Ele é a criança que, há mais de vinte anos, andava a apanhar fruta nos pomares, a colher alcachofras e a buscar galinhas à capoeira dos avós, em Cascais. Que ia à noite, com um fio, um anzol e um cabo de vassoura, apanhar chocos e lulas no mar do Guincho. Que sonhava em ser arquitecto enquanto cozinhava para a família. Hoje, é o cozinheiro português empresarialmente mais bem-sucedido no país.
A FORBES encontrou José Avillez no novíssimo Bairro do Avillez, o projecto mais ambicioso do chef até agora. Taberna, mercearia e restaurante convivem num espaço com 300 lugares onde, esteticamente, tudo fala de Portugal: o típico aquário borbulhante de marisqueira, os azulejos com quadras de tasca, a janela de imitação de uma casa tradicional. Desde a inauguração que tem estado consistentemente cheio. O chef está orgulhoso com o sucesso, mas confessa que a ambição não é a de ficar milionário. Quer crescer devagar. “A prioridade agora é consolidar”, diz Avillez.
É difícil de encontrar em Portugal uma marca tão forte no mundo da cozinha como a deste chef. O grupo José Avillez, que engloba todos os seus negócios, facturou em 2015 cerca de 9 milhões de euros. O troféu máximo na restauração de topo, as estrelas Michelin, já as conseguiu: um ano após ter assumido os comandos do mítico restaurante Tavares, em Lisboa, ganhou uma estrela. Mais tarde, já com o Belcanto, um projecto concebido de raiz pelo chef, conseguiu duas estrelas. Foi a primeira vez que um restaurante de Lisboa alcançou este feito. No seu bairro, o Chiado, no coração da capital, já tem seis restaurantes, todos com conceitos diferentes, a que ainda se junta uma lança no Porto, com o Cantinho do Avillez. “É um excelente profissional e um empreendedor”, diz Ana Arié, sócia-gerente do grupo José Avillez.
O crítico gastronómico Duarte Calvão, um dos autores do influente blogue “Mesa Marcada”, acompanha o percurso de Avillez desde o início. Apesar de à época não apostar grande coisa pelo futuro dele como chef – “achei que ele não iria aguentar o dia-a-dia duro da cozinha”, assume -, hoje reconhece que se enganou e que se deslumbra com as suas criações. “É muito difícil alguém não gostar de um prato de José Avillez”, diz. David Jesus, o seu braço direito na cozinha e nos negócios há largos anos, diz que “é uma pessoa de fácil trato”, acrescentando que “trabalha como se fossemos uma família”. E Maria de Lourdes Modesto, a decana da culinária tradicional portuguesa e uma das suas mentoras, considera-o “de grande qualidade profissional e sobretudo moral”. Chega inclusive a manifestar-se preocupada sabendo-o estar “sob grande pressão”.
Hoje, o chef está em todo o lado: já teve dois programas de televisão na SIC Mulher, tem, desde 2014, uma rubrica nas “Manhãs da Comercial”, o programa de rádio líder de audiência nessa franja horária. Publicou livros de receitas, dá entrevistas para diversos meios de comunicação de todos os espectros – quando a FORBES falou com o chef estava a terminar uma sessão para outra publicação nacional -, e é orador frequente em conferências. Jornais, revistas de todo o mundo, quando falam de Lisboa recomendam invariavelmente uma das suas criações. Foi um dos guias, até, do influente programa “No Reservations”, do canal norte-americano Travel Channel, aquando da visita do crítico Anthony Bourdain à capital. Contudo, até chegar ao patamar que ocupa hoje, teve de passar por um longo caminho de aprendizagem que começou não à frente do fogão, mas nos bancos da universidade.
Aprender com os melhores
Tinha 22 anos quando conheceu Maria de Lourdes Modesto. “Recebi-o, aceitei das suas mãos um belo ramo de flores e ouvi-o. Falámos cerca de duas horas”, conta Maria de Lourdes à FORBES. Já nessa altura, assegura, Avillez sabia muito bem o que queria. Ajudou-o na preparação da tese de conclusão de licenciatura de Comunicação Empresarial, no Instituto Superior de Comunicação Empresarial, em Lisboa, “dispondo-me a dar-lhe nomes de pessoas do meio gastronómico a entrevistar”, constata. Uma tese que lhe abriu muitas portas.
Foi através de Maria de Lourdes que Avillez teve a sua primeira prova numa cozinha profissional. Começou, em 2001, num restaurante exigente, a Fortaleza do Guincho, em Cascais. “Não tinha noção do que é que se passava lá e foi muito duro”, recorda o chef. A cozinha era liderada à época por Marc le Ouedec, um chef francês “muito autoritário”. Até então, a única experiência que tinha era cozinhar para família e amigos – e percebeu logo que a cozinha de casa não era a cozinha de um restaurante com uma estrela Michelin. “Passava dias inteiros só a pelar tomate ou a depenar patos”, lembra. Trabalhou 14 horas por dia durante seis meses, com “um grande rigor na confecção, alguns gritos, uns pratos pelo ar, um bocadinho de tudo para todos os gostos”, recorda.
Outra pessoa-chave na vida e formação de Avillez é José Bento dos Santos. O fundador da Quinta Monte d’Oiro foi um dos entrevistados por Avillez para a tese, recomendado por Maria de Lourdes. Bento dos Santos logo lhe reconheceu capacidade de trabalho e vontade de aprender o métier – e convidou-o, em 2002, para trabalhar com ele tanto na Quinta como numa cozinha de um “apartamento gastronómico” em Lisboa que utilizava para a apresentação de refeições a pequenos grupos. Não foi uma educação de banco de escola. Avillez recorda que aprendeu a apurar o gosto e a técnica, estudando os livros da biblioteca de Bento dos Santos e pondo as mãos na massa. “Aprendi a perceber o que era bom. Provei, se calhar, trufas pela primeira vez, bebi dos melhores vinhos do mundo com ele. Aprendi com ele a generosidade e a paixão pela arte culinária. Foi e é um grande mestre”, sublinha.
Da cozinha para a gestão
É incontornável falar de restaurantes de luxo sem falar da distinção máxima deste sector: as estrelas Michelin. O caminho de Avillez para chegar lá arrancou em 2007, quando voltou de um estágio de três meses no restaurante El Bulli, do chef Ferran Adrià. Tinha à sua espera um convite: liderar a cozinha do Tavares, em Lisboa, um dos restaurantes mais antigos do mundo – e em estado comatoso. Dois chefs tinham passado por lá antes e ficado muito pouco tempo – uma “trituradora”, diziam à época a Avillez. Contavam-se pelos dedos de uma mão os jantares servidos. A equipa estava desmotivada e pouco comprometida. O convite de um dos proprietários do Tavares representava “o primeiro projecto à séria”, assume. Mas não foi o primeiro. Antes disso, em 2004, Avillez tinha estado envolvido num projecto com o chef Ljubomir Stansic, o “100 Maneiras”, no Hotel Albatroz, em Cascais, do qual saiu depois de um ano e meio. Depois de uma temporada como consultor no Brasil, regressou em 2006 para apostar num negócio de take-away, o “JA em Casa”, que lhe deu algumas dores de cabeça – financeiramente não correu bem.
David Jesus foi dos primeiros a aceitar o desafio de Avillez, acabando por tornar-se no braço direito do chef no Tavares. Avillez contratou-o recomendado por terceiros – e a parceria dura até hoje. O esforço fez-se através da renovação da equipa – os que lamentavam o fim do statu quo foram-se embora -, de uma nova carta e de obras de reforço da estrutura. A verdade é que o reconhecimento chegou, um ano depois, com a atribuição de uma estrela Michelin. “Fomos para casa um bocadinho assustados porque achámos que no dia a seguir ainda íamos ter mais responsabilidades”, recorda David à FORBES por telefone. Três anos depois, saíram. A dada altura, com as dificuldades financeiras dos proprietários, a torneira começou a fechar-se e “cheguei ao ponto de começar a pagar do meu bolso os guardanapos e as toalhas de mesa para não estarem rotas”, diz Avillez.
Foi logo após a saída do Tavares, em 2011, que Avillez e David começaram a congeminar o novo Belcanto – um projecto que contou com o valioso apoio do grupo Arié que, em 2010, entrou no grupo José Avillez. Nesse ano, conduziram uma reestruturação da dívida contraída no negócio de take-away, repartida pelos anteriores sócios e pelo novo accionista. Avillez ficou a pagar a sua parte, na ordem das duas centenas de milhares de euros, durante cinco anos.
Ana Arié, directora comercial e sócia-gerente do grupo José Avillez, trabalhava à época numa empresa de eventos e conheceu o chef através do negócio de catering. “Colaborámos algumas vezes em alguns trabalhos e pareceu-me que seria interessante desenvolvermos um projecto em conjunto. Na altura, tinha a ideia de criar um negócio de entrega de tramezzini em escritórios – que não chegou a avançar”, conta. O que avançou foi a entrada do grupo da família de Ana – detentor da cadeia de perfumarias Perfumes & Companhia – nos negócios do cozinheiro de forma mais permanente. São hoje proprietários de 46% do grupo José Avillez.
Para construir o Belcanto, o chef levou grande parte da equipa do Tavares consigo. O objectivo era dar continuidade ao projecto iniciado, de uma revisitação da cozinha portuguesa. Com uma carta e decoração renovadas, o velho Belcanto (abriu pela primeira vez em 1958) reabriu em 2012 sob a batuta de David e Avillez, e o apoio da família Arié. A primeira estrela Michelin chegou logo, para dois anos mais tarde, em 2014, conseguir a segunda. Nunca um restaurante em Lisboa tinha conseguido tal feito. Diz o Guia do Bibendum que “o talentoso chef faz uma cozinha criativa, combinando capacidades técnicas com imaginação”. O valor médio de uma refeição oscila entre os 90 e os 145 euros por pessoa.
A qualidade paga-se. A marca Avillez também. Para potenciá-la, prevê continuar o “caminho que tem sido feito”, diz, no meio da grande sala do Bairro do Avillez, ainda vazia, sob o sol da manhã. Já pensaram em hotelaria, em restaurantes noutros bairros – “com marca própria, no Chiado, ficamos por aqui”, antecipa – ainda nada de concreto noutras linhas de negócio. E brinca: “Não estou a pensar lançar uma linha de underwear”.