Porque é que a literacia financeira ainda não chega a quem mais precisa

Todos os meses chega ao balcão de um banco, de uma loja de crédito ou — noutro dia — à caixa multibanco o mesmo dilema silencioso: muita gente quer ordenar as finanças, poupar, planear para o futuro, mas falha nos “básicos” do dia a dia. A explicação não está apenas na falta de dinheiro, mas…
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Entre nós, os dados mostram que a literacia financeira continua a ser um défice generalizado. Porque é que a literacia financeira, tão essencial para a autonomia e segurança financeira, ainda não chega a quem mais precisa em Portugal?
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Todos os meses chega ao balcão de um banco, de uma loja de crédito ou — noutro dia — à caixa multibanco o mesmo dilema silencioso: muita gente quer ordenar as finanças, poupar, planear para o futuro, mas falha nos “básicos” do dia a dia. A explicação não está apenas na falta de dinheiro, mas sobretudo na ausência de conhecimentos práticos sobre como gerir o que se ganha.

Em Portugal, os dados mostram que a literacia financeira continua a ser um défice generalizado. Num estudo recente, apenas 42 % dos portugueses responderam corretamente a três de cinco questões sobre conceitos financeiros básicos — bem abaixo da média da União Europeia (52 %) NAU site.

Mesmo entre os mais jovens, o cenário não convence. No último relatório PISA 2022, 84,5 % dos alunos portugueses de 15 anos atingiram o nível de literacia financeira considerado “básico”, o que deixa 15,5 % na zona de “fracos resultados” – e apenas 6,6 % atingiram um nível de proficiência elevado.

Isto significa que, para uma parcela significativa da população, decisões tão quotidianas como aceitar um empréstimo, planear poupanças ou avaliar o impacto da inflação acabam por depender do acaso — ou pior, de conselhos comerciais mal interpretados.

Este artigo procura responder a uma pergunta simples e urgente: porque é que a literacia financeira — tão essencial para a autonomia e segurança financeira — ainda não chega a quem mais precisa em Portugal?

O paradoxo português: sabemos ganhar, mas não sabemos gerir

Apesar de muitas famílias portuguesas ganharem um salário ou terem rendimentos relativamente estáveis, continuamos longe de dominar o essencial da gestão financeira. A educação formal quase nunca inclui “saber gerir o dinheiro de verdade” e por isso aprendemos tarde, quando já há decisões importantes no horizonte.

A educação formal quase ignora o dinheiro

Nas escolas portuguesas, a literacia financeira não é parte transversal do currículo obrigatório. Mesmo depois da inclusão do tema em planos e programas educativos, a sua aplicação concreta é ainda escassa.

Quando jovens de 15 anos foram avaliados no âmbito do PISA 2022, obtiveram uma pontuação média de 494 — em linha com a média da OCDE — mas 15,5% ficaram abaixo do nível mínimo considerado aceitável. Isso mostra que, mesmo numa geração escolarizada, uma parte significativa sai sem ferramentas mínimas para decisões financeiras.

Decisões financeiras começam cedo, mas o conhecimento chega tarde

Na prática, as decisões que afetam a saúde financeira começam cedo — renda, crédito, contas, consumo, planeamento — mas o “treino” para essas decisões quase nunca. Muitos adultos descobrem como funcionam juros, amortizações, inflação ou diversificação de risco diretamente ao fazerem um empréstimo ou ao contratar um produto financeiro.

Segundo um inquérito do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (CNSF/OCDE-INFE, 2023), apenas 16 % dos portugueses com 18 ou mais anos demonstraram “alto nível” de literacia financeira. 28 % foram classificados com “baixo nível”. Mesmo os que mostram atitudes e comportamentos financeiros razoáveis — como pagar contas a tempo — falham quando confrontados com conceitos básicos, como juros compostos ou risco associado a investimentos.

Cultura de evitar falar de dinheiro, especialmente quando falta

Falamos pouco de dinheiro nas famílias, nas escolas, nem nos media em termos práticos. Falar de orçamentos, rendimentos, dívidas ou prioridades financeiras continua a ter um estigma quase social — especialmente entre quem vive com rendimentos mais modestos ou incertos. Isso gera duas consequências graves: informação limitada e decisões feitas no “feeling”, ou sob pressão.

Quando o dinheiro é curto, a tendência é lidar com cada mês como uma mini-crise, com pouco planeamento ou visão de longo prazo. Poupar ou investir deixa de ser prioridade, e produtos financeiros complexos ficam por explorar ou mal compreendidos.

Quem mais precisa continua de fora

Apesar da necessidade mais urgente de literacia financeira recair sobre quem tem rendimentos baixos ou instabilidade financeira, são essas mesmas pessoas que mais frequentemente ficam excluídas dos conhecimentos essenciais.

Rendimento baixo e instabilidade reduzem a capacidade de aprender e planear

Estudos nacionais repetem-se: níveis de literacia financeira mais baixos concentram-se em grupos com menor rendimento e menor escolaridade. Isso significa que quem já vive com restrições orçamentais acaba por ter menos ferramentas para gerir bem o pouco que tem — o que perpetua o ciclo de fragilidade financeira. A instabilidade — empregos precários, flutuações de rendimento, exigência de longos horários — deixa pouco espaço para planear, poupar, ou sequer dedicar tempo a compreender conceitos como juros, inflação ou risco.

Informação disponível mas com linguagem técnica, inacessível

Apesar de haver cada vez mais informação sobre finanças pessoais em Portugal — estudos, relatórios, artigos, campanhas — boa parte usa linguagem técnica ou assume conhecimentos prévios, tornando-se pouco acessível para quem tem menos familiaridade com finanças. Quem não raras vezes precisa de conselhos práticos, simples e diretos, confronta-se com textos pensados para quem já domina conceitos básicos. O resultado é que a informação existe, mas o público mais vulnerável muitas vezes não a consegue “traduzir” para a sua realidade.

Produtos financeiros complexos criam assimetrias de poder

Hoje, o mercado financeiro oferece produtos cada vez mais sofisticados — empréstimos com várias cláusulas, crédito habitação com spreads e revisões, investimentos, seguros, derivativos. Sem literacia adequada, quem tem menos recursos fica em clara desvantagem: não consegue comparar bem as opções, perceber custos reais nem avaliar riscos. Essa assimetria cria uma barreira de acesso: os produtos acabam por favorecer quem já sabe o que procura.

A falta de tempo e energia em quem vive sob pressão financeira

Quem vive com rendimentos baixos ou ganha o seu sustento em trabalhos pouco estáveis, muitas vezes lida com horas longas, múltiplas ocupações, preocupação constante em cobrir o mês. Nesses casos, dedicar tempo a aprender sobre finanças, planear orçamentos ou investigar produtos é visto como um luxo — um luxo que muitos não podem permitir-se. Essa sobrecarga diminui a prioridade à literacia financeira, mantendo a desigualdade entre quem tem e quem não tem acesso.

As consequências de não saber o básico

Quando o básico da gestão financeira falha, o impacto sente-se de várias formas na vida das pessoas e na sociedade.

Crédito mal usado, custo real do dinheiro desconhecido

Sem conhecimento sobre juros, amortizações ou riscos, muitas pessoas recorrem a crédito de forma impulsiva ou mal informada. Isso pode levar a encargos elevados, dificuldade em cumprir prestações e, com o tempo, a endividamento crónico.

Em Portugal, mesmo com oferta crescente de crédito, a incapacidade de avaliar o custo real — spread, comissão, juros, prazos — transforma oportunidades aparentes em armadilhas.

Sem fundo de emergência, qualquer imprevisto vira crise

Quem não planifica nem poupa por falta de literacia financeira não constroi reservas. Isso significa que um acidente de saúde, a perda de emprego, ou uma despesa inesperada pode descambar numa crise financeira grave. A ausência de reservas transforma um percalço numa espiral de dívida e insegurança.

Falta de investimento para proteger o futuro

Poucos entendem como funcionam produtos de poupança ou investimento — ou mesmo a importância de começar cedo. Isso implica que muitas pessoas ficam sem preparar a reforma ou poupar para o médio/longo prazo. Estudos em Portugal mostram que quem tem maior literacia financeira investe mais em planos de reforma ou produtos de poupança, enquanto os com menor literacia tendem a ficar de fora.
O resultado: maior dependência do Estado, menor segurança no fim da vida ativa, e menos mobilidade financeira.

Cresce o ciclo de dependência e desigualdade

A falta de literacia financeira aprofunda a vulnerabilidade de quem já está em posição de desvantagem: baixo rendimento, instabilidade, falta de acesso a reservas ou investimentos. Esse cenário reforça as desigualdades: quem já tem conhecimentos financeiros consegue acumular, poupar e investir, enquanto outros permanecem presos ao crédito, à instabilidade e à incerteza.
A longo prazo, essa disparidade alimenta exclusão económica, reduz mobilidade social e perpetua ciclos de fragilidade financeira — uma ferida aberta na coesão social.

Como aproximar a literacia financeira de quem realmente precisa

Simplificação radical da linguagem financeira

Para que o conhecimento seja útil, precisa de ser compreendido. A terminologia técnica — “spread”, “diversificação de risco”, “taxa anual nominal”, “juros compostos” — afasta quem não está habituado. Se a literacia financeira for transmitida com uma linguagem simples, acessível e prática, torna-se relevante para mais gente. Isso significa usar exemplos do dia a dia, cenários concretos (um ordenado, um empréstimo, um plano de poupança), e evitar jargão desnecessário.

Educação financeira prática nas escolas e empresas

É fundamental integrar a literacia financeira desde cedo. Em Portugal, o Todos Contam — o plano nacional coordenado pelo Banco de Portugal (e outros supervisores) — já prevê a educação financeira formal nas escolas através da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.

Em 2024 arrancou um projeto-piloto para tornar a literacia financeira uma disciplina independente em sete escolas, o que poderá marcar uma mudança real se for alargado. Poupança No Minuto .

Nas empresas, incentivar formação prática — sobre orçamentação, planeamento, poupança, crédito — pode ajudar muitos trabalhadores a ganharem ferramentas úteis para o dia a dia.

Políticas públicas e incentivos focados em inclusão

Para chegar a quem está fora das redes tradicionais de conhecimento, o Estado e os reguladores têm um papel essencial. Estratégias de literacia financeira digital — desenhada pelo Banco de Portugal com apoio da OCDE e da Comissão Europeia — prevê medidas dirigidas a jovens, mulheres, pessoas idosas ou com baixo nível de escolaridade, com vista à promoção da inclusão financeira.

Programas de apoio estatal, campanhas públicas e cooperação com associações de consumidores e organizações da sociedade civil podem fazer a diferença para quem nunca teve acesso a informação simples e fiável.

Inovação digital com ética: ensino acessível e personalizado

O mundo financeiro é cada vez mais digital. Por isso, a literacia financeira também deve acompanhar essa transformação. A estratégia nacional de literacia financeira digital identifica este caminho como essencial para garantir que os portugueses saibam usar — e não temer — serviços como banca digital, pagamentos online, investimentos, créditos, controlo de orçamento.

Aplicações móveis, vídeos curtos explicativos, simuladores, conteúdos em redes sociais, webinars e workshops online podem tornar a aprendizagem mais acessível, rápida e adaptada ao ritmo de quem trabalha, tem filhos ou vive com tempo contado.

Provocar mudança exige responsabilidade partilhada

Bancos, escolas, media, empresas e famílias têm de assumir o compromisso

A responsabilidade de aumentar a literacia financeira não pode recair só no cidadão. As instituições financeiras — bancos, seguradoras, gestores de fundos — devem fazer um esforço real por comunicar de forma clara, transparente e acessível. Em Portugal já existem bons exemplos: a Associação Portuguesa de Bancos (APB) desde 2011 dinamiza programas de educação financeira para públicos variados — jovens, adultos, seniores — e realiza iniciativas como o “European Money Quiz” ou “Open Day na Banca”.

As escolas têm um papel central. A inclusão da literacia financeira no currículo — através dos “Cadernos de Educação Financeira” promovidos no âmbito do Plano Nacional de Formação Financeira (PNFF) — é um passo importante.

As famílias devem falar abertamente sobre dinheiro, orçamento, prioridades e escolhas — muitas vezes o primeiro contacto com educação financeira real não vem da escola, mas de casa.

Media e empresas completam o ecossistema: informação clara, acessível e contínua — não apenas quando há crise — ajuda a manter o debate vivo e a construir uma cultura de responsabilidade financeira.

O papel dos educadores financeiros e projetos independentes

Além dos bancos e do Estado, há espaço essencial para educadores financeiros independentes, associações de consumidores e iniciativas da sociedade civil. Essas entidades podem traduzir conceitos complexos em linguagem simples, adaptada a públicos com diferentes níveis de literacia. A existência de informação neutra, sem interesses comerciais, ajuda a evitar vieses e armadilhas de marketing.

Portugueses ou empresas portuguesas que assumem esta missão ajudam a construir confiança, aumentar alcance e, acima de tudo, oferecer conhecimentos úteis — não ocas — a quem mais precisa.

Um novo modelo: do “entender o produto” para “entender a própria vida financeira”

O foco deve mudar. Em vez de educar só para decifrar produtos financeiros, o objetivo real tem de ser dotar as pessoas de ferramentas para gerir a sua vida: orçamento familiar, reserva de emergência, planeamento de médio e longo prazo, tomada de decisões conscientes.

Educação financeira deve ser vista como competência de vida, não apenas conteúdo técnico. Poupar, investir, planear custos e prever riscos deve fazer parte da cultura cotidiana — para todos, independentemente do rendimento ou formação.

Com esta abordagem coletiva e estruturada é possível começar a reduzir desigualdades, evitar armadilhas e permitir que mais pessoas tomem decisões informadas e seguras.

Conclusão

A literacia financeira não é um luxo reservado a quem tem tempo ou rendimentos confortáveis. É a base da autonomia de cada pessoa. É a diferença entre viver ao sabor do mês e conseguir planear o próximo ano. Entre cair numa armadilha de crédito e conseguir negociar com confiança. Entre reagir à vida e tomar decisões com clareza.

Hoje, em Portugal, ainda temos uma parte significativa da população que enfrenta conceitos financeiros essenciais sem preparação suficiente. Isso limita escolhas, cria fragilidade e perpetua desigualdades que já vêm de trás.

Melhorar esta realidade implica esforço conjunto: escolas que ensinam o básico desde cedo, bancos e médias que comunicam com transparência, empresas que capacitam os seus trabalhadores, famílias que falam sobre dinheiro sem tabu. Não se trata de ensinar produtos financeiros. Trata-se de dar às pessoas a capacidade de escolher o que é melhor para as suas vidas.

A pergunta que fica é simples e incómoda: se não criarmos condições para todos entenderem o seu dinheiro, quem está realmente a pagar o preço?

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