Poupar não é suficiente atualmente. Os portugueses até estão familiarizados com o conceito de depósitos a prazo, mas quando as taxas de inflação são superiores às taxas de juro recebidas nestes depósitos o poder de compra diminui. É crucial reforçar a importância de os cidadãos entenderem outras formas de garantir a estabilidade financeira futura, como os PPR, os investimentos em ETF ou ações e os fundos mútuos.
Muito se tem falado sobre a falta de literacia financeira em Portugal, mas eu, enquanto financeira de natureza, gosto de me focar em factos e números. Em 2020, segundo um gráfico presente no artigo “A comunicação do BCE com o público em geral”, divulgado pelo Banco Central Europeu (BCE), Portugal estava na última posição em termos de literacia financeira entre os 19 países da zona euro. Se, para muitos, estes factos podem ter sido chocantes, para mim foi o constatar de uma realidade que tenho vivido na primeira pessoa.
Quando anunciei a minha reforma ou a minha retirada do mundo corporativo aos 44 anos, uma vez que tinha atingido a minha independência financeira, recebi dezenas, talvez até centenas de mensagens de pessoas a perguntar sobre a receita mágica que me permitiu tal feito. Como se tivesse, do dia para a noite, conseguido fazer um único investimento e conseguido o dinheiro e os rendimentos suficientes para ter tomado tamanha decisão.
Na geração dos meus pais, creio que tenha existido a cultura da poupança. Eu pelo menos recebi esse ensinamento: o dinheiro tem de ser poupado. Essa geração veio em muitos casos de famílias extremamente humildes, famílias do interior do país, em que os filhos eram muitas vezes vistos como força de trabalho. Onde os sapatos eram para ser usados quando iam à cidade e as datas de nascimento no bilhete de identidade eram diferentes da realidade para não pagarem multa na altura do registo. Muitos emigraram para diferentes partes do mundo (França, Venezuela, EUA, por exemplo), em busca de salários melhores e mais oportunidades.
Embora a história se repita e atualmente vemos mui- tos jovens (eu inclusive) emigrar em busca de melhores salá- rios, melhores oportunidades de carreira e taxas de impostos mais baixas, a cultura da poupança tem vindo a desaparecer por vários motivos. Por um lado, temos baixos salários e alto volume de impostos praticados no nosso país, por outro, temos a população a viver acima das suas possibilidades. Em Portugal não se fala de dinheiro, sendo um país com origem judaica ou cristã. O dinheiro é o mal de todos os problemas, é sujo, logo não vamos falar sobre ele.
O que acontece quando não falamos de algo tão importante na nossa vida? Não aprendemos, não sabemos como agir e, pior, tiramos conclusões muitas vezes erradas. Como não falamos de dinheiro, e vivemos de aparências, as pessoas analisam ou tiram conclusões sobre a riqueza das outras pelo carro que conduzem ou pela marca da roupa que vestem. O que não poderia estar mais errado! Quando foi a última vez que viu o Warren Buffet ou o Bill Gates usar Gucci ou Prada? Vivemos cada vez mais numa sociedade consumista, à semelhança do que já se via há muitos anos nos EUA.
A literacia financeira é vital por várias razões. Em períodos de incerteza económica, compreender como o dinheiro e as finanças funcionam é fundamental para lidar com desafios financeiros. Esta compreensão torna-se ainda mais crucial ao considerar a história económica do país, marcada por altos e baixos.
Além disso, a educação financeira permite evitar endividamentos excessivos e ajuda na gestão financeira, incluindo o planeamento para o futuro, como a reforma, especialmente em face da instabilidade da Segurança Social. Segundo um estudo da Comissão Europeia, “The 2021 Ageing Report”, em Portugal a taxa de substituição entre o último salário e a reforma será pouco mais de 50% no ano de 2040.
A crise iminente na Segurança Social portuguesa torna ainda mais crucial o acesso à formação financeira. Temos de voltar a ter hábitos de poupança e, para tal, precisamos de fazer e entender o nosso orçamento pessoal e/ou familiar, entender onde estamos a gastar o dinheiro que ganhamos.
No entanto, poupar não é suficiente atualmente. Creio que os portugueses até estão familiarizados com o conceito de depósitos a prazo, mas quando as taxas de inflação são superiores às taxas de juro recebidas nestes depósitos o poder de compra diminui. É crucial reforçar a importância de os cidadãos entenderem outras formas de garantir a estabilidade financeira futura, como os PPR, os investimentos em ETF ou ações, fundos mútuos, etc.
O tema da literacia financeira tem de ser introduzido desde tenra idade, começando com noções básicas adequadas ao nível de maturidade e compreensão de cada pessoa. Conceitos simples, como a distinção entre necessidades e desejos, a importância da poupança e a compreensão do valor do dinheiro, são fundamentais desde cedo.
Por volta dos 10 a 12 anos, é apropriado começar a ensinar noções práticas sobre o sistema bancário, como abrir uma conta, receber uma mesada, usar um cartão de débito e entender como os pagamentos são efetuados. Mais tarde, por volta dos 15 anos, é relevante abordar temas como investimentos a longo prazo, planeamento da reforma e os riscos associados a certos produtos financeiros. À medida que as pessoas crescem, é benéfico introduzir conceitos mais complexos, como orçamentação pessoal, juros, investimentos e até mesmo a compreensão de empréstimos e créditos.
É essencial que a literacia financeira seja uma aprendizagem contínua, ajustada à idade e necessidades individuais. Estimular o conhecimento desde cedo oferece uma base sólida para enfrentar as complexidades do mundo financeiro, preparando cada um para lidar com desafios futuros com maior segurança e discernimento.
A responsabilidade de ensinar literacia financeira recai sobre vários intervenientes na vida de uma pessoa. Em primeiro lugar, a família desempenha um papel crucial, já que os pais têm a oportunidade de incutir conceitos básicos desde tenra idade, estabelecendo uma base sólida para o entendimento financeiro. Ensinar hábitos de poupança, a já mencionada diferença entre necessidades e desejos e até mesmo envolver os mais novos em decisões financeiras simples, como a gestão de uma mesada, são ações valiosas. Contudo, em Portugal muitas destas noções e conceitos básicos, muito deste conhecimento já não reside nos pais, logo não vão conseguir transmiti-los aos filhos. Como vamos conseguir quebrar este ciclo?
As escolas desempenham um papel fundamental. A inclusão de programas formais de educação financeira no currículo escolar permite a todos os estudantes adquirir conhecimentos essenciais. Professores capacitados para ensinar conceitos financeiros, desde o ensino básico até ao secundário, são essenciais para garantir que os jovens adquiram competências nesta área.
Instituições financeiras e organizações sem fins lucrativos também têm um papel a desempenhar. Muitas oferecem programas de educação financeira, workshops e recursos para ajudar as pessoas a entenderem melhor o sistema financeiro e a tomar decisões informadas sobre poupança, investimento e gestão do dinheiro.
O Governo também pode ter um papel importante, implementando políticas que promovam a educação financeira, tanto através de iniciativas escolares quanto por meio de programas acessíveis à comunidade em geral.
Portanto, a responsabilidade de ensinar literacia financeira é partilhada entre a família, as instituições educacionais, entidades financeiras e até mesmo o Governo. Uma abordagem holística e colaborativa é essencial para garantir que as pessoas adquiram as competências necessárias para lidar com as complexidades do mundo financeiro.
Rita Piçarra,
ex-CFO da Microsoft Portugal. Reformada aos 44 anos
Este é um excerto do livro “79 Vozes pela Literacia Financeira” que o Iscte Executive Education lançará na próxima semana, na Feira do Livro.