O voo rasante do KC-390 nos céus de Évora, em Julho, sobre os telhados das duas fábricas da Embraer, foi para os trabalhadores da empresa como ver um filho levantar voo do ninho. Uma imagem que remete para o cluster aeronáutico que se está a formar em Portugal, alavancado pela Embraer, o maior fabricante mundial de aviões comerciais, logo após a Boeing e Airbus.
A viragem do século coincidiu com um novo voo para o gigante brasileiro dos ares, ao desenvolver aviões executivos. Começou com o Legacy 600, numa altura em que os aviões comerciais garantiam 90% das receitas. Na gama actual, os executivos Legacy 450 e 500 (no ar desde há cerca de três anos), voam com asas fornecidas na íntegra pela Embraer Portugal, com sede em Évora. Dali, seguem por camião até Setúbal ou Sines e são exportadas por navio.
A presença da Embraer em Évora, que também é accionista maioritário da OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal, faz-se com duas fábricas. Uma de materiais compósitos e outra, de estruturas metálicas, que trabalha peças em alumínio de grande dimensão – matéria-prima proveniente sobretudo da Alcoa – e elevado grau tecnológico. Exemplo disso é a estrutura exterior das asas do KC-390, cada uma com 18,4 metros de comprimento (a peça maior ali fabricada).
Neste modelo, a valência de combate a incêndios florestais é vista como ponto a favor na ponderação que o Estado português terá de fazer para a sucessão do Hércules C130, que voa ao serviço de Portugal há quatro décadas.
Paulo Marchioto, presidente da Embraer Portugal, não esconde a expectativa de que a presença da fábrica por cá contribua para uma ponderação do Estado a favor dos brasileiros, até porque traria trabalho e “orgulho de ver a Força Aérea Portuguesa voando com um avião que traz um conteúdo de aero-estrutura feito aqui em Évora”.
Voar bem alto
Com os jactos executivos a valerem quase metade das receitas, a Embraer quer novos voos com o recente E2 e com o KC-390, o maior avião alguma vez construído pela empresa – e em Évora crescem as asas que o fazem voar em testes há já alguns meses.
Nesta geração, o modelo 175 tem incorporada tecnologia nunca antes usada pelos brasileiros, como um estabilizador horizontal. A estreia acontecerá na Embraer Portugal. Um feito para uma empresa activa há apenas quatro anos e que enfrenta concorrência interna (dos EUA ao Egipto e China) mas também externa. Isto porque a empresa não tem no grupo um cliente garantido. Ser competitivo é essencial.
“Ser Embraer não me garante que consigo vender”, diz Paulo Marchioto, presidente da Embraer Portugal.
As unidades de negócio da Embraer Brasil pedem, no mínimo, três cotações no mercado e para ganhar é necessário o menor custo e a melhor qualidade com eficiência operacional. “Ser Embraer não me garante que consigo vender”, diz Paulo.
Em contrapartida, a empresa nacional pode fornecer concorrentes da Embraer, tendo já encomendas de um grande construtor mundial para um componente fabricado ali em Évora.
Apesar de tudo, a proximidade à divisão de fabrico da companhia é uma vantagem, “a principal”, diz Paulo. As duas fábricas, como “fornecedoras de primeira linha”, têm capacidade e competências dinâmicas para apresentarem propostas competitivas, beneficiando da troca de conhecimento com laboratórios especializados e universidades.
“Procuramos a cada dia assegurar a agilidade no negócio que nos permita perpetuar esta nossa presença no Alentejo. Seja trabalhando para a Embraer, seja para outros clientes”, assegura o presidente da empresa.
Parte desta estratégia está também assente numa activa participação da equipa de Paulo na construção de um forte cluster aeronáutico no país. “A escolha de Portugal [para a fábrica] faz parte da globalização da empresa. Precisávamos de ter uma base na Europa”, explica o responsável da Embraer Portugal, que conta com 35 anos de experiência no seio da empresa brasileira. Segundo Paulo, a companhia “trabalha para criar uma rede de fornecimento em Portugal” e pretende que estas empresas sejam sustentáveis, o que significa conseguirem alcançar mais clientes, contribuindo para o estabelecimento do cluster aeronáutico. “É bastante saudável, porque se pudermos tirar a componente logística do meio, temos uma redução muito boa no custo”, afirma.
Riqueza para a economia local
A decisão da Embraer de avançar com o investimento aconteceu em 2008 e a inauguração das fábricas em Setembro de 2012. Trata-se de um investimento global de 320 milhões de euros, o maior da empresa fora do Brasil. Pelo meio, em 2010, iniciou-se a formação profissional, numa colaboração entre a Embraer, o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) e a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP). Com isto, muita gente saiu do desemprego, diz Paulo, e outros tornaram-se qualificados”. Exemplo disso é a história de um ex-vendedor numa loja da cidade que chegou a técnico especializado na empresa.
As exigências da Embraer, que introduziu o conteúdo programático no IEFP, enquadravam-se nos campos da maquinação, produção de compósitos, montagem de estruturas, tratamento de metais, qualidade e logísticas, áreas em que a delegação do Alentejo do IEFP formou 1092 pessoas de 2012 a 2016, segundo dados fornecidos pela instituição à FORBES. Na Embraer entraram ainda boa parte das 800 pessoas formadas no Centro de Emprego e Formação Profissional de Setúbal. “Indivíduos com as competências profissionais necessárias para operar na Embraer não se encontravam disponíveis no mercado de trabalho da região, nem no resto do país”, assume Arnaldo Frade, delegado regional do IEFP.
“Foram desenvolvidos novos referenciais de formação, em colaboração com as empresas, em particular a Embraer, necessários ao desenvolvimento de formação adequada”. Hoje já há pessoas de outras regiões a procurar formação profissional nestas áreas, o que Arnaldo Frade considera “bastante positivo”, pelo contributo dado ao desenvolvimento do cluster. “A falta de mão-de-obra qualificada disponível poderá representar um factor crítico”, considera.
Paulo explica que algumas das pessoas provenientes do IEFP foram enviadas para o Brasil e, com o “círculo virtuoso” criado, esses trabalhadores já formam os novos estagiários. “O mais importante de tudo é que as pessoas responderam à chamada e aprenderam muito rápido”, diz. Por seu lado, Arnaldo Frade assegura que “foi um grande desafio que o IEFP enfrentou”. Uma aposta ganha, garante. Hoje, em 415 funcionários, só quatro são brasileiros. “E já fazemos peças para praticamente todos os aviões da Embraer Brasil”, destaca o engenheiro brasileiro.
A mesma vitória tem sido conseguida com a ligação à academia, por via da Universidade de Évora, do Instituto Superior Técnico, e de outras universidades nacionais. A mensagem é de que a Embraer Portugal quer ser referência mundial e perene. Sobre os actuais estagiários, Paulo coloca a tónica na meritocracia e antevê que será mantida a média de 80% de contratação. A satisfação dos trabalhadores é a garantia de bons voos. Ou, nas suas palavras, “cuidem das pessoas que elas cuidarão dos aviões”.