Ricardo Baptista Leite, 43 anos, é médico, autor, professor universitário e político. Foi deputado da Assembleia da República e é ainda vereador na Câmara Municipal de Sintra. Está atualmente como CEO da Health AI, organização sem fins lucrativos sediada em Genebra, que tem como missão apoiar a investigação nos campos da saúde digital e da inteligência artificial. À Forbes revela que Portugal tem tudo para ser um líder no desenvolvimento, investimento e aplicação da IA na saúde, sendo que há soluções portuguesas com IA que já são usadas à escala global. Diz ainda que “O Ministério da Saúde deveria passar a ser o Ministério do Bem-Estar”, e que esta mudança é possível se houver vontade política, liderança e visão estratégica.
Está como CEO da Health AI desde maio deste ano. Quais têm sido as suas prioridades nesta organização e de que forma está a mudar a forma de trabalhar desta instituição?
Fundada em 2019, esta fundação sem fins lucrativos tinha uma missão assente na investigação nos campos da saúde digital e da inteligência artificial. No entanto, assim que assumi funções, ficou evidente que seria necessário repensar toda a estratégia da organização, por diversas razões. A emergência da inteligência artificial do campo da investigação para passar a ser comercializada massivamente, aliada a uma capacidade computacional de magnitude sem precedentes, por si só exigiria uma mudança. Soma-se a isto o profundo impacto que a pandemia teve nos sistemas de saúde, revelando muitas das suas fragilidades ao mesmo tempo que acelerou a adoção de soluções digitais. E, por fim, o alargamento do hiato digital entre ricos e pobres e o crescimento das desigualdades à escala global, com o potencial de serem agravados pela inteligência artificial, tornaram urgente a nossa intervenção. Para desenvolver a nova estratégia escutámos governos, legisladores, investigadores, empresas, especialistas em IA e movimentos da sociedade civil. Quase sempre surgiu a palavra “medo” associada à IA. Este sentimento de “medo” resulta em grande parte da falta de compreensão sobre a tecnologia ou de como a regular. Por isso, adotámos uma estratégia que pretende resolver o grave problema da falta de governança da IA na saúde à escala global. Para tal, assumimo-nos como um parceiro de implementação dos standards de regulação definidos à escala global pela OMS, preparando para isso os países no sentido de terem equipas capazes de validar ferramentas de IA para uso na saúde de acordo com as regras da “Inteligência Artificial Responsável”. Foi por tudo isto que decidimos mudar o nome da fundação de modo a alinhar com a nossa nova estratégia: HealthAI – The Global Agency for Responsible AI in Health.
“Portugal tem tudo para ser um líder no desenvolvimento, investimento e aplicação da IA na saúde”, afirma Ricardo Batista Leite.
Quais os projetos que tem atualmente em mãos?
Foi recentemente criada a Global Initiative on AI for Health, uma colaboração entre a OMS (Organização Mundial da Saúde), a UIT (União Internacional das Telecomunicações) e a OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual). Esta tríade de agências das Nações Unidas nomearam a HealthAI como co-chair do grupo de trabalho de assuntos regulamentares o que nos confere um mandato para as apoiar no desenvolvimento do ecossistema regulamentar da IA para a saúde. Estamos, por isso, a construir uma rede de parcerias com governos, filantropias e outros parceiros para que possam ser os pioneiros na co-criação destes novos modelos de validação de IA. Pessoalmente, encontro-me num roadshow mundial a apresentar a nossa nova estratégia a todos os que demonstrem interesse em serem pioneiros neste campo inovador. Espero sinceramente que Portugal se junte a este esforço global e aproveite as potencialidades da IA para o país.
De que forma está a Inteligência Artificial a mudar o modo como vemos a saúde?
Hoje a IA já é largamente usada na prática clínica com particular enfoque no campo diagnóstico, nomeadamente no campo da imagiologia. As máquinas têm a capacidade de muitas vezes superar o olhar humano na análise de TAC ou de ressonâncias magnéticas. Mas todos os estudos demonstram que os melhores resultados são alcançados pela simbiose que combine as capacidades das IA com as dos seres humanos. O futuro da medicina será mesmo uma fusão híbrida entre humanos e máquinas. Desde o desenvolvimento de novas moléculas terapêuticas às mais mundanas atividades burocráticas, a IA tem o potencial de ser um acelerador sem precedentes na prestação de cuidados de saúde e de intervenções preventivas.
Que exemplos nos pode dar dessa transformação?
Face à enorme escassez de profissionais de saúde e a necessidade de reforçar o lado humano das interações entre doentes e esses profissionais, muitas empresas estão a apostar nos chamados “escrivães virtuais” que mais não são do que ferramentas capazes de captar todo o conteúdo de uma conversa, por exemplo, entre um médico e o seu doente. No final da consulta, o “escrivão” automaticamente compõe o texto para o registo clínico eletrónico. No final de cada consulta, o médico só tem de validar o texto. Mas, mais importante, durante a consulta o médico apenas se foca no doente sem precisar de recorrer ao computador. É um caso em que a IA pode reforçar o lado humano da medicina.
Quais são os principais desafios e ameaças da IA na saúde, e quais as principias oportunidades?
A maior oportunidade da IA na saúde assenta na capacidade que estas tecnologias têm de poder transformar radicalmente o modelo em que assentam os sistemas de saúde. Hoje estes sistemas gastam 98% dos seus recursos a reagir às doenças, deixando a prevenção das doenças e a promoção da saúde e do bem-estar sempre para segundo plano. Não só teremos o potencial de melhor prevenir doenças ou de as diagnosticar precocemente, como o poderemos fazer garantindo acesso a cuidados de qualidade a quem não o tem e uma maior humanização desses cuidados. Os maiores riscos assentam em várias componentes da arquitetura e dos ciclos de desenvolvimento da IA. As bases de dados em que assentam os modelos de treino destas ferramentas podem conduzir a vieses com consequências danosas para determinados subgrupos de doentes. Mais, a ausência de regras claras sobre a recolha e processamento de dados dos doentes e demais cidadãos poder comprometer os princípios básicos da privacidade e da proteção de dados. A aplicação cega das recomendações geradas por IA pode igualmente prejudicar os doentes na medida em que estas ferramentas carecem sempre de uma avaliação humana. Mas o maior risco advém do desconhecido. Ninguém consegue avaliar com absoluta certeza sobre que soluções tecnológicas irão surgir a partir do ecossistema que agora se está a criar. Daí que seja extremamente importante ter uma rede regulamentar suficientemente robusta que seja capaz de capacitar os países a gerirem estes desafios internamente ao mesmo tempo que integrados numa plataforma de intercâmbio à escala global. É precisamente isso que a HealthAI está a tentar proporcionar ao mundo.
“O Ministério da Saúde deveria passar a ser o Ministério do Bem-Estar”, afirma Ricardo Batista Leite.
A IA vai tornar mais acessível a saúde a grupo e regiões mais desfavorecidas ou vai ampliar estas diferenças?
Depende. A ausência de mecanismos de supervisão e de regulação está a alargar o hiato digital entre ricos e pobres, seja entre países, seja dentro de cada país. Uma das maiores barreiras para aceder a estas tecnologias assenta na dificuldade que muitas geografias apresentam para conseguir garantir o acesso à internet aos seus cidadãos. É o caso do continente africano onde a IA tem o potencial de ajudar estes países a darem um salto para o futuro na prestação de cuidados de saúde de qualidade para todos os cidadãos. No entanto, é precisamente em África onde o custo de acesso a dados de internet (preço por GB) é dos mais elevados no mundo. Isto para além do facto de uma parte importante desta população continuar sem acesso a um smartphone o que constitui uma barreira no acesso a estas tecnologias.
De que forma poderá a tecnologia ajudar a prevenir uma segunda e provável pandemia? Que aprendizagens se retirou da anterior que estejam a ser efetivamente aplicadas?
A vigilância epidemiológica de potencias surtos com potencial pandémico é já hoje uma realidade permitindo atuar rapidamente e evitar que esses surtos se transformem numa emergência de escala global. Assim como o desenvolvimento de medicamentos e vacinas já depende em muito de IA. É por recurso a estas tecnologias que se está a conseguir trabalhar ativamente no sentido de garantir que o mundo seja capaz no futuro de desenvolver uma vacina no espaço de 100 dias para responder a uma qualquer ‘doença x’ que, entretanto, possa surgir. Se pensarmos que, até 2020, o tempo médio para desenvolver uma vacina poderia chegar aos 10 anos, facilmente compreendemos o impacto transformador destas tecnologias.
Como se posiciona Portugal nesta área da AI aplicada à saúde? O que poderia ser feito e não está a ainda a ser aplicado?
Iniciativas privadas empreendedoras, assim como de algumas instituições académicas de referência, têm demonstrado enorme capacidade de inovação. Há soluções portuguesas que já se encontram a serem usadas à escala europeia e global. Seria importante que o Governo assumisse a IA como uma área de investimento central de forma transversal a todas as áreas de governação. Ao contrário de muitos outros países, nós temos o capital humano altamente qualificado necessário para liderar esta revolução da era da inteligência. Portugal tem tudo para ser um líder no desenvolvimento, investimento e aplicação da IA.
Como vê a crise na área da Saúde em Portugal? Como fazer frente a este enorme desafio? Que soluções antevê?
Muitos dos fatores que estão a condicionar a crise que se vive na saúde vêm de trás e foram fortemente agravados pela pandemia e pela ausência de intervenção preventiva por parte das autoridades. Mas esta degradação da moral dos profissionais de saúde que se sentem desrespeitados e sem condições para exercer a profissão com dignidade resulta de um problema de base muito maior. Como mencionei acima, o SNS é hoje um “sistema de doença” que gasta a quase totalidade dos seus recursos a tratar pessoas doentes com doenças quase sempre evitáveis. Se não se mudar radicalmente o sistema de saúde de modo a focar-se em reduzir a carga da doença, iremos caminhar para um sistema dual, um para quem tem meios próprios, e outro para os mais pobres. Já hoje vemos que quem depender exclusivamente do sistema pública muitas vezes não tem acesso atempado a cuidados de qualidade. É o caso das longas listas de espera e à incapacidade de atrair médicos de família, deixando 1,7 milhões de portuguesas sem esta cobertura. No meu livro “Um Caminho para a Cura” adiantei soluções estruturais que demonstraram noutros países serem capazes de inverter este rumo. Temos de ser capazes de medir os ganhos em saúde e de remunerar os profissionais de saúde em função desses resultados em saúde. Mais importante do que saber quantos doentes foram intervencionados cirurgicamente ou tiveram consultas médicas, é saber se depois desses atos clínicos ficaram melhores ou piores. É ainda possível intervir nas comunidades de modo a diminuir significativamente o número de pessoas doentes. O Ministério da Saúde deveria passar a ser o Ministério do Bem-Estar. Esta mudança é possível. É tudo uma questão de vontade política, liderança e visão estratégicas. Infelizmente tem-nos faltado estas três qualidades na saúde há demasiado tempo e os resultados estão à vista.