Estávamos em 2021 quando Lucy Bronze, na altura jogadora do Manchester City, escreveu uma carta a ela própria. O dia era da Mulher e a jogadora lembrava que aos 10 anos ainda jogava apenas com rapazes. E mais: nos dois anos seguintes continuou sem se cruzar com outra jogadora em qualquer campo por onde passasse.
O jogo em Wallsend é uma das histórias que a família Tough Bronze mais gosta de contar. Enquanto a equipa de Lucy se deslocava do parque de estacionamento para o campo, um dos adversários gritou: “Vocês têm uma menina na vossa equipa!”. Até hoje ninguém sabe se a jogadora ouviu, mas a tia Julie com certeza ouviu. Durante a partida, uma entrada mais dura, mas justa, deixou esse mesmo adversário a chorar. “Aquele é o rapaz que se estava a rir”, disse-lhe a tia, sem conseguir esconder o sorriso, no final da partida, lembrando o comentário inicial.
“Nunca deixes o que as outras pessoas pensam afetar o que tu fazes” continua a ser uma das maiores lições que Lucy Bronze aprendeu até hoje. E quando mostra aquilo que faz melhor, as pessoas acabam por se render e ter de aceitar.
O amor pelo futebol começou em casa. O irmão Jorge jogava e Lucy seguia as suas pisadas ao milímetro. Jorge é um nome familiar para os portugueses, e Lúcia Roberta também. Lucy e o irmão são filhos de mãe inglesa e pai português. O que faz dela a única portuguesa em prova no Mundial 2023, ainda que vista as cores britânicas.
Depois de ser forçada a deixar o futebol misto, jogou no Blyth Town. Seguiu-se o Sunderland, onde foi promovida à equipa principal com apenas 16 anos e foi escolhida, nessa mesma época, como jogadora do ano. Mais tarde, mudou-se para os Estados Unidos para estudar na Universidade da Carolina do Norte e jogar pelo North Carolina Tar Heels. Foi aí que se tornou a primeira britânica a vencer o torneio da NCAA. Ainda regressou ao Sunderland, mas em 2010 foi anunciada a sua transferência para o Everton, onde jogou por duas épocas.
Apesar de tudo o que conquistou até aqui, foi o impacto no Liverpool, para onde se mudou em 2012, que acabou para levá-la para um outro nível. Na sua primeira temporada, ajudou a equipa a vencer a Women’s Super League e a FA Women’s Cup. Dois anos depois foi nomeada PFA Women’s Players’ Player of the Year, um prémio atribuído à melhor jogadora do futebol inglês em cada ano. A receita que levou para Liverpool, levou também para Manchester: na sua primeira temporada ajudou a equipa a vencer a primeira liga inglesa da história do clube.
A primeira chamada à seleção inglesa aconteceu em 2013. Neste campo, o resto é história para as Lionesses e para Lucy. A presença nos Mundiais de 2015 e 2019 e no Europeu de 2017, a vitória no Europeu de 2022 e a participação no Mundial 2023, com a luta pela taça ainda em aberto.
“Ganhei tudo”, disse Bronze numa entrevista antes do torneio. “Mas há uma omissão gritante, que é o Campeonato do Mundo. Quando ganhámos o Euro, por um lado senti que algo estava completo, pois não queria passar toda a minha carreira sem ganhar um título por Inglaterra. Mas o Campeonato do Mundo é o mais importante, o que realmente importa. Conseguir aquela estrelinha por cima do brasão na camisola torna tudo completo. Quando era miúda, via futebol e vestia as camisolas da Inglaterra, os homens tinham sempre aquela estrelinha na camisola. Quando começámos a ter as nossas próprias camisolas, não tínhamos uma estrela. Sempre me pareceu que faltava alguma coisa”.
O sucesso de Lucy já só tinha lugar num clube: o mais bem-sucedido da Europa. A mudança para o Lyon, vencedor do campeonato francês por 20 vezes e da Liga dos Campeões oito vezes, aconteceu em 2019.
Já como jogadora do Barcelona, o clube que se seguiu depois de uma segunda passagem pelo Manchester City, Lucy tornou-se a jogadora inglesa mais condecorada de sempre na Liga dos Campeões, a par de Phil Neal. No Lyon ganhou as finais de 2018, 2019 e 2020, numa altura em que as francesas venceram as últimas três de um recorde de cinco anos a vencer a taça. Com a equipa espanhola levantou o troféu pela quarta vez. Ao contrário de Phil Neal, Lucy conquistou estas vitórias ao serviço de equipas de outros países que não o seu.
Do lado de fora das quatro linhas, a jogadora inglesa também tem deixado a sua marca, à semelhança de toda uma geração de jogadoras que tem provado que no futebol não há lugar para o machismo. Lucy foi a primeira jogadora a falar abertamente sobre a necessidade da sua Federação começar a pagar aquilo que é justo às jogadoras.
Hoje sabe-se que Lucy Bronze esteve a poucos dias de jogar pela seleção de Portugal. É que na mesma semana em que a Federação avançou com a possibilidade, a equipa inglesa fez o mesmo. Ganhou o país onde nasceu, mas Lúcia Roberta não deixa de ser uma representação portuguesa nos maiores palcos do futebol mundial.