Como define o clima de empreendedorismo em Portugal? Portugal é um país de empreendedores ou não?
Nas duas últimas décadas, assistimos a um extraordinário desenvolvimento do ecossistema empreendedor português. O país dispõe atualmente uma moderna rede de incubadoras, bons programas de aceleração, talento com mentalidade empreendedora, universidades com predisposição para a inovação e centros de I&D capazes de desenvolver novos produtos e tecnologias.
Por outro lado, há mais investidores internacionais interessados no nosso ecossistema empreendedor. Empresas inovadoras em áreas de ponta, como a internet das coisas, o big data, a realidade virtual ou aumentada, o blockchain ou a cibersegurança, por exemplo, são ativos procurados por investidores internacionais. E também em áreas menos high-tech, como a biomedicina, os materiais, o mar ou as energias, encontramos em Portugal empresas com potencial de valorização.
Não é, por isso, de estranhar que haja sete unicórnios de origem portuguesa (avaliados em mais de 36 mil milhões de euros) e 2.236 startups e 165 incubadoras e aceleradoras a funcionar no país. Há hubs de inovação de Lisboa ao Porto, passando por Aveiro, Braga, Coimbra, Fundão, Évora, Portalegre ou Loulé, entre outras cidades. Por outro lado, em Portugal realizam-se vários eventos de promoção do empreendedorismo, como a Web Summit ou a Feira do Empreendedor da ANJE, e existem múltiplos apoios à criação de negócios inovadores, como o Portugal Tech, o Tech Visa, o Startup Visa e o Startup Voucher, por exemplo.
Por fim, importa assinalar o crescente interesse de empresas multinacionais em instalarem em Portugal os seus centros de competências. Nos últimos anos, o nosso país acolheu os hubs tecnológicos de várias empresas internacionais.
“Há mais investidores internacionais interessados no nosso ecossistema empreendedor”
Como se caracteriza o perfil do empreendedor português?
Em Portugal, ainda predominam os pequenos negócios e serviços de proximidade, muitas vezes motivados pela dificuldade de integração no mercado laboral. Trata-se, neste caso, de iniciativas desenvolvidas, sobretudo, por empresários pouco qualificados, sem a ambição de serem inovadores ou de internacionalizarem as suas atividades.
Paralelamente, verifica-se a emergência de empreendedores mais qualificados, que criam startups baseadas no conhecimento e com grande intensidade de inovação. Por terem mais qualificações científicas, mais competências digitais, maior espírito cosmopolita e menor aversão ao risco, estes empreendedores estão a dinamizar o tecido empresarial com modelos de negócio baseados em tecnologias disruptivas e a apostar na internacionalização das suas empresas. Coexistem, portanto, dois perfis de empreendedores muito distintos, cujas diferenças resultam, em grande medida, do nível de qualificação e da apetência pela inovação.
Quais são ainda os maiores entraves ao desenvolvimento de uma verdadeira cultura empreendedora? O acesso ao financiamento ainda é o principal?
Apesar do muito que foi feito nos últimos anos para criar um ambiente favorável ao empreendedorismo, há ainda questões a melhorar em várias áreas. Desde logo na burocracia, que continua a ser um dos principais entraves a quem pretende criar, comprar ou fundir empresas, expandir ou diversificar negócios, exportar e internacionalizar atividades, estabelecer relações com centros de conhecimento e materializar inovações em novos produtos e serviços.
Há também margem para aprofundar a relação entre o sistema científico e tecnológico e o meio empresarial, nomeadamente eliminando obstáculos legais à participação de docentes e investigadores em projetos de inovação nas empresas, facilitando o estabelecimento de contratos-programa de I&D entre empresas e a academia e promovendo a inserção de empresas em plataformas tecnológicas e em redes de infraestruturas transnacionais de excelência.
Mas o grande desafio parece ser, de facto, o financiamento. Um dos principais problemas do nosso ecossistema empreendedor é, sem dúvida, a falta de investidores com interesse nas startups e que compreendam a sua dinâmica própria. Por isso, as fontes alternativas ao crédito bancário tradicional, como o capital de risco ou o smart money, não se encontram ainda suficientemente desenvolvidas em Portugal.
“O grande desafio do empreendedorismo ainda é o financiamento”
O que poderia ou deveria ser feito no país para melhorar esta cultura?
Desde logo, a introdução de conteúdos de empreendedorismo nos currículos escolares, de forma a transmitir aos jovens valores, competências e ferramentas que lhes permitam desenvolver uma maior predisposição para a iniciativa.
Há também muito a fazer para criar um ambiente mais favorável ao empreendedorismo, principalmente ao nível burocrático, simplificando os procedimentos administrativos que envolvem as startups, e ao nível fiscal, de forma a não penalizar o desenvolvimento de projetos empresariais e a atrair talento.
Por fim, o crédito bancário para as startups é limitado e caro, uma vez que os negócios early stage têm maior perceção de risco. Há, por isso, que desenvolver instrumentos alternativos de alavancagem, que não só substituam o tradicional crédito bancário como sejam adequados aos desafios do empreendedorismo. É importante que as empresas em fases iniciais de desenvolvimento ou em processos de scaleup obtenham financiamento e, ao mesmo tempo, usufruam da experiência financeira, conhecimento empresarial, visão estratégica e relações com o mercado dos investidores e business angels.
De que forma a ANJE incentiva o empreendedorismo?
A ANJE disponibiliza aos empreendedores um vasto conjunto de apoios à criação e expansão de empresas. Falamos de informação especializada; consultoria empresarial; formação multidisciplinar; sessões de pitch e rondas de investimento (com investidores nacionais e internacionais); programas de aceleração e mentoria (com mentores nacionais e internacionais); networking; serviços de incubação em 10 centros empresariais; acompanhamento de atividades de inovação; apoios ao nível da gestão e do marketing; iniciativas de valorização do empreendedorismo jovem; e ações de promoção da internacionalização.
Para além do apoio à criação, desenvolvimento e consolidação de startups inovadoras, a nossa associação tem concentrado muito do seu know-how e recursos na promoção da subida na cadeia de valor e na transição digital dos setores tradicionais. Neste pressuposto, a ANJE tem funcionado quer como um agente de mudança do modelo de desenvolvimento dos setores tradicionais, quer como um ecossistema empreendedor de referência para startups inovadoras.
Como combater a aversão ao risco e o medo de falhar que ainda se sente na mentalidade portuguesa?
A sociedade portuguesa necessita de desdramatizar o fracasso nos negócios, passar a assumir o erro de forma descomplexada e deixar de estigmatizar quem falha. Ora, isto apenas sucederá com um ensino que transmita uma cultura empreendedora, em que o risco é encarado com naturalidade e sem temores paralisantes. Só assim, reconhecendo que o erro é parte da aprendizagem, formaremos mais empresários, industriais e empreendedores de sucesso.
Importa perceber que a atividade empresarial implica, necessariamente, uma boa dose de risco. Há variadíssimos exemplos de ideias de negócio que se pensaria condenadas ao fracasso, mas que resultaram e outras que, parecendo fadadas ao êxito, não foram bem-sucedidas. Não existem, de facto, fórmulas mágicas para o sucesso nos negócios e, por conseguinte, o empresário está mais suscetível ao erro.
Mas não tenho dúvidas de que o espírito empreendedor e a cultura de risco empresarial estão mais presentes nas novas gerações. Deixou de ser invulgar os nossos jovens, após concluírem os seus estudos (ou mesmo durante os cursos), fundarem empresas a partir do conhecimento adquirido no ensino superior, em vez de procurarem emprego por conta de outrem.
“Importa perceber que a atividade empresarial implica, necessariamente, uma boa dose de risco”
Como vê o futuro do empreendedorismo em Portugal? Qual a sua maior ambição para esta área?
O movimento startup nacionalestá a evoluir no sentido de uma maior intensidade de inovação, de uma maior qualificação humana, de uma maior criação de valor acrescentado, de uma maior orientação global e de uma maior capacidade de atração de capital (nacional e estrangeiro).
Existem, de resto, boas perspectivas de crescimento do empreendedorismo inovador. Diversos estudos revelam uma crescente apetência dos jovens mais qualificados pelo empreendedorismo, que passou a ser entendido como uma boa opção de carreira. Acresce que os ecossistemas empreendedores registaram uma notável subida do número de startups inovadoras, de spin-offs universitários e de projetos de inovação. A somar a tudo isto, há uma maior intensidade na transferência de conhecimento da academia para o tecido empresarial, através justamente de projetos de empreendedorismo.
“Existem boas perspectivas de crescimento do empreendedorismo inovador”
A ambição da ANJE é que diminua a taxa de mortalidade das startups. Em Portugal, cerca de uma em cada três startups (32%) encerra ao fim de um ano. E só 42% destas empresas atinge a idade adulta (cinco anos), segundo a Informa D&B. De facto, um dos grandes problemas do nosso ecossistema empreendedor é a morte prematura de startups, situação que impede o país de beneficiar do potencial de riqueza, emprego e exportações de muitas empresas, designadamente tecnológicas. Interessa que as startups tecnológicas, não só sobrevivam aos difíceis primeiros anos de atividade, como evoluam para estádios mais elevados de desenvolvimento. Ou seja, que se tornem competitivas e economicamente sustentáveis.
Para isso, há que melhorar o ambiente empresarial. A taxa de mortalidade pode ser diminuída com um quadro fiscal menos pesado para os novos negócios e mecanismos de financiamento mais adequados a projetos early stage.
Acresce que muitas startups desenvolvem produtos e soluções inovadores, mas falham ao entrar no mercado. Por conseguinte, há que apoiar com formação e mentoria os jovens empreendedores que não têm competências de gestão nem experiência empresarial.