Quando comprou uma máquina de furos da Regina num antiquário no início do século, Manuela Tavares de Sousa sentiu um desejo: trazer de volta ao mercado aquele quase bibelô, que por cada “furinho” feito pelo cliente dava um chocolate.
À data, recém-promovida a presidente da Imperial, empresa que tinha acabado de adquirir a falida fabricante Regina, tomou uma das primeiras decisões do seu mandato: recuperar a caixa para o “canal de impulso”, pastelarias, confeitarias, gasolineiras e lojas especializadas.
Na pior das hipóteses, o preço que o cliente do estabelecimento pagava para fazer o furo correspondia a um chocolate da Regina com esse valor. Muito simples. Ou não.
O Governo Civil – órgão público de poder extinto em 2011 –, decidiu que este era um jogo de fortuna e azar, pelo que o seu destino deveria ser casas de jogo. Imaginar os jogadores de roleta, Slots e Caribbean Stud Poker a esburacar a máquina da Regina no casino não deixa de ser uma imagem humorística.
Mas foi durante 10 anos uma equação impossível de compreender, mesmo para o pensamento ecléctico desta engenheira química com especialização em chocolates e confeitaria num curso na Alemanha e uma segunda licenciatura em Ciências Farmacêuticas na Universidade do Porto. “Jogo de azar? No mínimo saía um chocolate do valor do furinho. Só podia ser de fortuna”, diz, com ironia, a presidente da Imperial.
O problema só se resolveria uma década depois, em 2013, ano de comemoração do 85.º aniversário marca Regina, extintos os Governos Civis, e com um pedido feito directamente ao Governo.
Tal foi a aceitação do mercado que aquilo que Manuela previa como acção de marketing no Natal se tornou em mais uma linha de negócio, com um sucesso que a surpreendeu – e abalou o mercado de chocolates em Portugal, assegura –, após 10 mil máquinas serem colocadas em outros tantos pontos de venda numa só semana.
Um accionista que valeu milhões
O triunvirato formado pelo Pai Natal, coelhinho e peixinho das fantasias de Natal da Imperial e as suas Pintarolas – os “Smarties” portugueses – acolheram em Vila do Conde, em 2001, a sombrinha de chocolate, as tabletes com sabores de fruta e o desconcertante “Coma com Pão” – uma pequena tablete destinada a entrincheirar entre duas fatias de pão – que faziam parte do portefólio histórico da Regina, fundada em Lisboa em 1927 e falida na década de 1970.
Outrora concorrentes, as duas marcas são elaboradas lado a lado em Vila do Conde. A partilha de accionista é contemporânea da chegada de Manuela à presidência, depois de mais de uma década noutras funções. As receitas neste período quadruplicaram para 33 milhões.
Mais recentemente, em 2015, o grupo RAR, accionista que durante mais anos deteve a Imperial –fundada em 1932 e adquirida pela RAR em 1973 –, vendeu a sua participação ao fundo de capital de risco Vallis Sustainable Investments I, da Vallis Capital Partners.
Manuela reconhece que agora há outra estratégia accionista, seguindo a lógica dos fundos de investimento de comprar uma empresa já tendo em vista a sua venda, com um prémio. Mas assegura que a transição na gestão “foi absolutamente tranquila e pacífica”.
Não é por estar agora separada de um grupo industrial que perdeu chão, até porque a RAR, detentora de negócios distintos entre si, não promovia sinergias, designadamente na internacionalização, concretizada na Imperial de forma autónoma, apenas com a estrutura interna.
O ataque aos mercados é feito em modo dual, entre o ibérico e os restantes países. Uma lógica defendida pela partilha de mercado de várias cadeias de distribuição.
Com a Vallis, a relação é “muito próxima, muito boa”, dali advindo verdadeiro acréscimo de valor para a empresa, desde logo por via da abertura ao investimento. “O objectivo da Vallis foi claramente dotar a Imperial de meios tecnológicos e capacidade de produção para lhe dar músculo e para que ela rapidamente ganhasse mais dimensão”, considera.
“Temos um ciclo de planeamento estratégico na Vallis até à definição dos objectivos estratégicos, normalmente a cinco anos, e depois a definição do plano operacional para o ano. Com base nessa aprovação, a autonomia do CEO [presidente-executivo] da empresa é total, com o apoio sempre que necessário dos accionistas”, detalha.
No surgimento da Vallis, Manuela vê um marco importante e uma viragem na vida da Imperial, tendo em conta a estratégia de abertura ao investimento deste fundo. Um ano passado após a aquisição, a 22 de Setembro de 2017, estava a inaugurar uma nova fábrica, a unidade três, para produção de drageias, um esforço financeiro de 6 milhões de euros.
“Este investimento foi absolutamente determinante para o crescimento grande que tivemos nestes últimos três anos”, diz, notando que as drageias e as tabletes são as duas categorias mais vendidas no Brasil, África do Sul, Médio Oriente e Rússia, países onde a Imperial está a entrar em força.
A própria presidente-executiva viajou para Moscovo sete vezes no espaço de seis meses aquando do processo de lançamento da empresa portuguesa na Rússia. É o reflexo de uma estratégia por si incutida de proximidade com o consumidor, o mercado, os clientes e os canais de distribuição. “Não acho possível alguém gerir uma empresa – e ter sucesso – sem ter uma proximidade total com o consumidor, o mercado, os clientes, os canais de distribuição”.
O ataque aos mercados é feito em modo dual, entre o ibérico e os restantes países. Uma lógica ibérica defendida pela proximidade geográfica e partilha de mercado de várias cadeias de distribuição, com modos de actuação e lógicas de gestão similares.
Nos restantes países visou-se sobretudo mercados emergentes e em processo de crescimento e desenvolvimento, com menor maturidade no consumo, logo mais abertos ao selo de qualidade europeu.
Apesar de tudo, Portugal não só continua a ser o principal mercado, como até reforçou a posição, não pela redução das exportações, mas porque por cá se intensificou o consumo. Num mercado a crescer na ordem dos 3%, as marcas da Imperial e Regina aceleraram 10% – números da empresa.
Ouro negro
O cacau, tal como o açúcar e os cereais, tornou-se ainda matéria-prima de refúgio para investidores, sobretudo aquando do estoiro da bolha imobiliária nos EUA, há uma década.
Nessa altura, a Imperial viu a sua base de trabalho disparar mais de 50%, por força da especulação nos mercados financeiros que tornou o cacau num novo “ouro negro”, nota a gestora.
O factor cotação nos mercados é um dos elementos que intervém na oferta, porque os agricultores tendem a seguir os produtos com maior procura. Para erguer uma nova plantação de cacau do zero são necessários três a quatro anos, diz Manuela.
Como exemplo aponta a Indonésia, que, com os agricultores incentivados pelo Governo a produzir o cacaueiro, tornou-se em escassos anos num grande produtor de favas de cacau.
O disparo na Bolsa prolongou-se por dois ou três anos e aliviou parcialmente, nunca rectificando a linha ascensional, pelo que a manteiga e pasta de cacau estão hoje com um valor de mercado que é o dobro do do início do século. “E o preço do chocolate provavelmente está mais barato”. Como? “As indústrias tornam-se mais competitivas, os canais de distribuição também”, justifica Manuela.
O cacau tornou-se matéria-prima de refúgio para investidores com a crise nos EUA. Nessa altura, a Imperial viu a sua base de trabalho disparar mais de 50%.
Na Imperial nem se reduziu o teor de cacau nem o tamanho dos chocolates, garante a gestora, salientando os cerca de 20 milhões de euros investidos na última década em modernização tecnológica. A actualização da maquinaria traduz-se em mais produção e maior competitividade.
Somou-se o ganho de eficiência dos retalhistas para que o consumidor não tenha sentido um disparo nos chocolates Regina e Imperial.
A volatilidade da matéria-prima – sempre pressionada pela instabilidade política nos grandes produtores e por factores climáticos – é trabalhada com a compra antecipada: para 2019 a produção já está assegurada com os futuros de cacau adquiridos em Londres e a administração da empresa de Vila do Conde já está a negociar contratos para 2020.
“É um processo normal de qualquer indústria, até para manter o preço estável, porque o cacau sofre oscilações muito grandes, fruto sobretudo dos factores climáticos que podem afectar muito as colheitas”.
Vítima da incapacidade de adaptação à abertura de Portugal às multinacionais aquando da entrada na então Comunidade Económica Europeia, e ao surgimento de um novo agente na distribuição, os hipermercados, na década de 1980, a Regina faliu e esteve seis anos fora do mercado, destaca Manuela.
“Mas a sua força era tão grande que, quando voltou a aparecer, – com os mesmos elementos simbólicos e icónicos, em termos de packaging, que a marca detinha e estavam no subconsciente das pessoas – teve uma receptividade, quer por parte dos consumidores, até por parte dos media, absolutamente espontânea”.
Catarina Portas, fundadora de A Vida Portuguesa, cruzou-se com essa história na Feira da Ladra, quando adquiriu um rótulo da colecção de há várias décadas alusiva à vida sumptuosa no Estoril na década de 1940. Lançou o desafio à Imperial e as barras de chocolate com aquelas embalagens renasceram, usando mais dois rótulos que outros coleccionadores detinham. “Com esses rótulos fizemos os textos, as traduções, sugerimos o designer gráfico. Feito por nós com total acordo da Imperial”, destaca a empresária, adiantando que há outras parcerias na forja entre a Vida Portuguesa e a Imperial.
A procura dos consumidores por produtos com história vê-se no sucesso junto de turistas estrangeiros e clientes de mercados desenvolvidos, como Inglaterra, França e EUA, que valorizam a tradição.
Neste capítulo, a Imperial capitaliza com as suas marcas fortes e com muitas décadas no mercado. E junto dos portugueses pela relação emocional criada, desfia Manuela. Mas não se pense que a Regina só vive do mercado do saudosismo.
Vejam-se as conjugações de caramelo e sal num chocolate sem glúten e o Regina negro com 70% de cacau ou o Regina Vita+ com 85%.
“Para que esta relação emocional se mantenha com os consumidores, a Imperial tem de ter capacidade de continuar a alimentar essa relação. Isso só se faz com capacidade de antecipar tendências de mercados, saber interpretá-las bem e lançar produtos vocacionados para ter sucesso”, diz a decana da Imperial, líder há 17 anos e funcionária há quase 30, ainda a Regina era concorrente da Imperial.
Segmento em que a empresa reclama pioneirismo é o dos produtos de chocolate com elevado conteúdo proteico (distintos das barras proteicas com ingredientes que não são verdadeiro chocolate, mas um sucedâneo, reforça a gestora), de fibras, sem açúcar, glúten nem organismos geneticamente modificados, salienta.
Seja a ideia de Catarina ou de alguém de dentro da organização, a resposta da Imperial a um novo desafio é rápida, fruto da dimensão média da empresa que lhe permite ter flexibilidade e versatilidade, defende Manuela. Entre a ideia e o surgimento do chocolate no mercado demora-se 6 a 12 meses.
Talvez o melhor emprego do mundo
A voracidade da gestora para chocolates é, em parte, “ossos do ofício”. Dias há em que necessita de provar dezenas de amostras de chocolate ou taças de mousses preparadas com os chocolates de cozinha desenvolvidos no laboratório – Pantagruel branco, Capuccino, sem açúcar e o de 85% de concentração são referências alternativas ao clássico. “O meu limite por dia é 30 a 50 amostras. Há pessoas que não têm capacidade para tal. Sou capaz de chegar de manhã e aparecerem-me 10 tacinhas de laboratório com diferentes tipos de mousses de cappuccino, para seleccionar o sabor, a textura, a fórmula. Tenho de provar as 10 e identificar a que entendo mais adequada”.
A presidente-executiva acrescenta que há um painel provador oficial da empresa, da qual a administração também faz parte. “Ainda bem que é chocolate!”, remata.
O mesmo dirão, certamente, muitos dos clientes que vão fazendo provas durante as reuniões de apresentação de novos produtos que já passaram pelas reuniões de projecto da equipa da Imperial, onde já só desaguam os chocolates com potencial para o mercado.
“Estamos continuamente a provar produtos. É uma tarefa normal numa empresa de produtos alimentares. Não há praticamente reunião em que não haja produtos a provar”, conta a líder da empresa.
As provas internas têm lugar em vários momentos, incluindo quando o produto está pronto para entrar no mercado. “Não há produto que saia da primeira produção que não seja formalmente provado e aprovado por toda a equipa, incluindo eu. Tenho de aprovar desde a informação no packaging, ao próprio packaging e ao produto – sabor, textura, várias características”, explica.
Nas reuniões em que intervêm todos os departamentos da empresa fazem-se provas inclusive dos produtos da concorrência.
“Estamos continuamente a provar produtos. É uma tarefa absolutamente natural e normal numa empresa de produtos alimentares. Não há praticamente reunião em que não haja produtos a provar”, conta a líder da empresa.
Uma tarefa que muitos pagariam para desempenhar, mas de que outros fugiriam. Como aquela candidata a uma posição na Imperial que Manuela dispensou de uma entrevista de emprego quando confessou não ser apreciadora desta iguaria. “Não se consegue desenvolver e vender bem, um produto sem ter paixão pelo produto. Ainda por cima quando obriga a provas. É como o vinho ou leite ou outro produto”.
Naquele antiquário referido no início deste texto, Manuela acabaria por comprar a caixa de furos. O que não previa há 15 anos era que aquilo que idealizou na altura como uma acção de marketing e charme se tornaria num sucesso tão grande, com 3 milhões de furos – ou dito de outra forma, 3 milhões de chocolates – vendidos num só ano.
A empresa acabaria por lançar a máquina doméstica, com 20 furos, em vez dos 140 das máquinas destinadas ao comércio. Em 15 dias, no Natal de 2013, a mais pequena esgotou.