Directora-geral da Adega Mayor
Artigo incluído na edição de Novembro 2018
O dia estava frio. Do chão de terra batida erguiam-se muros quase cegos de tijolo, rematados por um tecto de chapa. No meio de um grande vão vazio, aglomeravam-se mesas e bancos de madeira corridos onde foi servido o almoço que, segundo fonte segura, terá sido ensopado de borrego, um típico prato alentejano.
Os meus 8 anos de então não me permitem discernir com clareza o propósito do evento que reuniu mais de uma centena de pessoas, entre amigos, colaboradores e família(s), no local onde ainda hoje se torra o café Delta e que daí viaja até aos quatro cantos do mundo.
Mas, três décadas passadas, o sentimento de alegria, simplicidade e partilha em família, continuam colados à pele. Anos mais tarde, a trabalhar noutra empresa, não poderia imaginar o impacto destas memórias na minha decisão de incursão no negócio familiar.
Apesar da importância e do valor que estas organizações tiveram no meu crescimento, o desafio de contribuir para algo “maior” falou mais alto. A minha história não será diferente de outras, mas moveu-me em particular o exemplo humanizado de gestão do Grupo Nabeiro, no qual continuo a rever-me. Onde as pessoas ocupam um papel central na construção de algo que vai para além da empresa e que se traduz em valores humanos e não apenas financeiros que, em última instância, se materializam na construção de uma sociedade melhor.
Muitos dos desafios das empresas familiares são comuns às restantes, nomeadamente a transição da gestão. No caso da primeira pode revestir-se de contornos particulares, quando implica a escolha de um elemento em detrimento de outro, gerando desconfortos. Por essa razão, a passagem de testemunho é crucial. As diferentes gerações têm de percorrer parte do percurso em conjunto, enquanto passam o bastão em movimento. Pelo caminho importa definir a visão de longo prazo, a missão, os objectivos e a estratégia para a sua implementação, clarificando o papel de cada elemento da família, seja por via de um protocolo, de um manifesto de marca e de um modelo de governação.
Apesar do seu grande impacto na sociedade, as empresas familiares continuam a ser percepcionadas como menos inovadoras, embora a realidade nos mostre o contrário. Desde a Ikea, ao grupo Inditex/Zara, à Walt Disney, à Forbes passando pela Lego. Portugal não é excepção. Na missão desta última empresa podemos ler “Inspirar e desenvolver os construtores do amanhã”. Só uma estrutura assente em alicerces sólidos, que vão desde a inovação à diversificação e onde as pessoas são peças centrais, resiste à passagem do tempo e definem a nossa identidade. Os altos e baixos fazem parte do caminho, mas a resiliência e o foco no longo prazo explicam a razão da sua adaptabilidade e sobrevivência.
Como crianças a brincar com Legos, as empresas têm que experimentar, criar, reinventar e destruir para reconstruir. Naquele armazém despido e em construção, faltava muita coisa mas não a base onde se funda o sentimento de união e de partilha. Muito foi construído desde então, mas os valores permanecem sólidos. Que nunca nos falte a coragem, a diversão, a paixão e sobretudo, a capacidade de olhar para o mundo com a curiosidade de uma criança que ainda tem muito por descobrir e aprender.