Opinião

No suposto dilema entre competitividade e sustentabilidade, onde fica a resiliência climática?

Alice Khouri

A história do pensamento humano é repleta de dicotomias. A separação de alguma ideia em duas partes que se opõem, e a crença na existência de princípios opostos a todo assunto é natural na forma de organização do pensamento humano, pelo que estamos acostumados com dicotomias e maniqueísmos.

A recente discussão no cenário europeu sobre a flexibilização das exigências ligadas à sustentabilidade corporativa, traduzida na proposta do Omnibus, introduz uma dicotomia um tanto quanto perigosa: competitividade x sustentabilidade.

Para além da simplicidade sugerida pelo pensamento binário – que não é de todo compatível com a complexidade e gravidade científica do cenário de alterações climáticas vivenciado – a oposição forjada entre competitividade e sustentabilidade esquece e tira do foco um ponto essencial: a inafastável resiliência para que as empresas sobrevivam em um cenário que será, inevitavelmente, de escassez de recursos, transformações sociais, tensões geopolíticas, e com uma boa pitada de eventos climáticos extremos. Resiliência esta que, necessariamente, implica em revisitar a governança para mapear e integrar na estratégia das empresas o impacto por elas causado (nas pessoas e no planeta) e por elas sofrido, de forma a permitir a gestão deste: minimizando riscos e otimizando eventuais oportunidades.

A questão se volta para a forma de construir essa resiliência. E a empresa resiliente não é a que escolhe entre lucro e planeta. É a que entende que não haverá lucro ou atividade em planeta inviável em termos de recursos.

O relatório de aspetos E,S e G, coroado na CSRD agora em processo de simplificação, é uma das formas que se criou para esta finalidade de gestão do impacto e recursos. Mais do que promoção da sustentabilidade ou de práticas sustentáveis corporativas, o objetivo do relatório é ser ferramenta eficiente de conhecimento, quantificação, monitorização e gestão do impacto em seus mais variados indicadores. Trata-se, portanto, de uma ferramenta para o tecido empresarial implementar o racional da resiliência em tempos de tantas mudanças, escassez e condicionantes ambientais. Mais do que ajudar “o clima”, os relatórios são para ajudar as empresas na jornada. Por isso, associar ele à sustentabilidade na dicotomia competitividade x sustentabilidade é um erro.

A proposta da Comissão Europeia — apelidada de “Omnibus” — que visa flexibilizar prazos e obrigações da Diretiva de Relato de Sustentabilidade Corporativa (CSRD), reacende um debate enviesado. Reduzir sustentabilidade a um obstáculo à competitividade não apenas distorce a natureza das obrigações ESG, como também compromete a capacidade adaptativa das empresas num cenário inevitavelmente marcado por escassez de recursos, crises geopolíticas e eventos climáticos extremos.

Enquanto as empresas continuam a operar em mercados globalizados e voláteis, a verdadeira vantagem competitiva não virá da simplificação regulatória, mas da capacidade de construir resiliência integrada à estratégia corporativa, adaptada. Como afirma o Fórum Econômico Mundial, os riscos climáticos são, há anos, os mais prováveis e com maior impacto nos negócios globais (WEF, 2023).

Entre os discursos de competitividade que se opõe às obrigações da sustentabilidade corporativa deve haver uma preocupação comum, posto que deriva de exigências factuais dos novos tempos: preocupação com a resiliência, com a governança que não se furte à transparência e quantificação de impacto que a contenção do cenário de aquecimento global exige.

O ESG nunca foi sobre ideologia: trata-se de gestão de riscos e oportunidades em mercados sob pressão ambiental e social. A CSRD não é mais um entrave burocrático, oferece uma estrutura objetiva de relato para quantificar e monitorizar externalidades — algo essencial para preservar valor no longo prazo. Uma estrutura que pode e dever sofrer aprimoramento, esclarecimento e simplificação onde couber, mas importante lembrarmos que não é uma ferramenta em prol da sustentabilidade em detrimento do negócio.

Muito além de discussões ideológicas e de políticas económicas, o cerne da preocupação com a sustentabilidade contém algo muito mais sensível a nós, enquanto sociedade, do que à própria natureza: a sobrevivência em tempos de mudanças climáticas extremas, não só humana, mas do sistema que elegemos para gerar riqueza e promover o desenvolvimento económico social, e que depende de recursos cuja disponibilidade está mais e mais ameaçada.

Gostemos ou não, a verdade é que a mudança do paradigma corporativo para incluir aspetos de sustentabilidade na estratégia empresarial (com preocupação de aumento do impacto positivo e redução do impacto negativo) não veio de forma orgânica, não obstante os diversos alertas da ciência. Por essa razão, apostou-se em uma avalanche regulatória de obrigações relacionada ao escrutínio da governança empresarial e dever de prestação de contas dos números e progressos relacionados aos indicadores de impacto ambiental e social.

Mas seria a desregulação do tema o único caminho ideal entre a preocupação climática e económica?

Não se trata agora de uma escolha binária. Até porque diante de um desafio complexo, a resposta certamente não seria tão simples como um caminho A ou B. Existe um meio-termo que dá às empresas mais pequenas espaço para respirar, mantendo a coerência regulatória que sinaliza a urgência da adaptação da governança empresarial. Por exemplo, de acordo com as recomendações do Comité Consultivo para o Financiamento Sustentável, em vez de adiar a apresentação de relatórios, uma abordagem mais equilibrada consistiria em adiar as sanções e a aplicação da legislação até que as incertezas jurídicas sejam resolvidas.

No fundo, o que está em jogo não é apenas a competitividade das empresas ou a sobrevivência de um modelo regulatório. É a viabilidade de todo um sistema econômico que depende de recursos naturais finitos.

O pensamento dicotómico é natural no humano. Mas também deveria ser natural o senso de sobrevivência, e aqui não estamos falando da natureza, que se adaptará independente da espécie humana, dado que ela existe há mais de 15 mil vezes mais tempo do que a humanidade. Ela certamente vai continuar a evoluir para existir. E nós?

Alice Khouri, 
Head of Legal na Helexia
Founder Women in ESG Portugal

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