Montenegro enreda-se nos auriculares ao soprar críticas a jornalistas

[atualizado às 16,55h de 9/10/2024, com a posição do Conselho de Redação da RTP] A conferência sobre “O futuro dos media”, esta terça-feira, em Lisboa, serviu para olhar para o atual estado do jornalismo e deu ao Governo o palco para apresentar um Plano de Ação para a Comunicação Social de 30 medidas de ação…
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Sindicato dos Jornalistas diz que Plano de Ação para a Comunicação Social “é curto” para a emergência do setor. E reage a Luís Montenegro, explicando por que motivo usam os repórteres auriculares.
Economia

[atualizado às 16,55h de 9/10/2024, com a posição do Conselho de Redação da RTP]

A conferência sobre “O futuro dos media”, esta terça-feira, em Lisboa, serviu para olhar para o atual estado do jornalismo e deu ao Governo o palco para apresentar um Plano de Ação para a Comunicação Social de 30 medidas de ação para este setor (do qual demos ênfase aqui). O objetivo do Executivo era transmitir uma estratégica que valorizasse a comunicação social, mas acabou enredado em polémicas, algumas motivadas por declarações produzidas pelo próprio Primeiro-Ministro, presente no evento.

Plano “é curto”

O Sindicato dos Jornalistas admite que o projeto tem medidas que podem ser benéficas, mas entende que “é curto” para a emergência que o setor vive, apontou.

Entre as medidas anunciadas que mais merece reparos é o fim da publicidade na RTP e o programa de saídas voluntárias que será implementado na estação pública, que poderá abranger um máximo de 250 pessoas.

Para o Sindicato dos Jornalistas isto é o desmantelamento da RTP, “sob a capa” do serviço público, ao prever o corte da publicidade até 2027 e despedimentos, “com o eufemismo de saídas voluntárias”, pois será contratada apenas uma nova pessoa por cada duas que saírem.

Para o Conselho Deontológico do Sindicato, um órgão autónomo do sindicato, uma “redução para metade do número de efetivos da RTP não favorece as boas práticas do jornalismo, porque estas exigem tempo, pesquisa e reflexão”. Além do mais, o Conselho Deontológico do Sindicato alerta para os riscos de degradação das condições e horários de trabalho que podem advir do anunciado plano de saídas voluntárias na RTP.

O presidente da RTP já defendeu, também, que o fim da publicidade para a estação pública “significa perda de relevância” da empresa e recordou que esta muitas vezes serviu de estabilizador do mercado publicitário.

Em sintonia com esta opinião, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas vinca que “o anunciado fim da publicidade no canal público não vai favorecer o trabalho de reportagem nem a sobrevivência de delegações fora dos grandes centros urbanos, nos países de expressão de portuguesa ou naqueles onde existem comunidades lusófonas que merecem ser objeto do olhar do serviço público de jornalismo”.

Será o desmantelamento da RTP sob a capa do serviço público, diz Sindicato. Perda de relevância da empresa, afirma presidente da estação pública.

No tocante a outras medidas, o Governo anunciou a atribuição, mediante candidatura, de um montante entregue às empresas pela contratação de mais jornalistas com vínculo sem termo, com uma retribuição mínima obrigatória de 1.120 euros.

“Sendo claramente a favor da remuneração de qualquer trabalho e do aumento expressivo dos salários dos jornalistas, o SJ não pode deixar de notar que o vencimento proposto para um estagiário da IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional] é superior ao salário pago a muitos jornalistas em várias redações deste país”, acrescentou o Sindicato.

Apesar de saudar as proposta referentes à comparticipação das assinaturas digitais e de ofertas aos alunos, o Sindicato dos Jornalistas pretende, ao mesmo tempo, um plano de literacia generalizado e acompanhado “de uma grande campanha de publicidade e de divulgação da importância do jornalismo”.

Declarações desinformadas de Montenegro

Perante uma plateia com muitos presidentes de empresas de órgãos de comunicação social nacionais e de dezenas de jornalistas, Luís Montenegro, Primeiro-Ministro, elogiou nesta conferência o papel dos media na sociedade, mas não resistiu a falar de alguns aspetos que, segundo as suas palavras, mais o impressionam na atividade jornalística, facto que gerou polémica.

Na intervenção com cerca de 30 minutos, feita de improviso, na abertura da conferência sobre “O futuro dos media”, Montenegro fez várias apreciações sobre a atividade jornalística, começando por observar que “é tão importante ter bons políticos como bons jornalistas para que a democracia funcione”.

Nesse sentido, o líder do executivo considerou que seria melhor se a comunicação social fosse “mais tranquila na forma como informa, na forma como transmite os acontecimentos e não tão ofegante”.

Ofegante, “às vezes, de uma notícia que parece que é de vida ou de morte, quando afinal as coisas estão a funcionar, quando afinal é preciso saber que em cada momento nós estamos a discutir um determinado assunto”, completou.

Apontou, como exemplo, as vezes em que os jornalistas o tentam “apanhar à porta de um evento, ou à saída de um evento”, para lhe perguntarem “se o PS já respondeu ou não sei o quê, ou se eu já respondi ao PS”.

O primeiro-ministro disse então que se hoje, nesta conferência, falasse sobre as negociações do Orçamento com o PS, à entrada ou à saída do evento, “a probabilidade de a informação privilegiar o que dissera sobre o setor dos media era baixa”.

Na parte final da sua intervenção, o líder do executivo abordou a questão sobre a valorização da carreira do jornalista, mas com críticas em relação ao desempenho de alguns profissionais deste setor.

“Vou fazer aqui esta pequena provocação, não é para criticar ninguém em especial. É só para verem como é que eu, do lado cá, que também é a minha obrigação, me impressionam, seja pela positiva, seja pela negativa”, advertiu.

A seguir foi direto ao assunto: “Uma das coisas que mais me impressiona hoje, quero dizer-vos aqui olhos nos olhos, é estar com seis ou sete câmaras à minha frente e ter os jornalistas a fazerem-me perguntas sobre determinado acontecimento e ver que a maior parte deles tem um auricular no qual lhe estão a soprar a pergunta que devem fazer. E outros à minha frente pegam no telefone e fazem a pergunta que já estava previamente feita”, declarou.

Como agente político e como cidadão, segundo Luís Montenegro, olha para esse quadro e conclui: “Assim, os senhores jornalistas não estão a valorizar a sua própria profissão, porque parece que está tudo teleguiado, está tudo predeterminado”.

“Na minha opinião isso não valoriza o jornalista, nem valoriza o jornalismo. Deixo-vos este relato, que é a minha opinião. Não pretende ser mais do que isso. É uma forma de vos dizer que as garantias do exercício livre do jornalismo têm a colaboração de todos, e este esquema, francamente, não é o que valoriza mais a função, porque para isso não é preciso ser jornalista”, advogou.

E Luís Montenegro rematou: “Para fazer a pergunta com o outro só para o ouvido, ou para ler a pergunta que está num SMS do telefone, sinceramente não é uma especial qualificação”.

O primeiro-ministro, Luís Montenegro, afirmou que pretende em Portugal um jornalismo livre, sem intromissão de poderes, sustentável do ponto de vista financeiro, mas mais tranquilo, menos ofegante, com garantias de qualidade e sem perguntas sopradas.

O Sindicato dos Jornalistas considerou serem “infelizes e desinformadas” as críticas do primeiro-ministro ao jornalismo e aos jornalistas, vincando que estas contribuem para um clima de suspeição.

O ministro dos Assuntos Parlamentares, Pedro Duarte, tentou por “paninhos quentes” na polémica, referindo que estas afirmações devem ser interpretadas “no sentido positivo” da valorização destes profissionais.

Porém, para o Sindicato, estas declarações “em nada dignificam a profissão”, contribuindo antes para um clima de suspeição, que o SJ lamentou e rejeitou.

“Tais palavras tornam-se ainda mais incompreensíveis porque geram desconfiança sobre o trabalho dos jornalistas e minam a credibilidade dos órgãos de comunicação social”, vincou.

“Numa fase em que o Governo diz que pretende valorizar o setor, o SJ considera infelizes e desinformadas as criticas do primeiro-ministro ao jornalismo e ao trabalho dos jornalistas”, acusa, em comunicado, a estrutura sindical.

Montenegro revela plano “curto” e enreda-se em polémica. Foto: Diana Quintela/Portal do Governo

O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas também se pronunciou sobre as declarações de Montenegro, apontando que o setor “é intranquilo porque questiona, interroga, investiga, reflete, relata, comunica e interage com os destinatários”.

“Quem escolheu esta profissão tem disponibilidade e dedicação aos deveres do jornalismo, e o termo ‘ofegante’ – usado pelo senhor primeiro-ministro – não retrata o importante contributo desta classe profissional para a construção do Portugal democrático, nos últimos 50 anos”, frisou o Conselho Deontológico do sindicato, em comunicado.

“Se a reflexão e a serenidade são aliadas do jornalismo, a intranquilidade e a urgência também o são, e foram determinantes para muitos exercerem esta profissão no tempo da ditadura do Estado Novo”, sublinhou o Conselho Deontológico.

Este órgão autónomo do Sindicato dos Jornalistas destacou também que os auriculares utilizados pelos jornalistas, que o primeiro-ministro fez hoje referência, são “utilizados para transmitir e receber informações no decurso dos trabalhos de reportagem, e não por que ‘está tudo teleguiado, está tudo predeterminado’”.

O Conselho de Redação (CR) da RTP repudiou as declarações sobre o uso de auriculares por jornalistas feitas pelo primeiro-ministro e instou-o a retratar-se e reconhecer a importância de um jornalismo livre e independente.

No comunicado, a que a Lusa teve acesso, o CR da RTP considera “inaceitável e ofensiva a sugestão de que os jornalistas utilizam auriculares para receber perguntas ‘sopradas’ ou ler questões pré-escritas nos telemóveis”.

Esta afirmação “demonstra um profundo desconhecimento sobre o funcionamento técnico dos meios televisivos e um desrespeito pela integridade profissional dos jornalistas”, prossegue a CR, que esclarece que “o uso de auriculares é essencial para que os jornalistas em reportagem possam escutar a emissão e as indicações da redação permitindo que se adaptem às necessidades da transmissão em tempo real e recebam informações cruciais para o desenvolvimento da reportagem, bem como comunicar com “a régie facilitando a coordenação e o trabalho colaborativo”.

O uso do auricular permite também “receber informações relevantes que podem ser cruciais para a contextualização da notícia e para a formulação de perguntas pertinentes”, pelo que “é lamentável que o primeiro-ministro, tendo na sua equipa assessores com experiência em televisão, não se tenha informado sobre a função dos auriculares antes de fazer afirmações levianas e desrespeitosas”.

O Conselho de Redação da RTP “defende um jornalismo independente, rigoroso e crítico, que questione o poder e cumpra o seu papel de serviço público”.

“Acreditamos que é preferível um jornalismo ‘ofegante’, que busca a verdade e a prestação de contas numa sociedade democrática e informada do que jornalistas amansados pelo poder político para o tentar transformar em mera voz de quem tem o poder institucional”, consideram.

O órgão apela para que o primeiro-ministro “se retrate pelas suas declarações e reconheça a importância de um jornalismo livre e independente”.

com Lusa

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