Everything you can imagine is real. A frase de Picasso, que tatuou discretamente no braço e para a qual olha em momentos crucias, dá-lhe um je ne sais quoi de grandeza, de poder, de super-herói. Já fez marketing. Rádio e televisão. E já escreveu mais do que um livro. Ele é José Avillez. Pessoa, cozinheiro, pai e…marca. Um chef com formação em comunicação empresarial que só confia na sua ‘noção de equilíbrio’ para decidir se um prato vai ou não para um menu.
Porque tudo, ou quase tudo, se passa na sua cabeça. Desde o 100 maneiras, o seu primeiro restaurante, ao Grupo que dirige, uma gestão de faro apurada com aprendizagens valiosas pelo caminho. Como o estar sentado à mesa numa perspetiva de gastrónomo e não de cozinheiro, ensinada pelo mentor José Bento dos Santos. E com essa fórmula vai conquistando estrelas Michelin, agora mais uma, para o Encanto, o primeiro restaurante vegetariano português a conseguir uma estrela, seis meses depois da Tasca, no Dubai, receber também uma.
Esperava-nos à Porta do Bairro, sentado num degrau em plena rua Nova da Trindade, a morada que escolheu para o seu business center, o olhar algures perdido no telemóvel, o som acelerado das obras, a rua que ganhou forma para a esplanada e o convite à movida no Chiado. A foto perfeita para o Instagram do chef José Avillez. 264 mil seguidores. 43 anos.
O Grupo, que teve a sua génese numa ideia de take away de sandwiches para escritórios com Ana Arié, que partilha hoje a estrutura acionista com José Avillez, teve de fazer a digestão do medo pós-pandemia e reinventar o negócio sem descurar o core: “Gestão sem endividar para pagar custos presentes e futuros” foi o caminho que preconizou, sem nunca estarem parados, mais que não fosse pelas refeições solidárias.
Com a pandemia perdeu 30 a 40% dos seus trabalhadores, e já eram 500, espalhados pelos seis restaurantes que fecharam portas (dos mais de 20 que possui). Uma decisão difícil. Quem a tomou, o chef ou o ceo? José Avillez responde. “Eu baralho um bocadinho essas posições. O ceo, o chef, a pessoa. Estão todas numa só. A decisão foi tomada com base numa análise de espaços que consideramos serem os mais difíceis, por uma ou outra razão, de recuperar. Ou porque tinham rendas mais altas. Ou pela sua localização. Ou um EBITDA não tão bom ou porque sabíamos que, com menos estrangeiros, nesta fase não sobreviveriam. Nem todos tinham o mesmo racional, sendo que o racional era temos de salvar o grupo, os restaurantes que o movem, os que puxam a carroça”. A gestão de crise começa por não se baixar os braços e tentar ver para além do futuro incerto”.
Receita: 10% no fogão e 90% na cabeça
Mas, afinal, quem o ensinou a cozinhar? Não foi a mãe. O bichinho sempre esteve lá e foi apurado na cozinha da Laura, a senhora que trabalhava lá em casa. Porém , acima de tudo, assume-se um autodidata. Não tirou o curso de chef, mas antes o de comunicação empresarial e, por isso, aprende pondo a mão na massa. “É preciso ter-se comido bem para se conseguir ter memória de paladar que é talvez a arte mais importante de um cozinheiro. Criar pratos sem ter memória de paladar é uma coisa que diria quase impossível. É por isso que um compositor surdo depois de ter criado quando ouvia, consegue criar depois sem ouvir. Sabe exatamente ao que soa cada nota”. Fundamental também é o ok final e aí, santa paciência, a decisão é mesmo sua. Assim como a responsabilidade de passar o paladar, tal como uma música que pode ter várias interpretações, os pratos podem ser melhorados no dia a dia. Ou não. E, neste caso, está o caldo entornado. Grita como vemos nos programas de chefs? “Se eu crio receitas que são muito boas e pratos que combinam muito bem e depois nada é respeitado…grito no limite. E as pessoas assustam-se mesmo. É porque algo está mesmo mal”. Aconteceu há sete anos no Belcanto. Depois de uma semana complicada, o chef reuniu a equipa uma hora mais cedo na cozinha e “comecei a gritar. De repente vejo um japonês que foi meu subchefe a fechar os olhos e eu penso que ele está a dormir. Mas ele desmaia de nervos. Do outro lado, um chama chef e desmaia também. Um filme. E eu achei que estávamos com uma fuga de gaz e começo a gritar todos lá para fora. Foi um episódio marcante que dá para se perceber a tensão da alta cozinha. O melhor nunca é suficientemente bom e tem de ser sempre superado”.
José Avillez não cria na cozinha. O seu processo criativo passa por uma fórmula quase infalível: 10% em frente ao fogão e 90 na sua cabeça. “Envio ao David Jesus, o meu braço direito uma mensagem com as minhas ideias. Temos uma ou duas conversas e começa-se a testar. Afina-se cinco a dez por cento, há um prato que não funciona e que sai e os outros avançam”. Foi assim com o novo menu do Belcanto que considera “um dos seus melhores”. O seu calcanhar de Aquiles são as sobremesas, não é muito guloso confessa, por isso rodeia-se de quem sabe: Américo Santos, o chefe pasteleiro do Belcanto, e Ricardo Machado, do Bairro Avillez. Estes são os dez por cento em frente ao fogão. O lado prático. Os outros 90 é que são elas.
“Adoro criar. Associo a criatividade ao andar nas nuvens, ao voar, ao mundo do Peter Pan. É o mais perto que eu tenho de me sentir um super-herói”. Por isso cria nos aviões, entre nuvens, nas viagens mais longas onde o wifi até há bem pouco tempo não chegava. “Quando o avião aterra, ligo à minha mulher e conto-lhe que criei cadeias completas de restauração …e ela ri-se”.
Fusões sem preconceitos
“Inspiro-me muito na cultura portuguesa, na paisagem, nos poetas escritores, nos ingredientes. O andar por aí fez-me compreender a grandeza de Portugal. Fez me sentar no Líbano e ver uns tremoços em cima da mesa. Chegar à Tailândia e apreciar os fios de ovos iguais aos portugueses. Ver as influências que nós deixamos e as que trouxemos”, diz quando fala dos mundos que conhece, onde estagiou e por onde tem passado. “Levámos para a Ásia e para a América do Sul uma série de tradições e trouxemos outras. Receitas com a canja que não é mais do que a congee, sopa chinesa para os doentes e a moqueca capixaba que não é muito diferente na nossa caldeirada. Somos dos poucos países da Europa que acompanhamos um prato de proteínas com arroz branco, que é típico da América do Sul e da Ásia. Coentros só na cozinha portuguesa, Andaluzia e Ilhas Canárias…” Pratos e combinações que fazem o chef vibrar que recorda ainda que a palavra delicioso em chinês são dois caracteres que significa cabra e peixe. Traduzido por miúdos até poderia ser a nossa carne de porco à alentejana.
“Quanto mais se viaja, quanto mais mundo se tem e mais contacto com outras culturas apercebemo-nos também da riqueza da nossa gastronomia”. E entre o chilli, o caril, o leite de coco, as ervas frescas e as especiarias secas chegámos aos Descobrimentos para falar sobre o que se trouxe e o que se levou e, claro, sobre os temas do racismo que estão na ordem do dia. “Não podemos apagar a História. Sermos diferentes é a nossa riqueza em todos os sentidos. Os olhos de hoje não são os de há 400 anos, por isso o mais importante é, sempre, a defesa dos direitos humanos”. Recorda, a propósito, que foi a única vez que expulsou uma cliente precisamente porque foi racista com um empregado brasileiro por não saber escrever o seu nome. “É que nem sempre o cliente pode ter razão”, replica.
Estrelas para que vos quero
Uma estrela Michelin é igual a um Óscar? “Sim, mas com uma grande diferença: um Óscar é para a vida e a estrela pode ser retirada. Por isso há uma tensão maior. É importante do ponto de vista comercial e de posicionamento”. Mas para o ego tem de se relativizar o deslumbramento, diz José Avillez que recebeu a sua primeira aos 30 anos, com uma semana de diferença do nascimento de Francisco, o seu primogénito. Recebeu a notícia através de um telefonema do jornalista Eduardo Galvão, “parece que foi na outra vida, no Tavares. Depois voltámos a receber no Belcanto”. A verdade é que, ao final do dia, “temos de ser julgados pelo nosso carácter e não por estrelatos e isso consegue-se com valores transmitidos pela família”. Aproveitámos a deixa. A Wikipédia diz que é trisneto de condes. Sorri com humildade e explica que certa vez terminou uma entrevista quando lhe perguntaram se o facto de ter nascido num berço de ouro fez diferença. Não fez porque não nasceu num. “As pessoas não fazem ideia da minha vida. Graças a Deus, sempre tive o que comer e vestir. Mas cresci sem pai, a minha mãe doente, a minha avó a ver morrer os filhos, tudo com muitas incertezas e dor”.
Duas famílias, curiosamente, muito diferentes. O lado Ereira, conta, com “uma perspetiva mais divertida”. O trisavô teve o primeiro casino e ajudou a legalizar o jogo no país. O primeiro cabaret, o Maxime, criado em 1908 no Palácio Foz, um dos patrimónios mais bonitos da cidade, reunia jogo ilegal, prostituição e drogas.
“Eram agricultores de Coimbra que depois foram para o Cartaxo e daí para Cascais. Compra a Quinta da Bicuda que na altura se chamava a Quinta das Farinhas. Cascais não era Cascais. Era das poucas quintas autossuficientes em Portugal e onde se caçava muitas galinholas, pássaro de bico comprido. O rei Dom Carlos caçava com o meu bisavô e chamava-lhes as bicudinhas, daí o bisavô ter alterado o nome para Quinta da Bicuda”, como é hoje conhecida. Passaram por várias falências, os Ereiras, revela, já os Avillez são uma família mais tradicional portuguesa, “essa sim com ligações ao Conde d’Avillez, mas não de linha direta”, remata. E porque assim o é, nunca gostou que lhe chamassem chef, antes cozinheiro, mas já se habituou. “De qualquer forma e de preferência, tratem-me por Zé”.
E porque falámos em voar…
A internacionalização da marca surgiu um pouco por acaso. Há sete anos num memorável jantar no Belcanto que ficou na memória dos investidores, o Mandarim Oriental, grupo focado em resorts e hotéis de luxo, sede no Japão e um faturação na ordem dos 29 milhões USD.
“Pensando em grandes mercados internacionais como Londres, Hong Kong e Nova Iorque, projetar a marca num dos maiores grupos hoteleiros do mundo e conhecido por dar valor a chefs de renome, pareceu-nos um passo acertado”. Dubai foi o destino e o espaço tornou-se conhecido pelos seus famosos brunches às sextas-feiras.
Mas enquanto aguardamos, uma última pergunta, quase tão importante como tantas outras, “tem segredo para tudo, até para fazer uns simples ovos mexidos?”. Acenou com a cabeça e respondeu, tal como ao longo desta conversa, com gestos e com alma: “Derrete-se a manteiga ao mesmo tempo que se incorporam os ovos batidos na frigideira, envolvendo tudo, de forma a ficarem cremosos”. Quem sabe, sabe.
José Avillez foi capa da revista Forbes Portugal número 51.