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O líder do grupo de mercenários russo Wagner, Yevgueny Prigozhin, passou de protagonista da guerra na Ucrânia a inimigo declarado do Presidente russo, Vladimir Putin, ao orquestrar uma revolta do grupo paramilitar na Rússia, em junho.
Hoje, o seu nome estava na lista de passageiros de um avião privado Embraer pertencente ao grupo Wagner que se despenhou na Rússia, matando as 10 pessoas que seguiam a bordo.
De aliado a inimigo
O líder dos mercenários Wagner, de 62 anos, lutou ao lado do exército regular russo na Ucrânia e protagonizou há dois meses uma rebelião militar fracassada contra as chefias militares russas, na qual chegou a tomar uma das cidades mais importantes do sul da Rússia, Rostov-no-Don.
A 24 de junho, um dia depois do início da revolta dos mercenários Wagner, que se encaminhavam para Moscovo, Putin condenou a “traição” de Prigozhin, afirmando ter sido “provocada por ambições desmesuradas e interesses pessoais”.
O impetuoso multimilionário de cabeça rapada e traços duros acabara de anunciar que se tinha apoderado “sem disparar um tiro” do quartel-general do exército russo em Rostov, centro nevrálgico das operações na Ucrânia, depois de, na véspera, ter acusado o exército russo de bombardear acampamentos do seu grupo.
Depois, os seus homens, “dispostos a morrer”, marcharam em direção a Moscovo, abatendo aviões do exército russo, enquanto o mundo sustinha a respiração.
Ao fim de 24 horas, o líder mercenário de 62 anos desistiu do golpe e negociou um exílio para ele e os seus seguidores na Bielorrússia.
Após a mediação do Presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, Prigozhin concordou em retirar os seus mercenários e transferir a sua base para o território daquela antiga república soviética.
Sinal da opacidade do acordo, Prigozhin regressou, contudo, à Rússia, tendo mesmo sido recebido no Kremlin dias após a revolta e depois de Putin o acusar de traição. E, apesar de já não aparecer em público, os ‘blogs’ especializados seguiam-no, a ele e aos seus aviões.
Prigozhin anunciou o reinício das operações do Grupo Wagner em África e apareceu na segunda-feira pela primeira vez desde o motim num vídeo, no qual sugeria que tinha regressado a África para tornar a Rússia “ainda maior em todos os continentes”.
Escapou à prisão e à justiça russas, mas muitos diziam que tinha a vida a prazo, depois de se insurgir contra o regime de Putin.
Nesse último vídeo que divulgou, assegurava agir para a grandeza da Rússia naquele continente, onde os seus homens fazem há anos o trabalho ‘sujo’ do Kremlin (Presidência russa).
Em países como República Centro-Africana, Mali, Líbia, Síria, o grupo Wagner, cuja existência o Kremlin nem sequer admitia até ao final de 2022, tornou-se conhecido em 10 anos como o cúmplice de regimes que queriam livrar-se de padrinhos ocidentais ou que procuravam combatentes discretos e implacáveis.
A guerra na Ucrânia forneceu ao empresário uma oportunidade de ouro para sair da sombra.
Recrutou dezenas de milhares de prisioneiros para irem combater para a frente de batalha, onde o exército russo estava em dificuldades.
Ao contrário dos mais altos responsáveis russos, o líder mercenário mostrava-se no campo de batalha e filmava os cadáveres dos seus homens para exigir mais e mais munições.
Em maio de 2023, após quase um ano de combates sangrentos, Prigozhin atingiu o seu objetivo reivindicando a tomada pelo grupo Wagner de Bakhmut (leste da Ucrânia) e celebrando uma rara vitória russa, apesar do elevado preço em vidas humanas, e apesar da continuação dos combates – até hoje – nos arredores da cidade devastada.
Mas foi também por ocasião dessa batalha que as tensões se agravaram com o chefe do Estado-Maior, general Valeri Guerassimov, e o ministro da Defesa, Serguei Shoigu: Prigozhin acusou-os de privarem o grupo Wagner de munições e fez uma série de vídeos insultando os comandantes russos – algo impensável para qualquer outra pessoa na Rússia, num contexto de repressão total.
O momento em que saiu da “toca”
A sua passagem da obscuridade para a ribalta começou em setembro de 2022, quando o exército russo sofria revés atrás de revés na Ucrânia, uma humilhação para os belicistas como ele.
Saiu então da ‘toca’ admitindo, pela primeira vez, ser de facto o fundador, em 2014, do grupo paramilitar Wagner e impondo-se como um líder e um comunicador ímpar na plataforma digital Telegram, com os seus vídeos e as suas mensagens áudio em que não hesitava em ser vulgar.
“Estes tipos, heróis, defenderam o povo sírio, outros povos de países árabes, os indigentes africanos e latino-americanos, e tornaram-se um pilar da nossa pátria”, afirmou sobre os seus homens.
Em outubro, levou a sua notoriedade ainda mais longe, inaugurando com grande pompa, num edifício envidraçado de São Petersburgo (noroeste), a sede da “empresa militar privada Wagner”.
Mestre da provocação, divulgou em fevereiro um vídeo a bordo de um avião de guerra em que propunha ao Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que decidisse o futuro de Bakhmut numa batalha aérea.
Para formar um exército à altura das suas ambições, Prigozhin, originário, como Putin, de São Petersburgo, recrutou a população prisional para combater na Ucrânia em troca de uma amnistia.
O universo das prisões não lhe é estranho, tendo ele mesmo passado nove anos encarcerado durante a era soviética, por crimes de delito comum.
Foi libertado em 1990, quando a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) estava a desintegrar-se, e montou um negócio de sucesso a vender cachorros quentes.
Avançou depois para outro segmento, abrindo um restaurante de luxo que se tornou um dos mais concorridos de São Petersburgo, enquanto Putin experimentava, ao mesmo tempo, a sua própria ascensão política.
Quando, em 2000, Vladimir Putin se tornou Presidente, o seu grupo de restauração passou a servir o Kremlin, o que lhe valeu o título de “cozinheiro de Putin” e a reputação de se ter tornado multimilionário graças aos contratos públicos.
Terá sido esse dinheiro que utilizou para fundar o grupo Wagner, exército privado inicialmente composto por veteranos das forças armadas e dos serviços especiais russos.
Em 2018, quando se suspeitou de que o seu grupo – cuja presença já fora notada na Ucrânia e na Síria – se tinha instalado em África, três jornalistas russos que investigavam as atividades da empresa paramilitar foram mortos na República Centro-Africana.
Biden diz não estar surpreendido com possível morte de Prigozhin na Rússia.
Comentando o sucedido, o Presidente dos Estados Unidos Joe Biden referiu que não ficou surpreendido com a possível morte do chefe do grupo mercenário Wagner, Yevgeny Prigozhin, num acidente de avião na Rússia. “Ainda não sei bem o que aconteceu, mas não estou surpreendido. Poucas coisas acontecem na Rússia sem que Putin tenha algo a ver com isso”, frisou o chefe de Estado norte-americano, em declarações durante as suas férias que decorrem em Lake Tahoe, localizado entre Nevada e Califórnia.
Idêntica opinião têm outros líderes internacionais.
A chefe da diplomacia alemã, Annalena Baerbock, juntou-se às suspeitas de países europeus sobre responsabilidade do Kremlin na presumível morte do chefe do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, na queda de um jato na Rússia.
“Não é coincidência que o mundo inteiro esteja agora a olhar para o Kremlin quando um ex-assessor de Putin caiu literalmente em desgraça, repentinamente do céu, dois meses depois de tentar uma rebelião”, disse Baerbock.
“Conhecemos este padrão na Rússia de Putin. As mortes e suicídios duvidosos, as defenestrações. Tudo casos por resolver e que apontam para um sistema de poder ditatorial”, acrescentou a ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha.
Entre os países europeus domina a cautela nas reações à queda do avião, na quarta-feira, que terá provocado a morte de Prigozhin.
O porta-voz do Governo francês, Olivier Verán, admitiu que existem “dúvidas razoáveis” sobre o sucedido, dados os laços mantidos durante anos entre Prigozhin e o Presidente russo, Vladimir Putin.
No Reino Unido, fontes da Defesa consultadas pela rádio pública BBC identificam a agência russa de segurança, FSB, como principal suspeita da morte de Prigozhin, que viajava com outras nove pessoas, incluindo o ‘estado maior’ do grupo de mercenários, no desastre de que não houve sobreviventes, segundo as autoridades russas.
Na Ucrânia, os serviços de informações do Ministério da Defesa mostraram-se convictos de que o Kremlin está por detrás da queda do avião que transportava Prigozhin.
“Apenas a propaganda russa pode assumir a probabilidade de que neste caso possa ter acontecido algum acidente fortuito. É claro que se trata de um ato terrorista deliberado”, defendeu o diretor de serviços Andri Yusov, numa entrevista televisiva.
Yusov acrescentou que, embora a informação de que Prigozhin viajava naquele avião ainda precise de ser confirmada, o cenário mais provável é que ele fosse um dos passageiros.
Na quarta-feira, a Agência Federal de Transporte Aéreo da Rússia (Rosaviatsiya) indicou que Prigozhin era um dos passageiros do jato privado que se despenhou a norte de Moscovo, matando todos os ocupantes.
Segundo a mesma fonte, estava também entre os passageiros Dmitry Utkin, um dos fundadores do grupo Wagner e ex-oficial das forças especiais russas.
Presumível morte de Prigozhin é uma “coisa boa”, diz Zelensky
O Presidente da Ucrânia considerou, por seu lado, que a presumível morte do líder do Grupo Wagner é “uma coisa boa” para a Ucrânia.
“Claro que é uma coisa boa para a Ucrânia. Não temos nada a ver com isso, sabemos quem foi”, disse Volodymyr Zelensky, na primeira reação à presumível morte de Yevgeny Prigozhin, em conferência de imprensa conjunta com homólogo português, Marcelo Rebelo de Sousa, no Palácio Presidencial, em Kiev.
“Nós não temos qualquer ligação a esta situação. Isso é certo. Penso que todos imaginam quem tem a ver”, diz Volodymyr Zelensky.
E no humor a que por vezes recorre, reminiscência do passado como comediante, brincou com o assunto: “Sabe, quando a Ucrânia falava aos países de todo o mundo sobre aviões e a pedir apoio aéreo, não era isto que queríamos dizer e não era isto que tínhamos pensado. Honestamente. Tínhamos em mente algo muito diferente e queríamos apoio. Se bem que isto, de certa forma, também nos vai ajudar.”
* com Lusa