O novo perfil da dívida em Portugal: Mais jovem, mais educado, mais vulnerável

Joana tem 31 anos, um mestrado em Marketing e um bom emprego numa multinacional em Lisboa. Ganha acima da média nacional, viaja quando pode e, à primeira vista, parece ter a vida equilibrada que muitos ambicionam. Mas há um detalhe que não aparece nas fotografias: mais de metade do seu rendimento mensal é absorvido pelo…
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Durante décadas, o endividamento era um reflexo direto da escassez. Hoje, é muitas vezes o produto de uma ambição legítima: ter casa, estudar, progredir. Mas a conjugação de juros altos, rendas insustentáveis e um custo de vida que cresce mais depressa do que os salários empurra uma nova geração para a mesma armadilha que dizia compreender: a dependência do crédito.
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Economia

Joana tem 31 anos, um mestrado em Marketing e um bom emprego numa multinacional em Lisboa. Ganha acima da média nacional, viaja quando pode e, à primeira vista, parece ter a vida equilibrada que muitos ambicionam. Mas há um detalhe que não aparece nas fotografias: mais de metade do seu rendimento mensal é absorvido pelo crédito da casa e pelo carro em leasing. Entre prestações, seguros e despesas fixas, o salário que outrora simbolizava estabilidade tornou-se uma corda apertada. Joana não vive mal — vive no limite.

O seu caso está longe de ser excecional. Pelo contrário, representa o novo rosto da dívida em Portugal: mais jovem, mais educado e, paradoxalmente, mais vulnerável.

Durante décadas, o endividamento era um reflexo direto da escassez. Hoje, é muitas vezes o produto de uma ambição legítima — ter casa, estudar, progredir. Mas a conjugação de juros altos, rendas insustentáveis e um custo de vida que cresce mais depressa do que os salários empurra uma nova geração para a mesma armadilha que dizia compreender: a dependência do crédito.

Portugal já não é um país de famílias que se endividam por necessidade, mas de profissionais qualificados que o fazem por sobrevivência — ou por manterem um padrão de vida que acreditam ser o mínimo para “não ficar para trás”. O resultado é uma vulnerabilidade silenciosa, mascarada por diplomas, salários estáveis e aparente conforto. Uma vulnerabilidade que expõe uma verdade desconfortável: o progresso académico e o crescimento económico não bastam, se a literacia financeira e a estabilidade emocional não os acompanharem.

A mutação silenciosa do endividamento

De famílias carenciadas a profissionais qualificados

Durante anos, o retrato do endividamento em Portugal estava associado a famílias de baixos rendimentos, com pouca formação e dificuldades em aceder a produtos financeiros. O crédito era, em muitos casos, o último recurso — um sinal de carência. Hoje, essa fronteira diluiu-se.

Os números mostram uma mudança estrutural. O crédito ao consumo e à habitação cresce mais rapidamente entre jovens adultos com formação superior, emprego qualificado e rendimentos médios ou acima da média. A diferença é que, agora, o crédito não serve apenas para colmatar a falta de recursos, mas para sustentar um modo de vida.

A geração que cresceu a ouvir falar de estabilidade e meritocracia entrou num mercado de trabalho que exige mobilidade, flexibilidade e consumo constante. O crédito deixou de ser exceção e tornou-se extensão do salário — um complemento para manter o ritmo da cidade, do estatuto e das expectativas sociais.

Esta deslocação do risco financeiro é silenciosa mas profunda. O endividamento já não se concentra nas franjas mais vulneráveis, mas nas camadas médias urbanas, que acreditam ter “controlo”. É uma nova forma de fragilidade: a que nasce da ilusão de segurança.

O efeito da inflação e dos juros altos

A subida das taxas Euribor e a inflação que vivemos nos últimos anos, entretanto ultrapassada, vieram testar essa falsa sensação de estabilidade. O que antes era uma prestação confortável tornou-se, de repente, uma pressão constante.

Para muitos jovens com créditos que consomem mais de 50% do rendimento, a margem de manobra desapareceu. O aumento do custo de vida não se limita à habitação — estende-se à alimentação, energia, transportes e serviços básicos. O resultado é um ciclo de vulnerabilidade crescente: salários estagnados, despesas em alta e crédito como válvula de escape.

O problema é que a dependência do crédito num contexto de juros elevados transforma o equilíbrio financeiro numa corda bamba. Pequenas variações — uma taxa que sobe, uma renda que aumenta, um bónus que falha — bastam para desequilibrar todo o orçamento.

O novo mapa da dívida em Portugal é, por isso, o espelho de uma transformação económica mais profunda. As famílias não estão apenas a gerir prestações: estão a gerir ansiedade. E isso muda tudo — na forma como planeiam, consomem e vivem.

A ilusão da segurança financeira

O mito da estabilidade pós-licenciatura

Durante décadas, o ensino superior foi visto como o passaporte para a segurança financeira. A promessa era simples: estudar, trabalhar e colher os frutos de um percurso estável e previsível. Essa narrativa, porém, está em colapso.

Hoje, muitos jovens licenciados encontram-se presos num paradoxo: têm mais competências, mas menos estabilidade; mais oportunidades, mas menos garantias. O emprego qualificado deixou de significar um contrato permanente, e o rendimento “acima da média” raramente cobre o custo real de vida nas grandes cidades.

A dívida surge, assim, como uma ponte entre o que se ganha e o que se espera alcançar. Para financiar a educação, a habitação ou até o conforto mínimo, o crédito torna-se o mecanismo que permite manter o ideal de progresso. Mas é um progresso ilusório, baseado numa promessa que o mercado de trabalho já não cumpre.

O resultado é uma geração que não falhou no mérito, mas que vive num sistema onde a qualificação não basta. A vulnerabilidade deixou de estar associada à falta de instrução — e passou a estar ligada à desadequação entre expectativas e realidade económica.

A pressão do estilo de vida urbano

Nas grandes cidades, a linha entre necessidade e status é cada vez mais ténue. Um carro para o trabalho, uma casa “aceitável”, jantares ocasionais e viagens anuais parecem escolhas razoáveis. Mas, somadas, compõem o retrato de uma vida financiada a crédito.

O consumo deixou de ser apenas funcional e tornou-se identitário. Comprar é, muitas vezes, uma forma de afirmação social — e as redes sociais amplificam esse impulso. A comparação é constante: o colega que comprou casa, o amigo que viaja mais, o vizinho que mudou de carro. E o medo de “ficar para trás” traduz-se em decisões financeiras que não refletem necessidade, mas pertença.

A nova dívida é aspiracional. Surge não da escassez, mas da procura por validação. E é por isso que é tão perigosa: porque se disfarça de normalidade.

O problema não está apenas no custo de vida, mas na cultura de vida que o acompanha — uma cultura que associa sucesso ao consumo e tranquilidade à aparência de estabilidade. Num país onde o crédito é acessível e a literacia financeira ainda é frágil, essa combinação torna-se explosiva.

A nova vulnerabilidade: literacia e comportamento

Conhecimento técnico vs. literacia financeira real

Portugal tem hoje a geração mais escolarizada de sempre — mas também uma das mais expostas ao risco financeiro. O paradoxo explica-se facilmente: conhecer conceitos económicos não é o mesmo que saber gerir dinheiro.

Muitos jovens sabem o que é a Euribor, reconhecem termos como “spread” ou “taxa de juro nominal”, mas não compreendem o impacto real de uma taxa de esforço de 50% sobre o orçamento familiar. Falta-lhes o essencial: a tradução prática entre teoria e vida real.

As escolas e universidades formam profissionais competentes, mas raramente formam cidadãos financeiramente preparados. Ensina-se como investir em inovação, mas não como avaliar um crédito pessoal. Aprende-se a fazer projeções empresariais, mas não a construir um fundo de emergência. Esta lacuna torna-se crítica quando a conjuntura económica se inverte — porque a capacidade de resistência financeira depende menos do diploma e mais do comportamento.

A literacia financeira não é apenas saber ler números; é saber dizer “não” quando todos dizem “sim”. É uma competência emocional antes de ser técnica. E é precisamente aí que a nova vulnerabilidade se instala.

O papel das emoções e da comparação social

A dívida raramente nasce de um erro de cálculo. Quase sempre nasce de uma emoção. O medo de perder oportunidades, a ansiedade de corresponder, a frustração de ficar para trás.

Num contexto em que as redes sociais transformaram o quotidiano num palco permanente, a comparação deixou de ser pontual e passou a ser contínua. Cada imagem é um lembrete do que falta — não do que sobra. E, perante esse ruído constante, a decisão financeira torna-se emocional. Comprar, financiar ou antecipar um consumo é uma tentativa de aliviar essa tensão.

O problema é que o alívio é temporário, e a fatura é permanente. A vulnerabilidade moderna é, portanto, menos económica do que psicológica. É o resultado de uma geração que compreende os números, mas subestima o impacto das emoções sobre eles.

A literacia financeira do futuro terá de integrar esta dimensão emocional: perceber que o equilíbrio financeiro não depende apenas do que se ganha, mas da forma como se pensa, sente e compara.

O caminho possível: prevenir o sobre-endividamento

Políticas públicas e regulação

A vulnerabilidade financeira que hoje se observa entre jovens e profissionais qualificados não é apenas um problema individual — é um risco sistémico. E, como tal, exige respostas estruturais.

Portugal tem dado passos tímidos na promoção da literacia financeira, mas continua longe de uma estratégia nacional eficaz. O reforço da educação financeira deveria começar nas escolas, não como disciplina opcional, mas como parte integrante da formação cívica. Saber gerir o dinheiro é tão essencial como saber ler ou escrever.

Paralelamente, a regulação do crédito precisa de ser mais preventiva e menos reativa. É necessário impor limites claros à concessão de crédito de alto risco, especialmente junto de públicos jovens com rendimentos instáveis. A facilidade com que se obtém financiamento para consumo — frequentemente a taxas elevadas — é um dos sintomas de um sistema que privilegia o lucro de curto prazo em detrimento da sustentabilidade financeira das famílias.

Outro ponto crucial é o incentivo à poupança automática. Programas que estimulem a constituição de reservas financeiras — através de mecanismos fiscais, empresariais ou tecnológicos — podem reduzir a dependência do crédito em momentos de aperto. A estabilidade económica de uma geração não se constrói com crédito barato, mas com poupança consistente.

Responsabilidade individual e mudança cultural

Mas nenhuma política pública substitui a responsabilidade individual. A literacia financeira começa no comportamento — na capacidade de distinguir crédito estratégico de dívida improdutiva.

O crédito pode ser uma ferramenta poderosa quando usado com propósito: para investir em formação, adquirir um bem essencial ou iniciar um projeto produtivo. Torna-se tóxico quando é usado para sustentar um estilo de vida que o rendimento real não suporta. O problema não é o crédito — é o motivo pelo qual ele é contraído.

Urge também redefinir o conceito de sucesso financeiro. Durante demasiado tempo, a prosperidade foi medida pela aparência — pela casa, pelo carro, pelas viagens. Mas a verdadeira tranquilidade financeira reside no que não se vê: na ausência de dívida, na reserva de emergência, na previsibilidade do amanhã.

A mudança cultural que Portugal precisa não é apenas económica; é mental. É perceber que a estabilidade não é um destino, é uma escolha diária. E que, num mundo em que o crédito está à distância de um clique, a independência financeira é o novo luxo.

Conclusão

A nova geração não se endivida por ignorância, mas por ilusão. Ilusão de estabilidade, de progresso, de controlo. Cresceu a acreditar que a educação era o antídoto contra a vulnerabilidade e que o sucesso profissional garantia segurança financeira. Mas o mundo mudou — e com ele, as regras do jogo.

Hoje, o perigo já não está nas margens do sistema, mas no seu centro. Nas vidas aparentemente sólidas, com rendimentos regulares e diplomas no currículo, mas orçamentos em desequilíbrio e ansiedade constante com o fim do mês. A vulnerabilidade moderna é sofisticada: usa gravata, tem LinkedIn atualizado e paga o crédito a tempo e horas — até deixar de conseguir.

O futuro da literacia financeira em Portugal não se constrói apenas com manuais ou campanhas de sensibilização. Constrói-se com uma nova consciência: a de que responsabilidade e liberdade financeira são duas faces da mesma moeda. É preciso ensinar a gerir dinheiro, mas também a gerir expectativas.

A educação é o ponto de partida, não a linha de chegada. E talvez a verdadeira maturidade financeira de um país comece quando o sucesso deixar de ser medido pelo que se compra — e passar a ser avaliado pela tranquilidade com que se vive.

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