A privacidade, um direito fundamental do Homem, incluído no Artigo 12º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, posteriormente edificado na constituição portuguesa de 1976 e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, é definida como o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar.
Assim, ao contrário do que se pensa, o direito à privacidade não é garantido, e está sob pressão constante resultante da evolução tecnológica e económica. A introdução maciça da Worldcoin em Portugal é mais uma evidência desta tensão. É importante analisar o mérito da solução proposta, para que todos os cidadãos possam fazer escolhas informadas sobre a potencial utilização desta plataforma. De uma perspetiva histórica, esta plataforma já foi alvo de denúncias pelo MIT Review sobre o comportamento não ético dos seus operadores na recolha de dados biométricos em 2022, e por vulnerabilidades detetadas no sensor de recolha destes dados.
Uma análise ao modelo de governança da plataforma mostra que esta, apesar de se apresentar como uma sociedade não lucrativa, aparenta ter um propósito claramente comercial, onde uma percentagem considerável do capital, na forma de tokens, está sob controlo dos investidores e dos programadores da solução. Do ponto de vista funcional, a plataforma apresenta-se como uma solução para gestão de identidade e autenticação, para a próxima geração de aplicações na internet, suportada com o recurso à utilização de biometria da íris e à blockchain Ethereum. Caso a plataforma tenha sucesso, cada transação feita na Worldcoin gerará uma taxa, que diretamente valorizará os tokens existentes.
A plataforma que se apresenta como a solução para os ataques sybil, utilização maliciosa de múltiplas identidades falsas, para os pagamentos online, apresenta em si uma dualidade que é difícil de explicar. A tecnologia que a suporta, a blockchain, foi pensada para transações online seguras e anónimas. Contudo, a Worldcoin propõe a adopção de uma identidade universal, que contradiz a filosofia original da blockchain e poderá, no futuro, representar um ponto de conflito. Em resultado disto, a solução da Worldcoin pode acarretar problemas mais graves do que aqueles que procura resolver. É importante destacar que, no contexto do RGPD, estamos a evoluir para um paradigma de soberania individual, que se opõe frontalmente ao conceito proposto pela Worldcoin. Neste novo paradigma, várias identidades são geridas para diferentes contextos, e a autenticação baseia-se em mecanismos multifatoriais, incluindo biométricos e outros, elevando assim a segurança. A diversidade de identidades ajuda a reduzir o rastreamento online pelas organizações, interrompendo a correlação entre atividades em sites distintos. Mais importante, permite combater a censura online, que é um problema cada vez maior, incluindo em países democráticos.
Estas incoerências numa plataforma que se posiciona como um projeto para o bem da humanidade ilustram a necessidade de estarmos vigilantes. Portugal, em particular, que ainda luta com a exclusão digital das comunidades mais desfavorecidas, corre o risco de transformar a privacidade em um privilégio apenas ao alcance dos mais favorecidos.
Professor Auxiliar, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto
Investigador no Centro de Cibersegurança e Privacidade da Universidade do Porto