Entra-se e o letreiro gigante do pórtico evoca o de Hollywood. Uma rua ladeada de contentores e de bungalows revestidos a madeira faz lembrar aldeias do far-west norte-americano ou comunidades alternativas de outros tempos, cheia de apontamentos de décadas passadas como um eléctrico antigo da Carris, carrinhas dos anos 1970, letterings a evocar diners de beira da estrada.
A Nirvana Studios, além de ser um festim de referências visuais de diversas subculturas, é um pólo cultural em Barcarena, no município de Oeiras, numa zona mais conhecida por ser polvilhada de inúmeros armazéns, sedes de empresas nacionais e internacionais, cortados por estradas tão movimentadas como a A5, entre Lisboa e Cascais, e a CREL.
Na mais discreta Estrada Militar, outrora de uso exclusivo do Exército, quase no meio de nenhures, está a Nirvana Studios. Três hectares de diversos projectos culturais, de infra-estruturas para o trabalho artístico e de muito suor e lágrimas. Não é um projecto recente. “O nosso percurso começou há mais de 20 anos”, explica Daniela Sousa, um dos membros da Custom Circus, trupe fundadora deste pólo cultural incontornável no meio musical português.
Fizeram espectáculos a que o Portugal dos anos 1990 não estava habituado, ainda em processo de libertação de amarras mentais – e em especial no mundo corporate. Mas não tinham mãos a medir, recorda Daniela: “Fazíamos espectáculos que duravam um dia inteiro”, garante.
O circo itinerante veio depois. Era feito de terra em terra, com uma arena criada através da instalação dos veículos pesados que faziam parte da máquina da trupe.
“Somos identificados como um choque frontal entre [os filmes de ficção científica] Mad Max e Waterworld” e foi um desafio enorme para conseguir que o público os identificasse como portugueses, garante Michel. Eram tempos desafiantes, altamente cansativos, de grande esforço emocional. “A vida na estrada é dura. Apareceu então a altura de termos um ponto de abrigo e foi aí então que quisemos adquirir o nosso espaço”, resume Daniela.
Mas o investimento de anos em veículos clássicos e pesados criou um pé-de-meia para o futuro. Eram donos de uma caravana de 30 veículos. A venda paulatina destes libertaram capital para investir no novo espaço, concluído a duras penas depois de mais de uma década.
Mãos à obra
Daniela e os outros dois membros da Custom Circus, Rui Gago e Michel Alex, resolveram então investir, em 2003, na construção de um espaço multidisciplinar num antigo paiol do Exército praticamente ao abandono num espaço total de três hectares.
Antes disso, já tinham iniciado uma vida nómada como artistas de circo de rua que só deixariam completamente anos mais tarde, em 2012: andavam pelo país com a sua companhia de circo itinerante, a Custom Circus. “Assumimos para nós mesmos que a parte da estrada ia ser abandonada”, confessa Rui.
Hoje, a Nirvana é um conceito consolidado que funciona como polo cultural e como uma infra-estrutura essencial para centenas de artistas, possibilitando um porto seguro para que possam desenvolver os seus projectos, ensaiar, gravar.
No Custom Café, o teatro que demorou oito anos a ser construído consoante o dinheiro que havia, e que só foi concluído em 2012, há espectáculos da própria trupe, como o Absurdium, espectáculo baseado numa sociedade pós-apocalíptica no final do século XXI, há dois anos em cena.
É aí que também organizam festas e jantares a pedido de empresas e outras instituições. Além da vertente do entretenimento, a Nirvana Studios serve de poiso para empresas de diversas áreas que aí mantêm os seus escritórios e que oferecem serviços em áreas alternativas, como tatuagens, construção de pranchas e skates, restauro de veículos, manutenção de motas.
A multiplicidade de valências do espaço é bem visível através dos projectos presentes no recinto. Além do Custom Café, os três sócios criaram a Galeria S.T.R.A.N.G.E., espaço de produção de filmes, obras de arte e eventos, a Custom Ville, residências temporárias para artistas, e a Arte Express e Band Box, estúdios de gravação de som e telediscos, entre outros.
Disponibilizam serviços logísticos, de dining e vending, com segurança e vigilância permanente. “Hoje temos bandas residentes desde a malta do jazz e da velha escola do rock” até a nomes contemporâneos como Aurea, Buraka Som Sistema e João Só, garante Michel.
“Toda esta malta trabalhou aqui connosco”, assegura, contabilizando mais de 200 projectos musicais na esfera de influência da Nirvana Studios. Todos são bem-vindos.
Nomes como Mickael Carreira, o cantor popular filho de Tony Carreira, e os D’Zrt, projecto da vizinha TVI lá incubados, estão no hall of fame. Bem longe da estética diesel punk envolvente, do ambiente de burlesco, do espírito alternativo e underground.
A Nirvana Studios é um ecossistema de centenas de pessoas, incluindo músicos, actores, bailarinos, que utiliza aquele espaço de Barcarena que, há poucos anos, era uma micro-favela. “Isto era uma ruína absoluta, em modo okupa. Havia sucateiros, imensa gente a viver aqui, centenas de hortas clandestinas, sem recolha do lixo, com electricidade roubada dos postos de iluminação da estrada”, recorda Michel. “Era assustador. Os primeiros anos foram complicadíssimos porque ninguém nos ajudou a resolver judicialmente o problema”, acrescenta.
Hoje, sedimentaram a presença no meio cultural. Houve dores de crescimento, como o facto de terem prescindido das super-estrelas que lá ensaiavam quando vinham a Portugal dar concertos, com exigências estritas de discrição. Até tinham limusines para o transporte. “Com os novos telemóveis acabou-se. Qualquer puto tem um telemóvel e fotografa e grava”, brinca Michel.
Venderam os carros com o fechar dessa linha de negócio. É mais uma peripécia de um projecto cultural rico em histórias – e integralmente feito sem ajuda do Estado. Alegam que não fazem parte dos circuitos habituais do sector, pelo que não lhes dão luz verde para aceder ao pequeno bolo governamental reservado para a área. Mas concorrem todos os anos. “Para que não nos digam um dia que nós não concorremos”, graceja Michel.