Mery Andrade tornou-se jogadora da WNBA em 1999, quando se juntou às Cleveland Rockers, e já na altura encontrava tempo onde muitos não conseguiriam: ao longo de uma época, passava pelos Estados Unidos, Itália e seja qual fosse o local onde a seleção portuguesa iria jogar. Como se não bastasse, a determinada altura começou a conciliar o trabalho dentro das quarto linhas com as responsabilidades do lado de fora.
Estava em Itália quando o treinador-adjunto da sua equipa foi despedido e foi a si que o seu treinador na altura decidiu recorrer. “Desde muito cedo fui sempre etiquetada como uma jogadora de equipa, uma jogadora que faz crescer as pessoas com quem joga, e eu acho que o talento do treinador é esse. Mas foi sempre uma coisa que os outros viram em mim. E é normal, uma pessoa quando joga, está em boa condição física, pensa sempre em jogar até quando tiver 100 anos”, conta Mery à FORBES. Mas acabou por aceitar a proposta e conciliou, durante dois anos, os papéis de jogadora e treinadora-adjunta.
Apesar dessa experiência, é as sub-14 da Quinta dos Lombos que recorda quando questionada sobre o início da sua experiência como treinadora. Quando regressou a Portugal, foi jogar pelo clube e o treinador José Leite fez-lhe o desafio de treinar as mais novas ao mesmo tempo.
“Um grupo muito giro, muito dedicado e mesmo sendo jovens elas faziam as coisas que nós nas seniores fazíamos, e às vezes até faziam melhor. Por isso é que eu gosto de treinar jovens, aprendem muito mais rápido e aprendem já bons hábitos”, diz.
Seguiu-se mais um ano como jogadora e o regresso aos Estados Unidos, agora como treinadora. Primeiro a nível universitário, em San Diego, e depois na G League, a liga de desenvolvimento da NBA. “A G League foi a primeira experiência que tive a nível de campo profissional com masculinos. Acho que foi uma ótima preparação porque na G League temos a possibilidade de fazer de tudo um pouco”, conta. Mas o destino final não era esse e, esta época, Mery chega à melhor liga de basquetebol do mundo: a NBA.
“Já no ano passado estava interessada em subir, achei que depois de três anos [na equipa da G League dos New Orleans Pelicans] já estava com bastante confiança para poder dar o meu contributo a qualquer organização na NBA. Comecei a explorar, mandei alguns currículos, através de networking. Acho que às vezes é importante nós deixarmos as pessoas saberem quais são os nossos objetivos”, diz.
A primeira oportunidade que surgiu foi a de treinar os Boston Celtics durante a Summer League, mas no último dia do torneio os Toronto Raptors apresentaram-lhe uma proposta. A escolha de Mery foi a ida para Toronto e o cargo de assistant coach behind the bench.
“Tivemos a entrevista e depois escolhi vir para Toronto. É um projeto giro, um projeto com jogadores jovens, a desenvolver. Foi a opção que eu escolhi”, afirma. “Uma das razões porque escolhi vir para aqui foi porque mesmo sendo especializado, o treinador gosta que nós continuemos a fazer um bocadinho de tudo. Tenta-nos dar sempre responsabilidades para que nós possamos ter experiência a lidar com tudo e acho que é essa parte também que depois nos vai preparar para um dia podermos ser head coach”.
Os objetivos para a época 2023/24 ainda não estão totalmente definidos, uma vez que ainda não foi possível juntar o grupo todo devido à participação de alguns jogadores no Mundial de basquetebol, mas o desafio está bem claro para a portuguesa. “É um grupo jovem que vai precisar só de alguns meses ou semanas para regular e começar a jogar junto ou vai precisar de mais meses, um ano, para poder atingir aquilo que é a nossa filosofia. Daqui a duas semanas vai começar o training camp com o grupo completo e a partir daí é começar a ver como é que este grupo vai colar, se é logo ou se vai demorar algum tempo. Pode ser um ano giro porque é tudo muito novo e às vezes quando é tudo muito novo há muita energia positiva, muita vontade de fazer, toda a gente quer mostrar que pode ajudar e isso é já metade do trabalho”, diz.
O sonho continua
O anúncio oficial da chegada da treinadora à NBA chegou a Portugal através da Federação Portuguesa de Basquetebol, numa entrevista em que Mery afirmou que “isto é um sonho, mas não é completo, é parte dele”.
E qual é a outra parte do sonho?
“Aprendi que os meus sonhos são sempre estrada a fazer. Não me quero dar um limite. O sonho é poder treinar ao mais alto nível e no lugar mais alto. Gosto de ver as coisas passo por passo. Às vezes quando metemos objetivos e só nos concentramos no longo prazo perdemos todas as coisas boas que vão acontecendo. Eu fiz esse erro no princípio da minha carreira, não vivi onde os meus pés estavam, no momento. Agora estou atrás do banco, o meu próximo passo é passar para a frente do banco, é passar sempre para posições mais altas e espero um dia poder vir a ser a treinadora principal”, diz.

Além de ser mais um passo no sonho de Mery, esta contratação é uma das páginas mais importantes da história da modalidade em Portugal. Ao assinar pelos Raptors, a treinadora deixou mais uma lição de que é possível para quem está deste lado do oceano chegar onde nem sempre a vista alcança.
“Fiquei muito tocada com as mensagens que recebi. Aí é que percebi a importância de poder fazer parte da representação de Portugal aqui. Quando comecei a receber mensagens de treinadores que me agradeciam pela possibilidade de fazer conhecer o nome de Portugal lá fora ou poder abrir portas para que eles possam sonhar. Falarem sobre poder mostrar que nós [mulheres] também conseguimos treinar atletas masculinos ao mais alto nível. Não as apago [as mensagens] porque sei que agora estou a viver um sonho, mas vai chegar aquela parte do ano em que as derrotas vão aparecer, o mood vai mudar um bocado e eu vou fazer dessas mensagens a minha força para continuar”, admite.
Mery tornou-se a quinta mulher a assumir a posição de treinadora-adjunta nesta temporada. Quando questionada sobre o quão recetiva a NBA é para mulheres em equipas técnicas, a resposta foi rápida: “É um processo”.
“Acho que o comissário está a meter grande importância nisso, mas é como tudo, leva tempo. Essa visão tem de ser dividida com os proprietários. Às vezes pode ser essa a limitação, outras vezes as equipas ainda não estão abertas mentalmente. Mas acho que a tendência é para que mais e mais se comece a ver mulheres nos staffs. Da parte dos jogadores têm mentalidade aberta”, diz, realçando que na relação com os jogadores a sua grande vantagem é que já passou por todas as experiências que eles estão a passar agora.
E conhecendo bem o jogo, Mery não consegue olhar para ele como tendo dois lados: o feminino e o masculino. “Eu vejo como atletas que podem ser mais ou menos atléticos”, conclui.