A pobreza e a exclusão social não se mede unicamente com um indicador, sendo realidades multifacetadas. Tendo em conta este conceito e com base na informação do “Inquérito às Condições de Vida e Rendimento das Famílias”, conduzido pelo INE, o especialista Nuno Alves, Diretor do Departamento de Estudos Económicos do Banco de Portugal (BdP), calculou um indicador de “pobreza multidimensional” que agrega dimensões como a participação no mercado de trabalho, a educação, a privação material, a privação social, a saúde e a habitação. “Esta abordagem multidimensional permite identificar como pobres indivíduos que não são captados nos indicadores oficiais de pobreza e exclusão social”, explica Nuno Alves.
O quadro em baixo apresenta as 21 variáveis utilizadas neste estudo para o cálculo dos indicadores multidimensionais de pobreza tidos em conta:
Domínio | Indicador | Critério de privação | % da população em privação em 2020 |
Participação no mercado de trabalho | 1) Capacidade de trabalhar | O indivíduo passou os 12 meses do ano anterior sem trabalhar por razões de saúde | 1,5 |
2) Desemprego na família | Famílias em que mais de metade dos adultos estão numa situação de desemprego | 3,6 | |
3) Nível de educação | Indivíduo entre 17 e 19 anos apenas com o ensino primário, entre 20 e 29 anos apenas com o ensino básico, entre 30 e 49 anos apenas com o ensino primário e com mais de 49 anos sem o ensino primário concluído | 10,2 | |
Domínio | Indicador | Critério de privação | % da população em privação em 2020 |
Privação material | 4) Pagamento de despesa inesperada | Sem capacidade para assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada próxima do valor mensal da linha de pobreza (sem recorrer a empréstimo) | 30,7 |
5) Capacidade de pagar uma semana de férias | Sem capacidade para pagar uma semana de férias, por ano, fora de casa, suportando a despesa de alojamento e viagem para todos os membros do agregado | 38 | |
6) Cumprimento de compromissos financeiros | Atraso, motivado por dificuldades económicas, em algum dos pagamentos regulares relativos a rendas, prestações de crédito ou despesas correntes da residência principal, ou outras despesas não relacionadas com a residência principal | 5,4 | |
7) Alimentação | Sem capacidade financeira para ter uma refeição de carne ou de peixe (ou equivalente vegetariano), pelo menos de 2 em 2 dias | 2,5 | |
8) Viatura própria | Sem disponibilidade de automóvel (ligeiro de passageiros ou misto) por dificuldades económicas | 4,4 | |
9) Vestuário e calçado | Sem possibilidade de substituição de roupa usada por alguma roupa nova (excluindo a roupa em segunda mão) ou sem possibilidade de ter dois pares de sapatos de tamanho adequado | 8,5 | |
10) Computador | Sem possibilidade de ter um computador por dificuldades económicas | 5,8 | |
Domínio | Indicador | Critério de privação | % da população em privação em 2020 |
Privação social | 11) Capacidade para gastar dinheiro consigo | Sem possibilidade para gastar semanalmente uma pequena quantia de dinheiro consigo próprio | 10,5 |
12) Participação em atividade de lazer | Sem possibilidade de participação regular numa atividade de lazer | 11,1 | |
13) Encontro com amigos/familiares | Sem possibilidade de encontro com amigos/ familiares para uma bebida/ refeição pelo menos uma vez por mês | 7,7 | |
14) Acesso à internet em casa | Sem possibilidade para ter acesso à internet para uso pessoal em casa | 3,5 | |
Domínio | Indicador | Critério de privação | % da população em privação em 2020 |
Saúde | 15) Saúde global | Perceção de que a saúde do indivíduo é muito má | 3 |
16) Limitações a atividades por razões de saúde | Fortes limitações ao desenvolvimento de atividades por razões de saúde | 7,6 | |
17) Acesso a tratamento médico | Sem atendimento médico (ou dentista) por incapacidade financeira | 8,4 | |
Domínio | Indicador | Critério de privação | % da população em privação em 2020 |
Habitação | 18) Capacidade para manter a casa aquecida | Sem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida | 17,4 |
19) Poluição | Existência de poluição ou outros problemas ambientais na zona da habitação | 13,2 | |
20) Crime | Existência de crime, violência ou vandalismo na zona da habitação | 6,6 | |
21) Sobrelotação | Família vive numa situação de sobrelotação (definição do Eurostat) | 8,9 |
Segundo a análise deste técnico do BdP, a pobreza multidimensional diminuiu continuamente em Portugal entre 2014 e 2020.
Em 2020, a proporção da população em situação de pobreza multidimensional, definida como os indivíduos com privação entre cinco e sete das 21 variáveis analisadas, ascendia a 15,4% (era de 31,5% em 2014).
Quantos portugueses estão em pobreza multidimensional?
Os indivíduos em pobreza multidimensional severa, ou seja, aqueles com privação em pelo menos oito das variáveis, correspondiam a 5,8% da população (era 14,9% em 2014).
Deste modo, cerca de 1,5 milhões de pessoas viviam em situação de pobreza multidimensional, das quais cerca de 600 mil em situação de pobreza multidimensional severa.
Indica ainda o autor: “A maior taxa de pobreza multidimensional observava-se nas Regiões Autónomas e a menor taxa de pobreza em Lisboa e Vale do Tejo. No caso da pobreza multidimensional severa, as taxas mais baixas observam-se no Centro, Lisboa e Alentejo, e as taxas mais elevadas no Algarve e nas Regiões Autónomas. Em termos do grau de urbanização, é nas zonas rurais que se observa uma maior pobreza multidimensional. No que se refere ao género, a taxa de pobreza multidimensional é maior no caso das mulheres”.
Em termos etários, a pobreza multidimensional tem um perfil crescente com a idade, com maior incidência nos mais velhos, destaca o estudo.
Relativamente à educação, a evidência “é indiscutível quanto ao seu impacto na determinação do grau de pobreza. Dos indivíduos (com mais de 16 anos) com o ensino superior completo, apenas 3% vivia numa situação de pobreza multidimensional e 0,8% em pobreza severa. No que toca à composição da família, sobressai a maior vulnerabilidade das famílias apenas com um indivíduo (onde prevalecem os mais velhos) e das famílias monoparentais, tal como nos indicadores de pobreza oficiais”, aponta o autor.
No quadro europeu, Portugal situa-se numa posição intermédia, com uma taxa de pobreza multidimensional próxima da registada na Bélgica, França e Itália, inferior à de Espanha e Grécia, e superior à da Alemanha, Finlândia e Países Baixos.
Em termos de condição perante o trabalho, “as maiores taxas de pobreza multidimensional (severa e total) são registadas nos desempregados e nos outros inativos. Cerca de um terço dos desempregados vive numa situação de pobreza multidimensional e 16,8% numa situação de pobreza severa. Por seu turno, 9,6% dos indivíduos empregados também vive em pobreza multidimensional (2,7% em pobreza severa). A incidência da pobreza multidimensional é maior nos trabalhadores por conta de outrem face aos trabalhadores por conta própria”.
“A participação no mercado de trabalho mitiga, mas não elimina a probabilidade de viver numa situação de pobreza”, refere o especialista Nuno Alves.
No que se refere “à capacidade de concretizar os seus objetivos (“make ends meet”), 65,4% dos indivíduos em pobreza multidimensional reporta ter bastantes dificuldades neste aspeto (80% no caso da pobreza severa), o que compara com 20,5% no total da população”.
O indicador de pobreza multidimensional não utiliza o rendimento ou o consumo na identificação de situações de pobreza, recorrendo antes a um conjunto de 21 variáveis.
Acerca da capacidade de ter uma habitação adequadamente aquecida, de substituir vestuário e calçado e de ter uma alimentação adequada, “mantém-se o mesmo padrão, com percentagens muito elevadas de privação na população em pobreza multidimensional”.
“A realidade é particularmente gravosa para os indivíduos em pobreza multidimensional severa. 70,2% destes indivíduos não tem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida, 71,6% não tem capacidade para substituir a roupa ou sapatos e 21,6% tem privações de natureza alimentar”, adianta o estudo.
Participar digitalmente na vida em sociedade
“Uma dimensão cada vez mais relevante de inclusão nas sociedades contemporâneas, e que se acentuou com a recente pandemia, é a capacidade de participar digitalmente na vida em sociedade. Quando se avalia a exclusão digital (detenção de computador ou acesso à internet), 36,2% da população em pobreza multidimensional está excluída digitalmente, o que compara com 7,5% na população como um todo. Mais de metade da população em pobreza multidimensional severa encontra-se excluída digitalmente”, refere esta análise publicada na Revista de Estudos Económicos do BdP.
No que se refere à detenção de habitação, cerca de 60% da população em pobreza multidimensional é proprietária da sua habitação. “Esta percentagem é claramente inferior à média da população em Portugal e globalmente próxima da observada nos segmentos de população definidos com base nos restantes conceitos de pobreza e exclusão social”.
Rendimentos auferidos
Em termos do rendimento por adulto equivalente, os indivíduos em risco de pobreza são, por definição, os que apresentam o rendimento anual por adulto equivalente mais baixo da população. Em média, os pobres numa perspetiva multidimensional auferem um rendimento anual por adulto equivalente de €7561,1 (€6743,4 no caso da pobreza multidimensional severa). Este valor compara com €4643,3 da população em risco de pobreza. “Existem assim muitas famílias com rendimento monetário acima da linha de pobreza que se encontram em pobreza multidimensional. Mais especificamente, cerca de 57% dos indivíduos em pobreza multidimensional tem rendimentos superiores ao limiar de pobreza, que em Portugal ascendeu a €6480 em 2019. Por outro lado, cerca de 60% dos indivíduos abaixo do limiar de pobreza não estão em pobreza multidimensional. Estes factos atestam que estar abaixo do limiar de pobreza monetária não é uma condição necessária nem suficiente para um indivíduo viver numa situação de pobreza”, declara o documento.
Conclui o especialista Nuno Alves: “Uma visão multidimensional da pobreza pode ser um complemento útil aos atuais indicadores definidos no quadro europeu, não só na identificação da população em situação de pobreza, mas também na definição de políticas para a sua erradicação”.