inclusão digital em Portugal estão ainda numa fase inicial, ou não têm muita visibilidade e apoio, não podendo por isso criar o impacto desejado. Essencialmente, temos neste momento dois tipos de projetos em Portugal: os de educação e os de comunidade. Os projetos de educação (escolas e bootcamps de programação, programas de upskilling e reskilling) não se focam especificamente em mulheres, são programas para quem já sabe que gosta de tecnologia e/ou que ramo pretende seguir, e são normalmente programas intensivos que exigem um grau elevado de compromisso, tanto a nível de tempo como a nível monetário. Temos depois comunidades e iniciativas focadas em mulheres, que promovem o contacto com modelos ou com o setor, mas que acabam por se traduzir em eventos, meetups, ou programas/iniciativas de curta duração, que servem o seu propósito de consciencialização e contacto com o setor, mas não de educação continuada.
“O nosso objetivo é introduzir as alunas à tecnologia e programação e ajudá-las a desenvolver as suas competências digitais”
O projeto “As Raparigas do Código” foi, portanto, criado com um objetivo duplo: construir uma comunidade que promove o contacto com o setor e com modelos, mas sempre acompanhada de um plano de educação que se adapta às necessidades das alunas. O nosso objetivo é introduzir as alunas à tecnologia e programação e ajudá-las a desenvolver as suas competências digitais, dando-lhes sempre apoio, orientação e ferramentas para que elas possam continuar a explorar a tecnologia cada vez mais autonomamente e de acordo com os seus objetivos e interesses, e criando uma rede de mentores para promover um sentimento de inclusão, segurança, confiança e empatia.
O programa “As Raparigas do Código”, lançado em 2020, quantas alunas já requalificou/formou?
MS: É importante esclarecer que “As Raparigas do Código” não se definem como um programa de upskilling, reskilling, ou como um bootcamp de programação. Enquanto comunidade para a inclusão digital, oferecemos o acesso gratuito à educação e mentoria a raparigas em idade escolar ou recém-graduadas, a mulheres que estão ou ponderam fazer programas de qualificação ou requalificação, a mulheres que pretendem desenvolver as suas competências digitais para alavancar projetos pessoais, ou que têm apenas o “bichinho da tecnologia”. Desde o início das nossas formações em 2021 (dado que em 2020 nos dedicámos ao desenvolvimento da infraestrutura do projeto e produção de material), temos mais de 350 alunas inscritas no projeto, 130 das quais já frequentaram algumas das nossas formações, sendo que contamos atualmente com três edições de Tecnologias Web, duas edições de Introdução à Programação com Python, vários workshops de LinkedIn, Git, e GitHub, UX/UI e Figma, e terminámos agora a 1ª edição de Data Science em Python.
“Desde o início das nossas formações em 2021, temos mais de 350 alunas inscritas no projeto, 130 das quais já frequentaram algumas das nossas formações”
As formações em programação são em que tipo de linguagem informática?
MS: Podemos dividir as nossas formações (workshops) em três tipos principais: workshops de tecnologia e programação, workshops de ferramentas e workshops de carreira. No caso dos workshops de programação, até ao momento trabalhámos em Tecnologias Web (HTML, CSS, JavaScript) e Introdução à Programação (Python, Data Science). Em relação aos workshops de ferramentas trabalhámos nas áreas do Design (introdução ao UX/UI, introdução ao Figma), e com tecnologias de gestão de versões (Git, GitHub). Em termos de gestão de carreira, realizamos workshops de LinkedIn, construção de portfólio e desenvolvimento de projetos, construção do curriculum vitae e preparação para entrevistas (técnicas e culturais).
Quais são as formações mais requisitadas?
MS: As formações em Tecnologias Web são frequentemente requisitadas porque é a forma mais frequente de alguém com um background não-tecnológico entrar no setor (por exemplo, como frontend developer). Neste momento, contamos já com três edições de Tecnologias Web e estamos a preparar o nosso primeiro workshop em React JS, a pedido das alunas que frequentaram as edições anteriores, e estão prontas para se dedicar a tópicos mais avançados. Python, por ser uma linguagem de programação tão versátil, praticamente omnipresente em todos os tipos de projetos e aplicações (data science, desenvolvimento de software, web development) e por ser a que mais se ensina de momento em vários cursos nas universidades (em engenharia, matemática, informática), é também uma das mais requisitadas.
Qual a duração normal das formações?
MS: Temos atualmente dois tipos de duração: workshops pontuais ou de curta duração, e ciclos de workshops. Os workshops de curta duração são tipicamente os de ferramentas e carreira, com a duração de duas a três sessões (2h a 3h cada). São os que realizamos mais frequentemente no verão, devido à disponibilidade limitada das alunas. Os ciclos de workshops incluem cerca de sete a oito sessões, são realizados aos sábados, das 10h às 12h (uma aula por semana). Nestes ciclos de workshops, as alunas têm um/a mentor/a associado/a que está disponível para as orientar, disponibilizar material extra, e reunir com elas para ajudar a resolver os exercícios lançados todas as semanas, ou discutir outros temas e tecnologias, de acordo com as suas necessidades, objetivos e interesses.
O acesso é gratuito? Como são financiados, então?
MS: O acesso aos workshops e à mentoria é totalmente gratuito. De momento não somos financiados, e nos primeiros anos de atividade, o custo das ferramentas foi suportado pela equipa. Este ano, com a ajuda da nossa comunidade, em crowdfunding, conseguimos reunir fundos para concluir o processo de criação de Associação Sem Fins Lucrativos. Entretanto conseguimos também o apoio da Amazon para alojar o website, por exemplo. Neste momento, para o ano 2022/2023, estamos a trabalhar na construção de parcerias e sponsorships que nos permitam cobrir os custos que temos atualmente, e realizar alguns projetos ambiciosos que ainda permanecem no papel. Neste sentido gostaríamos de agradecer à Cláudia Mendes Silva e à Women in Tech Portugal, que tem sido o nosso maior apoio desde a nossa criação, na realização de projetos, eventos, e na visibilidade que nos tem dado.
“Para o ano 2022/2023, estamos a trabalhar na construção de parcerias e sponsorships que nos permitam cobrir os custos que temos atualmente”
De que forma é disponibilizado o acesso ao software, já que os que não são open source são pagos?
MS: O software que disponibilizamos às alunas é open-source, qualquer pessoa pode fazer download da internet. Linguagens como o Python, ou ferramentas como o GitHub, Sublime, Jupyter Notebooks, qualquer browser, não têm custo associado. Relativamente ao software que usamos para as atividades da associação em si, a nossa primeira opção é também procurar tudo o que seja open-source. Quando não existe, nalguns casos implementamos de raiz, ou pedimos a amigos que já desenvolveram esse tipo de software (por exemplo, plataformas de testagem automática de exercícios). Também nos candidatamos aos programas de non-profit que muitas empresas de software têm. Há situações que não podemos contornar, como as licenças de videoconferência, dado que nem sempre as alternativas gratuitas nos permitem ter a qualidade necessária para as aulas, da qual não abdicamos. Estamos a gerir. Somos apologistas do “where there’s a will, there’s a way”.
Quem dá as formações às alunas são voluntários? Recebem alguma coisa? Os formadores também são apenas mulheres?
MS: Os mentores do projeto são profissionais qualificados no setor das Tecnologias de Informação (engenheiros, diretores de engenharia, analistas, programadores, designers, recrutadores, gestores de projeto/equipa/produto, consultores), estudantes de licenciatura em Ciência da Computação, ou estudantes de doutoramento em Engenharia Informática. Alguns mentores são docentes em instituições do ensino universitário, politécnico, ou em escolas de formação profissional, e outros experienciaram eles próprios processos de reconversão. Todo o trabalho que desenvolvemos é voluntário, não há qualquer tipo de remuneração envolvida. Trabalhamos no nosso tempo livre, aos fins de semana, depois do trabalho, quando nos é possível. Apesar das formações serem dedicadas a mulheres (uma vez que o nosso trabalho se foca sobretudo na redução do gender gap na tecnologia), a nossa equipa inclui tanto mulheres como homens. Não há quaisquer requisitos de género para se ser mentor.
Qual o critério que seguem para selecionarem as alunas que vão frequentar os cursos?
MS: O principal critério é normalmente a ordem de inscrição. Os membros da nossa comunidade recebem em primeiro lugar a informação de que um determinado ciclo de workshops será lançado e podem inscrever-se antecipadamente. Só em seguida essa informação é disponibilizada ao exterior (redes sociais). Desta forma, procuramos dar prioridade às pessoas que estão inscritas no projeto há mais tempo. Temos também um processo de recompensa das alunas mais assíduas e interessadas, que têm acesso garantido a qualquer workshop. É a forma que temos de as premiar pelo seu esforço e trabalho. Para alguns workshops mais avançados, é feito um processo de seleção com base num exercício de admissão, para garantir que as alunas poderão seguir o material das aulas confortavelmente. Também é comum agendarmos uma curta conversa com alguns grupos de alunas para conseguirmos perceber quais os seus objetivos e motivação, porque em muitos casos, as alunas precisam de uma mentoria específica, de alguma ajuda a desbloquear certos conceitos, mais do que de aulas sobre um determinado tema.
“Temos um processo de recompensa das alunas mais assíduas e interessadas, que têm acesso garantido a qualquer workshop“
Já têm histórias concretas (se possível mais do que uma) de mulheres que, a partir das formações feitas aqui, mudaram a sua vida profissional?
MS: As raparigas e mulheres que nos procuram fazem-no em circunstâncias bastante diversas.
Uma das principais é compreender se a tecnologia e a programação seriam opções viáveis para uma mudança de carreira. Nesse sentido, temos alunas que, após frequentarem os nossos workshops, ganharam a confiança necessária para investir tempo e dinheiro num compromisso a longo prazo, inscrevendo-se em escolas de programação ou programas de reconversão. É o caso de uma das nossas alunas, formada em Engenharia Civil, que depois do ciclo de workshops de Tecnologias Web, decidiu investir numa formação especializada na área de web development. Outra das nossas alunas, que desenvolvia a sua atividade profissional na área da investigação em Biotecnologia, mesmo tendo contactado com a programação no Ensino Superior, nunca considerou a Informática como uma carreira viável para si. Depois de frequentar os workshops de Introdução às Tecnologias Web em 2021, descobriu que a programação, mais do que uma alternativa viável, era algo de que gostava, e hoje trabalha como frontend developer. Outras duas alunas, uma licenciada em jornalismo e outra em fisiologia clínica, estão neste momento em programas de reconversão.
“Temos alunas que, após frequentarem os nossos workshops, ganharam a confiança necessária para investir tempo e dinheiro num compromisso a longo prazo, inscrevendo-se em escolas de programação ou programas de reconversão”.
Outra motivação é conseguirem desenvolver melhor as suas funções enquanto profissionais. Isso sucedeu muito neste último curso de Data Science, com alunas que trabalhavam em cargos de data analyst ou business analyst que, tendo algum conhecimento da área, queriam perceber um pouco mais sobre os algoritmos desenvolvidos pelos engenheiros de machine learning ou data scientists. Compreender melhor os processos de desenvolvimento permite-lhes uma melhor interpretação e análise crítica dos resultados produzidos, e ter mais ideias para a sua otimização.
Outro caso são as algumas das nossas alunas que trabalham em IT recruitment, que procuram saber um pouco mais sobre determinadas tecnologias para poder avaliar melhor os candidatos, ou pessoas de outros backgrounds (por exemplo, designers), que pretendem conseguir melhor comunicar com os web developers.
Temos ainda algumas alunas com alguns bloqueios a nível da programação, que após mentoria personalizada decidiram continuar o seu percurso académico na área (mestrados em informática, bioinformática ou afins).
A partir das formações e mentorias feitas com As Raparigas do Código, e com a partilha de experiências e sentido de comunidade que é promovido, estas jovens raparigas e mulheres conseguiram avançar na sua vida académica ou profissional.
Qual é a evolução próxima que pretendem dar ao projeto?
MS: Depois de dois anos de pandemia, queremos sobretudo mover-nos do virtual para o presencial, porque a conexão que se cria entre as participantes e os próprios mentores não tem comparação. Estamos à procura de parceiros que nos ofereçam um espaço físico e recursos para realizar os nossos ciclos de workshops, primeiramente a começar em Lisboa, Porto e Coimbra.
“Estamos à procura de parceiros que nos ofereçam um espaço físico e recursos para realizar os nossos ciclos de workshops, primeiramente a começar em Lisboa, Porto e Coimbra”.
Gostaríamos também de chegar a mais jovens do ensino secundário e superior, de modo a promover a cultura da tecnologia cada vez mais cedo. Temos participado em alguns eventos e workshops com alunos do ensino superior e gostaríamos de o fazer cada vez mais, trazendo mais raparigas para a nossa comunidade. Neste sentido temos tido uma colaboração mais próxima com a Universidade de Coimbra, o ISCAC e o ISCAP, mas gostaríamos de estender essa colaboração a outras universidades e escolas do país.
Procuramos sobretudo estabelecer parcerias a longo prazo com instituições e empresas que estejam alinhadas com os nossos valores e que queiram contribuir para o impacto que pretendemos trazer, que é criar um ecossistema tech (tanto empresarial como educativo) mais inclusivo e diverso.
“Queremos criar um ecossistema tech – tanto empresarial como educativo – mais inclusivo e diverso”.
Outro dos nossos objetivos é alargar a oferta de workshops que temos atualmente. Algumas sugestões que temos recebido focam-se no ensino da Programação Orientada a Objetos em Java, Introdução do R e Introdução às Bases de Dados com SQL. Neste âmbito, precisamos de fazer crescer a equipa com mentores que estejam à vontade nestes tópicos (sendo que normalmente temos 5 a 6 mentores por curso).
No geral, o crescimento da equipa é uma evolução necessária para nós, já que o projeto acabou por crescer muito rapidamente, e existem muitas outras vertentes, para além das formações, nas quais precisamos de trabalhar: marketing e comunicação, vendas, gestão de equipa, cliente, produto, conteúdos. Nalguns casos, são as próprias alunas que contribuem, uma vez que têm backgrounds diversificados. Noutros casos, os próprios mentores usufruem de mentoria nas áreas que não dominam, uma vez que os perfis que temos são, na sua grande maioria, tecnológicos. Esta é também uma possível forma de colaboração, nem todos os mentores dão formação às alunas, mas sim aos colegas. Há mentores que nos ajudam a estabelecer parcerias, outros a redesenhar o website, outros a gerir as equipas. Este é o verdadeiro sentido de comunidade que promovemos.
“O crescimento da equipa é uma evolução necessária para nós”
A curto prazo, estamos a preparar um novo ciclo de workshops de React JS que arrancará já em Setembro, um ciclo de workshops de Introdução à Cibersegurança que será desenvolvido em parceria com as Women4Cyber Portugal, e workshops de curta duração (2/3 sessões) de Gestão de Carreira, Preparação de Entrevistas e SCRUM.