Rui Caria nasceu na Nazaré em 1972. O seu percurso profissional na área da imagem começou em 1990 com a produção de filmes promocionais. Em 1993, tornou-se correspondente da TVI na área da informação, onde permaneceu como repórter e editor de imagem até 2003.
Com residência atual nos Açores, é formador certificado pelo IEFP na área da multimédia. Estuda no curso de mestrado de Comunicação e Media da ESECS e é repórter correspondente nos Açores para a informação da SIC Televisão, desde 2006.
Colabora como fotojornalista com a imprensa nacional e internacional. O seu trabalho fotográfico está editado em publicações como a National Geographic, Leica Fotografie International e Getty Images, entre outras.
Orador em eventos dedicados à comunicação visual, e ao jornalismo, Rui Caria foi finalista e vencedor de diversos concursos de fotografia como o Sony World Photography Awards, National Awards.
As suas imagens estão publicadas em diversos livros internacionais de fotografia e tem artigos sobre fotografia e imagética publicados na imprensa nacional e internacional.
Um profissional a fotografar com telemóvel
Com os telemóveis a assumirem, cada vez mais, funções fotográficas profissionais, Rui Caria foi, desta feita, desafiado pela marca de telemóveis Xiaomi para fazer um trabalho de fotojornalismo, utilizando um smartphone, em vez de uma câmara fotográfica profissional.
A proposta enquadra-se no âmbito do projeto “Xiaomi Master Class” que assenta numa série de cursos de fotografia, tanto online como presenciais, desenvolvidos em conjunto com fotógrafos mundialmente reconhecidos que partilham as suas experiências com os diversos utilizadores e entusiastas da imagem.
“A visão da Xiaomi Master Class é criar uma plataforma para que os mestres fotógrafos partilhem e inspirem pessoas de todo o mundo a explorar as infinitas possibilidades da fotografia mobile. Para este projeto contamos com a especial colaboração do Rui Caria, Leica Photographer, que é uma pessoa capaz de absorver o ambiente e retratá-lo fielmente através de narrativas visuais impactantes”, comenta Tiago Flores, Country Diretor da Xiaomi em Portugal.
Duas fotorreportagens
Neste contexto, o trabalho realizado por Rui Caria consistiu em duas fotoreportagens. Quando o rural e o tradicional vão caindo em desuso, Rui Caria documentou, através das lentes dos smartphones da nova série Xiaomi 13T, desenvolvida em parceria com a Leica, a vida de um guardador de rebanhos (fotos a preto e branco) e de um chocalheiro (fotos a cores). Este foi o resultado final:
Fotos: Rui Caria
“A ideia criativa para esta campanha surgiu pela observação da cultura que me rodeia e este tipo de documentários e de galerias de imagens são essenciais para preservar parte da nossa história, da nossa cultura e até mesmo do nosso património. Para mim, enquanto fotógrafo e entusiasta da fotografia, ter a oportunidade de filmar e fotografar com qualidade profissional utilizando apenas um smartphone, que me acompanhou no dia a dia, mostrando a tremenda evolução tecnológica no campo da fotografia mobile”, diz o fotógrafo que vai dar, no dia 21 de novembro, na Xiaomi Store do Colombo, um workshop em que irá expor a sua visão para a fotografia, explicando o seu processo de criação e a experiência em fotografar com um smartphone.
Em antecipação, a FORBES conversou com Rui Caria a propósito deste desafio e de como poderá despontar um fotógrafo em cada cidadão, por via de praticamente todos terem nos seus bolsos um telemóvel com câmara, e fazer nascer narrativas criativas que até podem ajudar na preservação do património cultural do país.
Fez uma fotorreportagem em redor de uma profissão em vias de extinção usando um telemóvel…
Rui Caria: Foram duas profissões, na verdade: uma é guardador de cabras, ou do fato como aprendi também quando fazia o trabalho, e a outra é o chocalheiro, o último escalheiro dos Açores, com 88 anos. E como é o último chocalheiro nos Açores, havendo aqui uma lógica de finitude. Há alguns, muito poucos em Portugal, na zona do Alentejo e do Norte a fazerem esta profissão de criar chocalhos para o gado.
Como é que correu esse trabalho de acompanhamento, dado que fugiu ao habitual, em vez de uma máquina fotográfica convencional ou profissional, recorrendo a um smartphone.
Utilizei um equipamento da Xiaomi, o 13T Pro. É um telefone com capacidades fotográficas bastante avançadas, inclusivamente permitindo fotografar em negativo digital, que é muito semelhante a uma câmara regular e isso faz com que estes equipamentos estejam cada vez mais próximos dos fotógrafos profissionais. Acho que há essa vontade das marcas de telemóveis de chegarem aos fotógrafos também através dessa qualidade dos equipamentos. Em termos de trabalho com o senhor António, de 88 anos, por exemplo, para ele era perfeitamente indiferente eu ter um telemóvel na mão, porque ele até pensou, na altura, que eu fosse aprender a fazer chocalhos e achei muita graça a isso: ‘Afinal é para tirar fotografias!’.
Usando uma máquina fotográfica profissional, como é que foi a adaptação para captar imagens profissionais, através de um smartphone?
Toda a gente tem uma câmara no bolso e já usou. Eu também, naturalmente. Está disponível. Acho que o telemóvel, o facto de estar no bolso, permite com que façamos qualquer coisa rapidamente. Neste momento já é assim: já podemos sair de casa com o equipamento de telefone para fazer um trabalho, que foi o que eu fiz. Em termos de trabalho, não achei que fosse algo muito diferente do que costumo fazer, pois temos que ser agnósticos cada vez mais em relação aos equipamentos que usamos. É preciso fotografar, mostrar e documentar. Por isso, a adaptação foi relativamente simples.
Claro que há diferenças substanciais. Naturalmente, a forma de ver, de espreitar, não há um visor pequenino, é um ecrã maior, mas tudo isso são questões técnicas que se ultrapassam em meia dúzia de minutos. Em termos da experiência de trabalho que me proporcionou, há algo que notei e que já me tinha acontecido noutras situações, sobretudo a fazer vídeo. Eu faço televisão há mais de dois ou três anos e já tenho usado o telemóvel, inclusivamente em diretos, porque é tudo bastante mais fácil. E uma das coisas que eu já tinha percebido é que as pessoas incomodam-se menos com a nossa presença quando estamos com um equipamento mais pequeno, com um equipamento no qual elas não acreditam, digamos assim, que vamos fazer qualquer coisa séria com aquilo.
“Temos que ser agnósticos cada vez mais em relação aos equipamentos que usamos. É preciso fotografar, mostrar e documentar”
E isso é muito interessante porque cria uma certa espontaneidade ou naturalidade ao processo, dá-nos um certo poder também a nós, os fotojornalistas ou repórteres, de uma certa invisibilidade, que temos de ter tantas vezes em tantas histórias para não interferir com a história. Eu notei isso, por exemplo, na Ucrânia, durante a guerra: eu estava a filmar uma pessoa com um telemóvel e só seria possível eu ter feito aquela reportagem porque foi com um telemóvel. Essa pessoa arrastou-me para dentro de casa, eu vim com o telemóvel em frente à cara a filmar e ela estava a um palmo de mim e eu consegui ter uma reportagem bastante forte dessa situação em Sievierodonetsk. Lembro-me perfeitamente dessa situação, de ter usado esse equipamento e ter pensado no fim ‘que bom eu ter conseguido fazer isto assim porque de outra forma com uma câmara profissional, um objeto grande, não havia espaço sequer para fazer aquilo’.
E em termos de qualidade: a qualidade ainda não é a mesma?
Se ainda não é a mesma, por vezes é para melhor. Porque eu acho que a qualidade para um repórter tem muito a ver com a história que estamos a mostrar mais do que com a qualidade de imagem. Eu sei que a pergunta do Paulo é em relação à qualidade de imagem, porém eu costumo dizer que uma fotografia só tem de estar focada quando não há nada para mostrar. Se houver algum assunto para mostrar, se houver algum tema de interesse, se houver algum sujeito interessante, alguma coisa a acontecer, isso sobrepõe-se à qualidade da imagem. Mas no caso da qualidade estrita, os telemóveis, seja em vídeo, seja em fotografia, já é difícil, em algumas situações, fazer distinções de qualidade com máquinas fotográficas profissionais.
Claro que num jogo de futebol, num campeonato de surf, ir fotografar ou filmar com um telemóvel, poderá ser arriscado, porque estamos a falar de objetivas pequeninas, que não têm a ótica necessária para se fazerem coisas de grande alcance, para já, mas há adaptadores para isso. Há uma miríade de instrumentos que podemos já utilizar, mas que depois também acabam por começar a transformar o telemóvel na câmara grande outra vez. Eu acho que o telemóvel sobrevive se for o objeto que é. Se for um objeto de facilidade de utilização, de ligar e filmar ou fotografar rapidamente, entendo que é a vantagem de ter esse objeto em disposição.
“Na Ucrânia, durante a guerra: eu estava a filmar uma pessoa com um telemóvel e só seria possível eu ter feito aquela reportagem porque foi com um telemóvel”
No seu trabalho, utiliza ambos, ou seja, quer a máquina profissional, quer o telemóvel? E usa-os um como complemento do outro?
Nunca deixo de fazer uma história, nunca deixo de mostrar uma coisa, por não ter uma câmara de fotografia telemétrica, que são as que eu uso. Nunca deixo de fazer. Se me perguntarem o que é que me dá mais prazer, isso é uma pergunta que nem preciso responder, porque o processo fotográfico, para mim, do espreitar por um buraquinho pequenino e de ver através de um sistema telemétrico, de ver a convergência do foco e de controlar o foco manualmente, para mim são requisitos necessários à minha fotografia.
Eu gosto de poder falhar e isso permite-me falhar, porque um telemóvel não falha porque foca sempre e há esses aspetos técnicos que distanciam um objeto do outro. Mas em termos de qualidade final, eu acho que por exemplo, este equipamento da Xiaomi tem uma ciência de cor muito semelhante aos equipamentos Leica que uso. Eu acho que se colocasse algumas fotos lado a lado – dependendo das condições de luz também – seria já difícil perceber quais são quais. Eu imprimi também as fotos que tirei com telemóvel para ver a qualidade e fiquei espantado. As coisas estão a evoluir de uma forma muito interessante.
“Se colocasse algumas fotos lado a lado seria já difícil perceber quais são quais”
Mas pode ameaçar o trabalho dos fotógrafos profissionais ou são coisas diferentes?
Não, não é uma ameaça. Vou dar um exemplo. Praticamente toda a gente tem um telemóvel no bolso, com capacidade fotográfica. Eu vou a 10 telemóveis, de 10 pessoas, e de cada um deles, das 3 mil fotos que cada um tem lá dentro, eu tiro duas fotos e ganho dois prémios com elas. A diferença é que quem tem essas fotos no bolso não sabe quais são. Eu acho que é isso que nos separa um pouco. A nós, que trabalhamos em fotografia, é o saber ver, saber editar, saber escolher, fazer uma certa curadoria àquela vertigem de fotografias que existem nos telemóveis e que as pessoas nem sabem que as têm, mas ‘aquela fotografia’ que está aqui é quase acidental. Mas, por vezes, também vem daí, de alguma maneira, a beleza dessa forma naïve. Uma forma ingénua de fotografar ou de ver, pode dar uma fotografia muito interessante, mas quem a tirou nunca vai conseguir ver o poder daquilo que tem ali. Essa é a nossa diferença.
“Eu vou a 10 telemóveis, de 10 pessoas, e de cada um deles, das 3 mil fotos que cada um tem lá dentro, eu tiro duas fotos e ganho dois prémios com elas. A diferença é que quem tem essas fotos no bolso não sabe quais são”
O Rui falou na questão dos prémios. Seria, ainda hoje, visto como um sacrilégio alguém ganhar um prémio de fotografia usando uma imagem de telemóvel em vez de uma máquina profissional?
Tem sido, infelizmente, em algumas situações visto com esse valor pejorativo todo que assumimos que os telemóveis têm. Mas eu acho que isso tem de ser cada vez mais diluído. Temos de pensar mais a fotografia, naquilo que é o resultado, e menos o meio. É aquilo que eu referi: temos de ser cada vez mais agnósticos quanto ao meio e o que importa é mostrar e mostrar bem. Se as pessoas ficarem mais de 10 segundos a olhar para uma fotografia, eu acho que essa foto já poderá ser interessante. Mais importante do que saber tirar fotografias é saber ver fotografias. Considero que esse pensamento nos concursos não é certo. Porque uma fotografia tem sempre o valor que tem, independentemente do processo que foi usado.
Além da reportagem na Ucrânia, em que outros casos já utilizou a câmara do telemóvel para fazer trabalhos?
Já foram vários, porque o que podemos ver, podemos fotografar. É isso que eu gosto de pensar sempre. E se eu tenho um objeto no bolso e não tenho a câmara aqui na mão, faço a foto com o objeto que tenho mais perto.
E quando tem os dois à mão?
Quando tenho os dois, escolho a câmara. Escolho, porque é uma questão de mecânica também e de intuição. Não estou a dizer que um telemóvel produza o mesmo tipo de fotografia com uma câmara ou o mesmo tipo de vídeo com uma câmara, embora haja já filmes a serem feitos com telemóveis e que já emulam bastante as cenas das câmaras de cinema, sendo usados como B-Roll, câmara B, e para registar algumas cenas onde não é possível colocar uma câmara maior. Eu acho que essa função de todo o equipamento, só tem vantagens para nós. Porque podemos produzir um trabalho com mais profundidade de campo ou com menos profundidade de campo e aí as câmaras fotográficas à partida ganham aos telefones porque a ótica de uma câmara permite aquele desfocado atrás do sujeito, aquele microcontraste que a fotografia provoca e que nos faz também imaginar coisas, que é quando o objeto parece que sai um pouco da foto ou cria uma certa tridimensionalidade. Um telemóvel faz isso com mais dificuldade. Até há questões de inteligência artificial a entrarem aí pelo meio para emular essa ótica. Mas isso é só nas fotografias com compressão, nos chamados JPEGs. Quando vamos para um sistema RAW, um sistema cru, negativo digital, até num telemóvel, ele já não permite fazer nada mais do que tratamento ótico. Aquilo que estamos a ver passa pelo vidro do telemóvel. Não há artifício nenhum nesse tipo de imagem.
O smartphone que o Rui utilizou também fotografa em RAW?
Sim. Aliás, eu acho que se não fosse isso, eu não teria aceitado fazer estas duas reportagens. É tão simples quanto isso. O JPEG dos telemóveis, para mim, não é ainda completamente suficiente.
O que é que se extrai de um RAW?
De um RAW extrai-se tudo porque o RAW, por princípio, não é uma imagem. É um conjunto de dados que depois vai ser traduzido por uma máquina, seja um computador, no caso, ou mesmo o próprio telefone, que tem depois um visualizador desses dados. Mas, por norma, o RAW não será uma imagem, em termos teóricos. É um conjunto de dados que vai ser traduzido e vai ser interpretado por um motor de conversão num computador, numa aplicação própria para isso, e há imensas, e aí vai permitir-nos tratar a fotografia. E esse tratamento é em toda a faixa dinâmica que a fotografia tem e que aquele produto conseguiu imprimir na fotografia, ou seja, a ciência de cor e todos os padrões do equipamento que tirou a fotografia, ou seja, com todas as características e ciências de cor desse equipamento. Isso é muito importante porque temos a fotografia toda disponível.
Todos os dados, as sombras, as luzes altas, está tudo lá, é tudo muito mais recuperável em termos de tratamento. Eu consigo, por exemplo, colocar uma zona mais escura de uma imagem a ser mostrada, ao subir um pouco as sombras. Faço o chamado ‘Dodge and Burn’ que se fazia o queimar e o clarear na câmara escura, antigamente com a película. E é isso sobretudo que eu uso também no tratamento: são coisas muito básicas de luz, contraste e sombra e essa permissão que o equipamento me dá para trabalhar é o que me faz trabalhar com ele. Se o telemóvel que usei não fizesse esse tratamento, a fotografia negativa digital, eu não teria aceitado o tratamento porque eu sabia que o processo depois não era reversível.
E avalia de forma satisfatória o trabalho que fez?
Eu gostei muito da experiência e das imagens que produzi. Quero olhar para as fotos daqui a quatro anos para saber mesmo se gostei delas porque às vezes vemos melhor ao longe e estamos às vezes emocionalmente ligados ao trabalho que fazemos. Isto não tem a ver com os equipamentos apenas, tem a ver com um conjunto de aspetos, designadamente o RAW. Fiquei muito satisfeito na verdade porque eu já sabia que quando ouvimos a palavra RAW em princípio já sabemos que vai ser qualquer coisa interessante e quando ouvimos também falar em objetivas da ciência de cor da Leica num telemóvel – e a Leica já fez isso com outras marcas não apenas com o Xiaomi – em princípio gera confiança. De alguma maneira quando estamos habituados a um equipamento de uma marca [a Leica], quando vemos essa marca a meter o dedo noutras áreas, também ficamos curiosos.
Como é que vê a evolução da fotografia nos smartphones? Já chegámos a um ponto bastante avançado, mas por onde é que se pode evoluir?
Sinceramente, não sei responder a isso porque me parece que já não há muito por onde possa evoluir nesta forma-função por parte de um objeto que dá também para telefonar, para ser um computador, para ser um visualizador de e-mails, para ver vídeo, para produzir conteúdos – e eu já nem sei o que é que um telemóvel dá para fazer – já ninguém consegue dizer, na verdade, o que é que consegue fazer com um telemóvel. As marcas já começaram até a inventar coisas estranhas, que é dobrar telemóveis e ecrãs. Acho que isso é curioso do ponto de vista experimentalista, mas depois não serve para nada, na verdade. Em termos evolutivos, da fotografia, não sei que evolução terá, porque a ótica está sempre a melhorar e os processos de inteligência artificial vão entrar nesta equação também, felizmente e infelizmente. Mas voltando à questão da ameaça: não é uma ameaça, é uma oportunidade, porque os telemóveis estão a chegar-se às câmaras e não estão a fazer um percurso sozinhos na fotografia. E isso é o que eu acho: as marcas procuram trabalhar os seus smartphones para fotógrafos; procuram que o fotógrafo não note diferença quando está a trabalhar. Parece-me que aí a vantagem é o tamanho do objeto, é essa particularidade que é inimitável, naturalmente. Nesse aspeto, também temos as câmaras pequeninas, as ‘point and shot’, que fazem praticamente a mesma coisa. Mas em relação aos smartphones temos, além daquela câmara fotográfica na mão, o poder de estar em direto.
“A vantagem do telemóvel é o seu tamanho; é essa particularidade que é inimitável, naturalmente”
O Rui tem a escola tradicional e agora também fez a sua adaptação profissional aos telemóveis, ao contrário dos novos fotógrafos que estão a chegar ao campo da fotografia profissional, mas já têm experiência em usar os telefones para fotografar…
Simpática forma de me chamar idoso. Eu agradeço o cuidado [risos]. Essas questões da escola são muito interessantes. Porque esta coisa da democratização da fotografia e da ideia de que a ameaça está no ar porque toda a gente pode fazer tudo, é verdade que sim, mas há muito mais do que isso. É um bocado como as pessoas nas redes sociais: as redes sociais são reveladores de pessoas, não são criadores de nada. As pessoas são assim, nós somos assim e apenas expomos o ser assim nas redes para toda a gente ver. Antigamente não era possível fazer isso. E nas fotografias é igual. As pessoas tiravam fotografias, punham em caixas, ninguém as via. Agora põe-se no Instagram e toda a gente vê.
Sobre fotógrafos que se estão a iniciar: tenho um filho que não liga nada à fotografia, ainda tentou por imitação andar comigo, mas depois eu descobri, nesse próprio dia, que ele não queria ser fotógrafo porque ele chegou a casa e não foi ver as fotografias que tínhamos tirado. Pôs a câmara ali ao lado e isso é a definição do não fotógrafo. Porque eu há 51 anos ainda não me deito sem ver o que é que fiz, seja a hora que for e que trabalho for.
Eu tenho de passar os olhos. Não vejo tudo, naturalmente, vejo na diagonal, e vejo aquelas que eu acho que são “as” fotografias. E quando vou dormir, vou sonhar e e já não penso mais naquilo. E como o Francisco não fez isso, eu vi que ele não iria ser fotógrafo.
Sobre fotógrafos que se estão a iniciar, entendo que eles também têm de ser agnósticos quanto ao meio. Peguem na câmara que quiserem, no telefone que quiserem, numa câmara de película, no que for. Porque eu acho que as escolas estão misturadas já. Eu nem sei bem de que escola é que sou. Eu sou bastante tradicionalista em algumas coisas e bastante evolucionista noutras, diria eu. Vejo a inteligência artificial como uma coisa maravilhosa e ao mesmo tempo perigosa, como acho que qualquer pessoa sensata achará. Mas não acho que sejam só ameaças. Há gente a fazer trabalhos maravilhosos com telemóveis e trabalhos de fotografia e de vídeo.
“Não acho que sejam só ameaças. Há gente a fazer trabalhos maravilhosos com telemóveis e trabalhos de fotografia e de vídeo”
Os smartphones estão em todos os bolsos, como disse. Da experiência que tem, que conselhos daria a quem gostasse de desenvolver a sua veia de apaixonado por fotografia e dar um salto de qualidade?
Essa é a pergunta velha e a resposta também é mais ou menos antiga. Julgo que já não há muita forma de fugir à tecnologia, por isso eu acho que o menos importante para quem está a começar, e aí está o conselho que eu daria, é importarem-se com a tecnologia. E como as câmaras fotográficas não são muito baratas, os telemóveis – ainda que também não o sejam – incluem um conjunto de aspetos, como a possibilidade de pormos logo as imagens no Instagram, ou no que for, dando uma participação social às nossas imagens e às nossas narrativas; acho que é um belo instrumento por causa disso. Esse é o tipo de pergunta que muita gente me faz, bem como qual a câmara com que deve começar a fotografar. Respondo que não existe começar a fotografar, ou seja, dito assim não existe. Considero que a câmara pela qual nos apaixonarmos, o objeto pelo qual nos apaixonarmos, pelo qual gostamos de espreitar, de produzir alguma coisa, é esse que nos vai fazer criar alguma coisa. E isso é sempre o conselho que eu dou às pessoas. Às vezes não é o que elas querem ouvir, porque elas queriam que eu desse o modelo e a marca e aquilo tudo, e aconselhasse a diferença entre o A e o B, mas a verdade é que é injusto. E não é honesto sequer eu estar a aconselhar uma marca em detrimento de outra, porque cada um irá gostar mais daquilo que usar.
Diria que o único conselho que posso dar a essas pessoas é ‘olhai, porém vede’. Não sei se isto é bíblico, mas foi uma coisa que me disseram há muitos anos, era eu miúdo. ‘Olhai, porém vede’. É olhar para lá do olhar só. É ver um pouco mais. É observar. É ir pela reflexão, no fundo. É olhar com o olhar da criança, com o olhar pueril e inocente. Ter um objeto ordinário, perfeitamente ordinário, e ver nele o extraordinário. É isso que é a fotografia. Não há mistério nenhum aqui. O Paulo está a falar com um fulano que pára para ver coisas e está a chamar fotógrafo, eu agradeço, mas eu sou apenas um fulano que pára para olhar para coisas banais e quotidianas, para coisas que outros passam sem ver.
“O único conselho que posso dar a essas pessoas é ‘olhai, porém vede’.”
E qual vai ser a próxima coisa banal da qual vai tentar extrair algo de extraordinário? O que é que tem calha e se vai usar o smartphone nesse novo projeto?
É sempre não sei, não sei, não sei. É a melhor resposta para essas três questões. Porque nessa ideia que eu tenho do que irei fazer vão acontecer coisas e essas coisas podem ser a de me levar a lugares comuns nos quais vou reparar se calhar em alguma coisa. Há uma palavra estranha – serendipismo – que se refere àquilo que acontece de bom às pessoas sem elas estarem à espera e aquilo que nos aparece à nossa frente. É uma espécie de epifania, criada por alguém, não por nós, em relação a algo que aconteceu à minha frente, de repente. Acho que sou tantas vezes, não diria abençoado, porque é um termo demasiadamente eclesiástico para aqui, mas sou bafejado por esse serendipismo, por coisas que acontecem à minha frente agora. O que eu pergunto é, será que essas coisas acontecem à minha frente? Ou sou eu que noto em coisas que andam por ali já? E é isso que eu aconselho às pessoas. Vejam, olhem para coisas perfeitamente mundanas.
E se for o caso, tirar o telefone e fotografar…
E fotografar, naturalmente. E recortar um pedaço daquele quotidiano, recortá-lo em 3×2 ou em 4×3, no que aquilo der para ver. E escolher aquilo que quer mostrar daquele pedaço de mundo que está a ver. E é essa também a magia da fotografia, é que devermos escolher o que é que queremos mostrar.