“Era religioso às 7h da tarde estar em frente à televisão”, diz Margarida Corceiro.
Até para os menos crentes, não é difícil concordar com esta frase. O ano era 2003 – ou os nove anos seguintes –, e a série que colava o país à televisão sempre no mesmo horário era Morangos com Açúcar. Avançando até 2023, a TVI decidiu relançar a série, mas, porque os tempos assim o exigem, com mais um topping: O selo internacional da plataforma de streaming Amazon Prime Video.
“Quando lançamos um produto como os Morangos com Açúcar, sabemos que vamos sacudir o mercado. Porque ninguém teve o atrevimento de fazer uma coisa do género. É um risco? É, mas, se não tivermos coragem de correr riscos, não estamos cá a fazer nada, estamos só a assistir ao declínio da televisão”, afirma José Eduardo Moniz, diretor-geral da TVI.
Trata-se de um reboot da série mais famosa da televisão portuguesa. Com três temporadas já confirmadas para outubro de 2023, o início de 2024 e o verão do mesmo ano, cada uma com cerca de 10 episódios, estes Morangos são um misto de nostalgia, por tudo aquilo que representam, e de frescura, por tudo de novo o que apresentam. “Um reboot é no fundo mostrar como é que esta série está 20 anos depois [da estreia], como estão as personagens, e criar todo um novo enredo, capaz de cativar não só quem gostou na altura como públicos mais novos que só mais tarde tiveram contacto com os Morangos”, diz Piet-Hein Bakker, diretor executivo da See My Dreams.
A mesma série, mas diferente
Se em teoria uma série com poucos episódios seria mais fácil de fazer do que uma produção com um episódio para cada dia do ano, na prática as coisas não funcionam assim. “Há aquele provérbio português que diz ‘tempo é dinheiro’. Na indústria audiovisual, isso é levado ao extremo”, admite Sérgio Baptista, diretor de produção.
“Nesta série, nós optámos por um nível de realismo máximo que é trabalhar em décors naturais, o que por sua vez implica fazer menos minutos por dia. O que é chave no custo da ficção é o número de minutos que conseguimos filmar por dia. Enquanto no estúdio, trabalhando às vezes com duas equipas ao mesmo tempo, conseguimos sair de um dia de gravações com 60 ou 70 minutos, numa série só faremos 11 ou 12. Para conseguir isso é preciso um orçamento maior por episódio. Posso, no geral, dizer que se calhar é quase três vezes aquilo que é o habitual”, afirma Piet-Hein.
Mas há mais diferenças. “Aqui estamos a filmar, e naquela altura nós estávamos a gravar”, diz Rita Pereira, que deu vida a Soraia na segunda temporada dos Morangos com Açúcar. Quem também entrou no mesmo ano foi Tiago Castro, que fez de Crómio, e que realça a mudança nas próprias ferramentas de trabalho que os técnicos têm à disposição, o que leva a uma “realização, produção, guionismo, fotografia, som, figurinos, cabelos e makeup de excelência”.
Por fim, Sérgio conta que, ao contrário de uma novela, a equipa partiu para a produção desta série “já com todos os guiões escritos” e os exteriores organizados. Ou seja, com a história terminada logo ao início, é possível organizar as cenas por lugar. Foram gravadas todas as cenas na praia, depois as do colégio, e sempre neste modelo.
Trabalho de equipa
A colaboração entre a TVI, a Prime Video e a See My Dreams correu sempre da melhor forma, com todos os lados a destacar o bom ambiente e entendimento. Para os que não percebem como é que um canal e uma plataforma de streaming transmitem o mesmo produto ao mesmo tempo, a divisão foi simples: A Prime Video disponibiliza logo os 10 episódios no momento da estreia de cada temporada, e a TVI vai transmitir um episódio por semana.
“Nós não somos hoje concorrentes apenas da SIC ou da RTP, nós somos concorrentes de muitas outras janelas de transmissão que existem no mundo. Se formos concorrentes de nós próprios, também não é assim tão mau como isso. Prefiro que sejamos concorrentes de nós próprios a sermos concorrentes de terceiros. É a velha estratégia: ou te juntas a eles, ou morres sozinho”, diz José Eduardo, que vê nesta parceira uma forma de o canal acompanhar as novas tendências de consumo.
Esta parceria faz parte de um dos objetivos que a Prime Video tem traçados: “Neste caso, a Prime Video cobre parte do custo da produção, adquirindo direitos de distribuição exclusivos, mas não a totalidade do projeto. A equipa de aquisição de conteúdos da Prime Video, que eu dirijo, procura constantemente novas formas de abordar as parcerias com as diferentes estações televisivas, com o objetivo de continuar a proporcionar a melhor oferta possível aos nossos clientes”, conta Ricardo Cabornero, diretor de conteúdos da Prime Video Portugal e Espanha.
MEMÓRIA
“Foi a temporada de maior sucesso”
Alguns dos atores da série conhecem-na como ninguém. São os mesmos que nasceram como profissionais com ela e fizeram dela o sucesso que todos conheceram. Quando questionada sobre o porquê de terem sido os da temporada dois os escolhidos para regressar, Rita Pereira não teve dúvidas: “Porque foi a de maior sucesso, sem dúvida.” Com Soraia está também, entre outros, o Crómio. “Acho que foi muito bem conseguido porque vejo em muitos momentos aquela revolta da Soraia, principalmente nas cenas que tenho com o Tiago Castro, aí, sim, é a essência da Soraia, ali nós fizemos questão de vir a Soraia com 20 anos até à série”, afirma. Regressam não só para fazer a ponte para o passado, ou para atraírem o público através da nostalgia, mas também como prova de que esta série abre um leque de oportunidades aos atores. E a história continua a repetir-se: “Sem querer criar expectativas, posso já dizer que mesmo sem estrear já me abriu outras portas dentro do mundo da representação muito interessantes e que me deixam muito feliz”, conta Tiago.
NOVIDADE
“O casting podia ser uma coisa muito importante”
Além do regresso dos atores da segunda temporada, a série vai contar também com a nova geração Morangos. São estes o núcleo de protagonistas, com Madalena Aragão e Vicente Gil em destaque. Uns, já com alguma experiência na área, chegaram aos castings através de propostas das suas agências ou por convite, mas houve ainda um casting aberto para jovens com menos de 23 anos. Mafalda Peres foi uma dessas pessoas. “Sabia que o casting dos Morangos podia ser uma coisa muito importante. Apesar de ter muita intenção de ir, não tinha expectativas nenhumas porque era muita gente”, conta a atriz. Nesse dia passou por duas fases, e duas semanas depois foi chamada para um novo casting. Nesse, por onde passaram também os outros atores, voltaram a apresentar-se duas vezes: primeiro um texto geral e depois para cada personagem em específico. “Aí ainda menos expectativa tinha porque estava a ver atores que conhecia. Passados três dias ligaram a dizer que tinha ficado”, diz. Mafalda tinha uma oportunidade, um ano para vingar na representação ou voltar para o curso anterior. Aqui, os Morangos voltam a fazer o que sempre fizeram melhor: Lançar novos atores.
ATUALIDADE
“Que é real, acima de tudo”
Devido aos temas que a série aborda. Desde o consumo de drogas ao bullying, à homossexualidade, à identidade não binária ou às redes sociais. O objetivo é que os jovens se identifiquem com as personagens. O ator Rui Pedro Silva descreve-a como uma série “que é muito atual e que é real, acima de tudo”. E Tomás Taborda acrescenta: “Sinto que estamos a apresentar pessoas que todos nós conhecemos. Qualquer uma das personagens vai ser importante para ajudar a desconstruir pensamentos e normas que estão impostas pela sociedade.” E essas realidades têm de ecoar em várias geografias. “Para que qualquer espetador, com uma outra realidade, em outro país, possa identificar automaticamente o que estamos a contar”, diz Sérgio.
TALENTO
“A parte da criatividade e da imaginação”
Na chegada para as gravações, os atores já estão com as cenas decoradas e preparadas. O primeiro passo é a roupa, maquilhagem e cabelo. Já em personagem, é hora de gravar. “A rotina é muito esta, mas muda sempre porque são novos sítios, novos textos, novas cenas. E apesar de ser rotineiro é uma rotina com muita agitação”, confessa Vicente. Mas, para chegar a este momento, o grupo passou por um mês e meio de ensaios com Francisco Antunez (realizador) e Marco Medeiros (diretor de atores). “Acho que, na maior parte das personagens, é uma coisa difícil tentar descobrir a essência da pessoa porque, quando começas a ler uma série, já estás a meio da vida dela. Eu apanho a Olivia quando ela tem 17 anos, não sei como era a vida dela aos seis, nem quando tinha os pais, quando os perdeu. Essa é das partes mais frustrantes de criar uma personagem, mas a mais prazerosa. A parte da criatividade e da imaginação”, diz Madalena Aragão. E porque são eles que lhes dão vida, os atores tiveram também liberdade para ajudar a construir as suas personagens. “Se há uma coisa neste projeto, é liberdade. Não é só o que está escrito e não é só a descrição que te deram no início. A piada aqui é mesmo essa, é tu criares a partir de ti”, afirma Rui Pedro.
RESPONSABILIDADE
“É um grande desafio”
Uma coisa com a qual todos concordam é que este é um grupo de trabalho unido. “Fiz três novelas onde o elenco era muito adulto, e aqui é muito diferente, parece que venho ter com amigos da minha idade”, conta Margarida. Mas há uma divisão que, do lado de fora, é impossível não ver. A que coloca as antigas personagens de um lado e as novos do outro, as que vão atrair os espectadores movidos pela nostalgia de rever uma história antiga e as que chamam os que estão motivados pelo lançamento de algo novo. Já a responsabilidade e a pressão, essas são partilhadas por todos. “Sinto pressão porque não quero desiludir, quero que as pessoas vejam a Soraia. Isso é um grande desafio, muito mais difícil do que criar uma personagem de raiz”, admite Rita. “A pressão e a responsabilidade são maiores, também por ser um projeto de larga escala no nosso país”, confessa Vicente. No caso de Rui Pedro, tendo em conta a visibilidade que poderão ter, a responsabilidade passa também pela preparação: “Acho que das primeiras coisas que vou fazer é procurar ajuda com a minha base. Vou defender-me muito porque sei, de ver de fora, como pode afetar uma pessoa.”
(Artigo publicado na edição de outubro/novembro da Forbes Portugal)