O silêncio da fábrica – isso, silêncio – só é entrecortado pelo som do rádio que vai alternando notícias com música. Lá dentro, sete pessoas trabalham na fábrica da Luvaria Ulisses, a única que sobreviveu às várias crises, ao 25 de Abril de 1974 e à proliferação do comércio retalhista industrial. E desengane-se se acha que vai encontrar um grupo de artesãos velhinhos a trabalhar as delicadas peles de várias cores que pontuam o castanho dos móveis antigos: entre os oficiais – os homens, que tratam da preparação e corte da pele – o mais velho é Jorge Fernandes, 46 anos de vida e 12 de casa. “Respondi a um anúncio de jornal, na altura, e vim para aqui aprender”, conta, de olhos azuis brilhantes, à FORBES.
“Para quem gosta, é um trabalho que não é difícil”, afiança enquanto estica a pele e corta, quase a olho, os moldes para um tamanho “6 e meio”. Por dia, consegue preparar cerca de 15 pares de luvas, “mas depende sempre do tipo de pele que estamos a trabalhar”, explica.
Carlos Carvalho, sócio-gerente da Ulisses, faz-nos uma visita guiada e aproveita para salientar, com orgulho: “eu não lhe disse que a nossa equipa era nova? Quem os ensinou a todos foi o Sr. Francisco”, continua antes de ser interrompido. “Sr. Francisco, o grande mestre!”, exclama Diogo Carvalho, filho do responsável pela luvaria, e oficial há cerca de seis anos.
“Sabe, não há melhor forma de aprender um negócio como passando por todas as partes que o compõem”, atira Carlos em jeito de justificação, embora ele próprio não saiba fazer luvas, confessa com uma gargalhada. “Nunca o fiz, não”. Mas já lá vamos. Agora queremos perceber o que faz a diferença nas luvas da Ulisses, a loja de apenas quatro metros quadrados em pleno Chiado, que factura mais de meio milhão de euros por ano a vender um único produto.
Artesãos de nova geração
Francisco Sobral, “o melhor oficial do país”, foi o professor de todos os que trabalham na fábrica hoje em dia. “A formação é feita por nós, porque mais ninguém faz luvas. Pode demorar vários meses, depende muito das pessoas”, explica Carlos.
É que preparar a pele implica humedecê-la, esticá-la, cortá-la e numerar cada molde. Tudo feito à mão. Cada par vindo apenas da mesma peça de pele. Sem desperdícios. O mesmo acontece com as costureiras que finalizam o trabalho dos oficiais. Actualmente são três as que trabalham na fábrica – a estas juntam-se mais algumas externas, sempre que necessário.
Rosa tem 25 anos de fábrica e uma destreza impressionante a coser os modelos que lhe chegam às mãos.
“Usa-se aqui o truque”, explica enquanto pega na pinça que a ajuda a, sem falhas, transformar os pedaços de pele cortada em luvas perfeitas. “Não é fácil, mas é só preciso prática”, conta sem interromper as mãos que, velozes, vão puxando linha, empurrando pele, cortando linha. “Neste modelo fazemos primeiro a fantasia e depois o resto. Geralmente é ao contrário”, continua.
As máquinas de costura têm décadas de história e são fonte de preocupação porque “não se fabricam mais. É que têm duas linhas”, explica Carlos antes de começar a destapar todas as que tem na fábrica para no-las mostrar, fruto das compras que faz sempre que encontra “uma que funcione”.
E aprender a coser com estas máquinas também demora mais tempo. Mas então, por que não coser só com uma linha?
“Ah, mas aí também está uma das nossas diferenças. Porque se por acaso uma ponta de linha se solta, a luva nunca abre”, com a ajuda da outra. Apesar de ser improvável acontecer – “todas as nossas luvas são rematadas”, que é como quem diz, é dado um nó na linha, no final da costura – o melhor é não arriscar.
As luvas vão-se amontoando, agora em azul. Lá ao fundo está um grupo de luvas pretas, especiais porque foram totalmente cosidas à mão. Nas mãos dos oficiais preparam-se luvas verdes, vermelhas e azuis. É uma explosão de cor nos nossos olhos. As peles vêm praticamente todas de fora do país. “Há boas peles em Portugal, mas estão mais preparadas para o sector do calçado”, justifica Carlos.
“A pele de luva tem de ser muito específica, macia, ter uma cor bonita, ter elasticidade. A maioria vem de Inglaterra, Itália e França. Só compramos peles europeias, naturalmente”, explica. “A pele é um problema muito grande. Cada vez há menos pele de qualidade. Um sapato tem acabamentos que podem disfarçar defeitos. As luvas não. Além de que para este produto, as peles têm uma espessura de 0,45 milímetros. É muito fininha. É difícil encontrar uma pele que tenha resistência nessa espessura”, lamenta.
Um negócio histórico
A todas as especificidades fabris, junta-se o facto de a Ulisses ser uma loja pequena, e de muitos fornecedores terem quantidades mínimas de encomenda.
“Eu gosto de ter imensas cores, mas estamos limitados porque somos grandes para os 4 metros quadrados que temos. Mas não somos assim tão grandes e há quantidades mínimas, e as coisas têm que ser rentáveis”, explica ainda Carlos, com indisfarçável orgulho na voz enquanto nos faz toda uma viagem pela história da loja.
A abertura remonta a 1925, pela mão de Luís Simões, dono de várias lojas no Chiado, que percebeu que podia rentabilizar aquele pequeno espaço de 4 metros quadrados que servia somente de acesso ao seu escritório. A ideia não podia ter corrido melhor. “É a última luvaria do país e das poucas que restam no mundo. Itália mantém alguma tradição, mas nas principais capitais da Europa há uma ou duas. Paris, por exemplo, terá umas três. Em Londres só conheço uma”, explica-nos o sócio-gerente da empresa.
No ano passado, o volume de negócios da empresa quase chegou aos 600 mil euros, mais 13% do que o registado no ano anterior. Significa que a loja da Ulisses tem um dos metros quadrados mais rentáveis de Lisboa: por cada metro quadrado da pequena loja, facturou em 2015 cerca de 147 mil euros. A somar a este feito histórico (um dos melhores anos de sempre) acumulou lucros de 157 mil euros, 22% acima do verificado em 2014.
“Não houve crise no turismo”, esclarece Carlos, acrescentando que a luvaria Ulisses é muito referenciada e sai praticamente em todos os guias. Acredita que isso acontece também porque a Baixa de Lisboa está descaracterizada e há poucas lojas com História. Não é por acaso que para este ano, em que se espera bater um novo recorde de turistas em Portugal, as expectativas de Carlos sejam as melhores.
Confiança vitalícia
Carlos entrou na Ulisses como empregado de balcão e ainda hoje é possível vê-lo a calçar luvas aos clientes que não páram de entrar. Isso se não tiver trabalho de administrativo para despachar na pequena secretária que tem no andar de cima da loja ou se não tiver de passar pela fábrica para garantir que tudo está a correr conforme o previsto.
Os cerca de 1000 pares produzidos todos os meses são, por norma, vendidos em igual período de tempo; significa que não há muito stock para gerir nem muito inventário para fazer face a encomendas surpresa.. E, claro, há sempre espaço para pedidos especiais. “Temos imensas situações dessas. Ainda no outro dia um cliente veio aqui e pediu umas luvas cor de laranja com buraquinhos. É impensável um português comprar aquela luva, mas era aquilo que ele queria e foi aquilo que eu enviei”, diz com orgulho na voz.
“Se for mesmo preciso? Em 2 ou 3 horas um par de luvas está feito, do corte até à costura”, garante.
Do estrangeiro recebe também encomendas, quando alguém decidiu levar um presente, mas errou no tamanho – “é mesmo importante a pessoa experimentar”, reitera – ou quando é preciso fazer algum remendo. As luvas da Ulisses têm “garantia vitalícia. Quer dizer, enquanto der para arranjar, nós arranjamos. Sem qualquer custo”, revela.
Longe vão os tempos de maior dificuldade, em que a fábrica funcionava apenas com um oficial e uma costureira, logo após o 25 de Abril. “Aguentámos aqueles dois anos em que as pessoas eram conotadas com o fascismo porque usavam luvas. Mas tudo isso se ultrapassou. Depois houve o incêndio do Chiado, que também foi outra situação muito complicada, mas as coisas começaram a normalizar”.
Com mais de 90 anos de existência, a Ulisses continua a crescer. Carlos atribui este sucesso a uma tríade altamente vencedora: a loja, mantendo a decoração e os móveis originais, demasiada História para não despertar a curiosidade dos que por ela passam; o artigo, “de muita qualidade, e totalmente original, desde o desenho até à confecção”; e o ritual do atendimento, que nenhuma outra loja faz no país. “Se tivéssemos descaracterizado”, nem o aumento do turismo “seria suficiente” para fazer a loja sobreviver, acredita.
Que venham os próximos 90 anos.