O novo livro de Maria Francisca Gama, autora dos livros A Profeta, publicado em 2022, e A Cicatriz, publicado em 2024, chega esta segunda-feira às livrarias de todo o país. Filha da Louca é descrita como “a história de uma família: de um pai e marido que não sabia ser melhor, de uma filha que se esforçava por cumprir todos os papéis e de uma mãe e mulher que, aos olhos de todos, era louca”.
A Forbes Portugal falou com Maria Francisca sobre este novo lançamento, que é publicado cerca de um ano depois de a revista nomear a autora para a segunda edição da sua lista 30 Under 30.
Como é que descreves o processo de criação deste Filha da Louca?
Começou com uma ideia, como acho que começam todos os livros, e neste caso partiu de duas notícias diferentes que li faseadas no tempo. O início foi por causa de uma notícia que li relacionada com o falecimento de uma criança cuja mãe foi condenada criminalmente, ou seja, teve responsabilidade nisso. Fiquei muito perturbada com aquilo que li porque me parece contranatura que uma mãe não tenha como principal instinto e desejo o de proteger a filha. Partiu daí esta ideia de escrever uma história em que uma mãe não fosse, segundo os nossos padrões ocidentais, uma boa mãe. Depois, durante o processo de pesquisa, encontrei uma entrevista a uma pessoa com uma perturbação de personalidade sobre a qual depois acabei por estudar e que se encontra no livro. Essa pessoa dizia que uma das principais características desta perturbação de personalidade são os pensamentos suicidas e dizia uma coisa do género: um dos dias da minha vida em que eu senti mais alegria, foi o dia em que pensei que me ia atirar da ponte, e senti uma alegria semelhante àquela que acredito que as pessoas sintam quando vão para o dia do seu casamento. O processo de criação teve tudo a ver com estas duas notícias, ainda que depois do livro não tenha nada de verídico, é ficcional, não é inspirado em nenhuma história em particular. Estas duas notícias foram o ponto de partida porque enquanto pensadora e contadora de histórias me pareceu interessante e apeteceu-me trabalhar sobre isso, sobre esta ideia de uma mãe que não é como deveria ser, mas porquê? O que é que poderá ter acontecido com ela? De que doença poderá ela padecer para olhar para a filha e não querer protegê-la?
De alguma forma este processo foi diferente dos anteriores?
Sim, acho que à medida que o tempo vai passando e que eu vou trabalhando mais, vou tornando o meu processo mais produtivo. Há um conjunto de coisas com as quais eu perdia tempo, ou nas quais ficava bloqueada, que agora já faço com maior fluidez. Sem dúvida que uma das coisas que eu fiz diferente desta vez, e que acho que foi determinante para o livro, foi a questão de nunca ter parado de pesquisar. Nos outros livros fiz um período de pesquisa e depois decidi que já estava munida daquilo que precisava para ficcionar. Aqui, como o tema e principalmente a parte da doença mental estava tão longe daquilo que era o meu conhecimento, fui escrevendo sempre a pesquisar. Contei em particular com a ajuda da minha irmã que também é estudante de psicologia, está no último ano do mestrado, foi um trabalho quase a quatro mãos esta parte da pesquisa. Tive muito esta preocupação, que é cada vez mais presente no meu trabalho, de criar personagens que pudessem ser pessoas com quem nos cruzássemos na rua e isso implica um certo aperfeiçoamento delas, porque as pessoas são complexas e os personagens também têm de ser.
Se fosses recomendar este livro a alguém, o que é que dirias sobre ele?
É um drama familiar, é um livro para quem gosta de ficção literária, de romance. Acho que é um livro para quem gosta de ler livros sobre pessoas. Não é um livro em que acontecem muitas coisas, é uma história sobre pessoas banais que têm vidas que desconhecemos. Vive muito à volta da casa, daquilo que acontece dentro de casa, e acho que é um retrato daquilo que será a casa de muitas pessoas, porque a família é o núcleo mais complexo de todos, não há organização nenhuma tão complexa quanto a família e o livro é sobre isso.
Depois de um sucesso tão grande como é o do livro A Cicatriz, consegues estar a escrever e não pensar na forma como este seguinte livro vai ser recebido?
Não, sendo honesta, mas acho, e tenho essa expectativa em relação ao meu trabalho, que isso não inquinou o processo negativamente, o processo de escrita e o livro. Acho que só me tornou mais exigente, que tornou a minha editora mais exigente, porque uma coisa é escrever e não saber se teremos quem nos leia, outra coisa é escrever com a certeza que pelo menos agora, nos próximos nunca se sabe, mas pelo menos agora há pessoas para lerem. A prova disso é a pré-venda, que durou um mês e já foram muitos, muitos livros. Os escritores querem ser lidos, não é? E não nos podemos queixar por sentir pressão de termos quem nos leia.
E nesta altura do lançamento, a pressão está a ser um bocadinho maior do que foi em relação aos outros?
Sim, mas acho que acima de tudo a expetativa, estou muito expectante para conhecer, aos olhos dos outros, a história que escrevi, porque os livros são sempre um espelho de quem os lê. As pessoas encontram aquilo que viveram, que sonham, que têm medo. Este livro em particular ainda só foi lido pelo meu marido e por quatro ou cinco pessoas dentro da editora, e estou curiosa para receber avalanches, espero eu, de interpretações da história.
Numa entrevista anterior disseste-me que este livro iria ser diferente do A Cicatriz. É desafiador tentar fazer algo diferente quando aquele formato resultou em tantos leitores?
Honestamente acho que não, porque sou muito nova, estou no início da minha carreira e acho que seria mais difícil agora pedirem-me para repetir de alguma maneira o que fiz com A Cicatriz do que fazer o que eu quiser. E o que eu quiser é diferente. Claro que eu consigo perceber, fazendo uma autocrítica ao meu trabalho, que o Filha da Louca é um livro mais adulto, mais complexo, e talvez nesse sentido possa não ser tão bem recebido por, por exemplo, o meu público mais jovem, que neste momento pode olhar para o livro e ainda não encontrar a mesma rapidez no entendimento, a mesma facilidade com o vocabulário. Por outro lado, as temáticas são completamente diferentes, os personagens são diferentes e a minha esperança é que muitos dos leitores ao longo do meu percurso vão crescer comigo e vão lendo aquilo que eu vou fazendo, certa de que às vezes vão gostar mais de um livro e outras vezes vão gostar mais de outro. E não há nada a fazer em relação a isso.
Tenho visto os conteúdos que tens publicado nas redes sociais, desenhaste alguma estratégia online para este lançamento?
Sim, eu sou agenciada pela + Que Uma no digital e, em conjunto com a Penguin, decidimos publicar alguns conteúdos. O meu objetivo era ir partilhando um bocadinho da história e ir aguçando a curiosidade, certa de que não existe melhor estratégia ou melhor forma de chegar aos leitores do que o boca-a-boca e esse não é feito por mim. Não interessa dizer se o livro é bom ou mau, os leitores é que vão um bocadinho definir o sucesso ou o insucesso do livro, como fizeram com A Cicatriz. Claro que é importante divulgar o meu trabalho, mas depois se as pessoas não gostarem do livro e não estiverem a ler o livro, não é por eu dizer que o livro está nas livrarias que alguém vai lá. Esse é um trabalho que são os leitores que muito amavelmente fazem para nós e por nós.
Achas que neste momento não faz sentido não aliar o lançamento de um livro a uma estratégia no digital, tendo em conta a dimensão das comunidades ligadas aos livros nas redes sociais?
Acho que depende. Para mim não faz, para o meu público e para o meu trabalho não faz, mas acho que depende muito do público-alvo. Acho também, por outro lado, que só uma estratégia no digital peca por ser pouco. Parece-me que vivemos uma época em que os leitores querem conhecer os escritores, querem poder conversar. Não sei se alguma vez foi tanto quanto é agora esta coisa de: estou a consumir um produto artístico e quero responder-lhe. Portanto, no meu caso, tanto com A Cicatriz como agora com o Filha da Louca, vou fazer uma tour pelo país, porque acho que ir aos sítios é mais importante ainda do que promover no digital. As pessoas querem conversar sobre isso, nunca vi tantas pessoas irem sozinhas a uma coisa para estarem juntas como agora e eu acho que isso é ainda mais importante do que a apresentação no digital.
Há pouco mencionaste a pré-venda, como é que está a correr e de que forma é que esta época de pré-venda é importante para um livro e para quem o escreve?
A pré-venda no caso do Filha da Louca foi um mês. Acho que correu muito bem porque a semana passada assinei 900 e tal livros que vão seguir para casa dos leitores. Normalmente, por aquilo que eu percebo, as pré-vendas são importantes para de alguma maneira as editoras terem como prever, ainda que muitas vezes fuja depois do expectado, o sucesso ou não do livro. No caso do Filha da Louca, a primeira edição tem, se não estou em erro, 9 mil livros. Quando eu publico A Cicatriz não tinha muitos leitores e se calhar na pré-venda, que foram 15 dias, vendi uns 150 ou 200 livros.
Nós já falámos algumas vezes sobre o impacto das redes na indústria e nos últimos tempos tenho notado uma tendência inversa da parte dos criadores, que agora estão a tentar saltar do digital para eles próprios escreverem ficção. Como olhas para este possível aumento no número de escritores?
Acho ótimo, é muito bom que quem gosta de escrever e quem se dedica à escrita tenha a oportunidade de ver o seu trabalho publicado. Existem milhares de livros a chegarem às livrarias todos os dias, talvez demasiados, certamente demasiados neste país. Creio que a oferta extravase em muito a procura e isso é um problema, mas não é um problema que me parece que deva ser corrigido pela diminuição do número de escritores, ou de livros publicados, mas sim pelo aumento do número de pessoas que querem ler livros. A verdade é que escrever um livro faz parte daquela tríade de coisas que as pessoas querem cumprir antes de morrer. Depois existem as pessoas que escrevem um livro e que o querem ver publicado e existem um conjunto de pessoas que querem ser escritores e que se dedicam à literatura. São livros diferentes, géneros diferentes e há um lugar para todos sempre, espero eu.
O que dirias a alguém que esteja agora a pensar seguir esta área?
Acho que o mais importante é ler e escrever muito. Depois, como em todas as áreas profissionais, vive de muito trabalho e também de um pouco de sorte, mas acho que estamos a viver, apesar de todos os apesares, uma época em Portugal em que o trabalho pode compensar e os sonhos podem concretizar-se, mesmo este aparentemente descabido de querer ser escritor. Se calhar agora um jovem de vinte e poucos anos pode olhar para mim, para a Rita da Nova, para outros escritores, e cada vez parece menos descabido e isso é bom.
A próxima fase é o livro chegar às mãos dos leitores e começarem a surgir as opiniões, como é que lidas com essa parte?
A minha intenção neste momento é ler e responder a tudo o que me enviam diretamente, mas tudo o resto não vejo. Recebo muitas opiniões nas sessões que dou, a Feira do Livro de Lisboa está-se a se aproximar, vou ter três datas na Feira do Livro, tenho a certeza de que os leitores vão partilhar aquilo que acharam. Uma coisa engraçada é que hoje em dia sinto, pelo menos com o meu público, que os leitores vão para as apresentações e já leram o livro. Vão mesmo para conversar sobre o livro e não para ver se os convenço a querem lê-lo. Mas depois lido com tudo e lido muito bem, no final do dia o meu trabalho é exatamente igual ao trabalho de outras pessoas, com a diferença de que eu não tenho um chefe que vai dizer se gosta ou não do meu trabalho, os meus chefes são os meus leitores, mas não se pode ouvir todos.
E para terminarmos: 9 edições, um dos livros mais vendidos do ano passado, Livro do Ano de Ficção Lusófona de 2024 nos Prémios Bertrand pela escolha dos leitores. A Cicatriz foi escrito por uma mulher, uma mulher jovem. O que é que isto nos diz sobre este livro e sobre o mercado em Portugal nos dias de hoje?
Acho que está a mudar. No outro dia uma escritora mais velha com quem estive disse-me, amavelmente, que eu tinha furado e que isso era bastante admirável. Eu também sinto que o fiz, e não apenas eu, há cada vez mais escritoras mulheres a estarem, por exemplo, nos tops, a Rita da Nova, este ano a Luísa Sobral com o seu Nem Todas as Árvores Morrem de Pé. Acho que é importante, acho que mostra que há uma renovação também da geração de leitores. Afigura do leitor português não é, e não é suposto que seja, um homem mais velho que teve a oportunidade de estudar e que tem um curso superior, acho que agora os mais novos estão a ler, querem ler coisas diferentes, também quererão os clássicos, espero que sim, mas querem também ler autores contemporâneos, pessoas que partilham vivências com eles. E como em todas as outras áreas da arte, há uma cultura pop que eu acho que está a desenvolver-se em Portugal e na qual o meu trabalho se enquadra com muito orgulho.