Burcu Bicakci Ersoy é Partner na Egon Zehnder, uma das mais influentes consultoras globais de executive search e leadership advisory, onde trabalha de perto com CEOs, conselhos de administração e equipas executivas em processos de transformação organizacional, desenvolvimento de liderança e desenho de modelos de governação.
Com uma perspetiva privilegiada sobre a forma como as organizações estão a integrar a Inteligência Artificial (IA) nas suas estratégias, analisa para a Forbes Portugal os desafios culturais, humanos e estruturais que estão a redefinir o perfil do líder contemporâneo e as exigências de uma liderança eficaz num mundo cada vez mais moldado pela tecnologia.
No contacto diário com grandes empresas, que medos e mal-entendidos encontra mais frequentemente quando o tema é IA?
No contacto diário com CEOs, boards e equipas executivas, observo que os maiores obstáculos à adoção de IA não são tecnológicos, mas emocionais, culturais e estratégicos.
Entre os receios que vou identificado, o primeiro diz respeito à perda de controlo: os líderes temem que a IA avance mais depressa do que a sua capacidade de a enquadrar, tome decisões pouco transparentes ou introduza riscos reputacionais, nomeadamente em contextos regulados ou com dados sensíveis. Este medo reflete consciência de que a governação clássica não basta e que é preciso reforçar a supervisão, princípios éticos e a literacia em IA.
O segundo receio está relacionado com a desumanização. Existe uma preocupação de que, ao integrar IA em processos críticos, a organização perca empatia e sensibilidade ética. O problema não é substituir pessoas, mas automatizar decisões que exigem interpretação, cuidado e responsabilidade – dimensões onde a tecnologia não consegue replicar o humano.
Um terceiro receio está relacionado com a exposição de fragilidades internas. A IA torna visíveis ineficiências e problemas culturais que antes podiam passar despercebidos, acelerando a necessidade de clarificar funções, simplificar estruturas e tomar decisões estratégicas adiadas.
Entre os mal-entendidos, existem dois mais comuns: primeiro, acreditar que a IA é sobretudo tecnológica, quando é, na verdade, uma questão de liderança, cultura e mudança organizacional. Segundo, pensar que gera valor imediato. A experiência mostra-nos o contrário: os maiores retornos surgem quando há uma visão clara sobre onde a IA cria impacto distintivo, quando existe talento capaz de a operacionalizar e quando se trabalha a mudança comportamental necessária para a sua adoção.
“Um mal-entendido é acreditar que a IA é sobretudo tecnológica, quando é, na verdade, uma questão de liderança, cultura e mudança organizacional”
O que distingue as organizações que estão a incorporar IA com sucesso daquelas que ainda estão paralisadas pela incerteza?
As organizações que têm sucesso na adoção da Inteligência Artificial têm algo em comum: começam pela liderança, não pela tecnologia. Definem claramente onde a IA cria valor – novos produtos, eficiência ou experiência do cliente – e garantem que existe um líder com mandato, literacia em IA e capacidade de mobilizar a organização. Tratam a IA como uma transformação estratégica e cultural, investem em qualidade de dados, repensam processos, ajustam estruturas de decisão e promovem a mudança comportamental necessária para que a tecnologia aumente de facto a capacidade de decisão e impacto da organização.
Por outro lado, as organizações que permanecem paralisadas pela incerteza ficam presas a debates conceptuais ou projetos isolados que não escalam. Falta-lhes visão, prioridades e liderança capaz de transformar potencial tecnológico em impacto concreto. A diferença não está na tecnologia, mas na maturidade de liderança: empresas que unem clareza estratégica, coragem para experimentar, cultura ágil e curiosa, e atenção a métricas e ética, estão a transformar IA numa vantagem competitiva real.
A sua experiência abrange executive search, leadership development e organizational design. Como é que a IA está a alterar cada uma destas dimensões?
Na minha experiência, a IA está a transformar estas três dimensões de forma profunda, mas com ritmos distintos. No executive search, a tecnologia está a mudar sobretudo a forma como avaliamos potencial. Não substitui o julgamento humano, mas amplia a nossa capacidade de identificar padrões, mapear competências emergentes e perceber, com mais precisão, que tipo de liderança cada organização realmente precisa para a sua ambição em IA. O foco deixou de ser apenas experiência passada; passou a ser a capacidade de aprender, de navegar ambiguidade e de liderar transformação.
No leadership development, a IA permite personalizar o desenvolvimento, acelerar feedback e apoiar líderes na tomada de decisões complexas. Mas, paradoxalmente, também torna mais evidente o que nenhuma máquina consegue ensinar: empatia, discernimento ético, visão humanista. Por isso, os programas mais avançados não se limitam a treinar competências digitais – reforçam a maturidade emocional e a consciência de impacto, porque a IA aumenta o alcance das decisões, mas também amplifica as suas consequências.
Por fim, no organizational design, a IA obriga as empresas a repensar estruturas, processos e fluxos de decisão. Organizações demasiado hierárquicas tornam-se lentas e as estruturas rígidas colapsam perante a velocidade da tecnologia. A IA favorece modelos mais adaptativos, com equipas multidisciplinares, maior autonomia local e ciclos de decisão curtos. O desenho organizacional passa a incluir novas funções, novas responsabilidades de governança e uma integração muito mais profunda entre tecnologia, negócio e pessoas.
A IA não está apenas a transformar o que as organizações fazem, está a transformar a forma como são lideradas, aprendem e se organizam. E isso exige um novo nível de intencionalidade em todas estas dimensões.
“Organizações demasiado hierárquicas tornam-se lentas e as estruturas rígidas colapsam perante a velocidade da tecnologia”
O que pode comprometer uma transformação tecnológica desde o primeiro dia, mesmo quando há investimento financeiro e apoio da gestão de topo?
O erro mais frequente é tratar a IA como um projeto técnico entregue apenas a equipas especializadas, sem clarificar a ambição de negócio, o impacto esperado e responsabilidades de liderança. Quando a tecnologia avança mais rápido que a capacidade da organização para a integrar, compreender e supervisionar, surgem fragmentação, decisões desconectadas e falta de narrativa mobilizadora.
Outro fator crítico é a cultura de dados e disciplina organizacional. Processos inconsistentes, dados incompletos, silos internos ou estruturas hierárquicas rígidas impedem a IA de gerar valor, a tecnologia apenas amplifica problemas existentes.
A transformação também pode falhar quando se subestima o lado humano da mudança. A IA desafia identidades profissionais, altera rotinas e introduz novas formas de trabalhar. Se não houver uma comunicação clara, formação, responsabilização ética e espaço para desenvolver competências, instala-se uma resistência silenciosa que bloqueia o avanço.
Por fim, é essencial uma governança robusta: definir quem decide, quem supervisiona, como se avaliam riscos e quais os princípios éticos. Sem este enquadramento, que muitos boards ainda estão a construir, qualquer esforço tecnológico fica vulnerável a incoerência, riscos reputacionais e perda de confiança.
Quando estas dimensões são integradas de forma estratégica, a IA não só é adotada com sucesso, como aumenta a capacidade da organização para inovar e tomar melhores decisões.
“A IA desafia identidades profissionais, altera rotinas e introduz novas formas de trabalhar”
Como é que se prepara a próxima geração para um mundo onde a IA é omnipresente e onde os ciclos de inovação são cada vez mais curtos?
Trata-se de uma mudança profunda na forma como desenvolvemos talento. O foco não pode estar apenas em competências técnicas – tem de incluir literacia em IA combinada com maturidade humana. A tecnologia evoluirá rapidamente e automatizará grande parte do trabalho analítico, mas o que continuará a diferenciar os futuros líderes será a capacidade de interpretar, questionar, decidir e assumir responsabilidade pelas implicações humanas da tecnologia.
Isto implica cultivar desde cedo curiosidade, pensamento crítico, adaptabilidade e coragem para experimentar, competências essenciais para acompanhar ciclos de inovação mais curtos. Significa também reforçar atributos que a IA não consegue replicar, como empatia, sensibilidade ética e capacidade de dar sentido a contextos ambíguos. Neste contexto, o propósito e o carácter tornam-se componentes centrais na formação de líderes.
É igualmente essencial expor a próxima geração a ambientes de aprendizagem que reflitam a realidade: equipas multidisciplinares, dados imperfeitos, prototipagem rápida e interação constante com sistemas de IA. Os jovens precisam de aprender a trabalhar com a tecnologia e não contra ela, integrando insights algorítmicos nas decisões de negócio, sem abdicar do julgamento humano.
“O propósito e o carácter tornam-se componentes centrais na formação de líderes”
Fala frequentemente sobre a evolução da liderança num mundo permeado por tecnologia. Que competências emergentes está a ver surgir nos líderes de topo?
O desenvolvimento de liderança está a atravessar uma transformação. O foco deixou de estar limitado às competências técnicas, passando a centrar-se na combinação entre literacia em IA e maturidade humana. A tecnologia continuará a automatizar o trabalho analítico, mas os líderes distinguir-se-ão pela capacidade de interpretar, questionar, decidir e assumir responsabilidade pelas implicações humanas da tecnologia.
Isto coloca em destaque competências como curiosidade, pensamento crítico, adaptabilidade e coragem para experimentar – capacidades essenciais em ciclos de inovação cada vez mais curtos. Eleva também atributos que a IA não consegue replicar, como empatia, sensibilidade ética e a aptidão para criar sentido em contextos ambíguos. O propósito e o carácter ganham, assim, um peso crescente.
A exposição a ambientes de aprendizagem realistas – equipas multidisciplinares, dados imperfeitos, prototipagem rápida e interação contínua com sistemas de IA – prepara os líderes para integrarem insights algorítmicos sem abdicar do julgamento humano. Em última análise, o novo paradigma de liderança define-se pela capacidade de unir inteligência humana e artificial para elevar o desempenho, tomar melhores decisões e construir organizações mais inclusivas, inovadoras e resilientes.
“A tecnologia continuará a automatizar o trabalho analítico, mas os líderes distinguir-se-ão pela capacidade de interpretar, questionar, decidir e assumir responsabilidade pelas implicações humanas da tecnologia”
As exigências da transformação digital mudaram o perfil de CEO. Em que aspetos concretos nota essa mudança?
As exigências da transformação digital mudaram o perfil do CEO sobretudo ao nível da forma como lidera e não apenas do que sabe. Passou-se de um modelo centrado no controlo para um modelo centrado na orquestração. O CEO atual tem de coordenar ecossistemas – tecnologia, talento, parceiros, dados – e não apenas gerir hierarquias. Isto exige integrar perspetivas distintas e tomar decisões a partir de fluxos contínuos de informação.
Por ouro lado, os CEOs mais preparados aprenderam a equilibrar rigor analítico com intuição experiente, porque a transformação digital trouxe velocidade e volume de informação, mas também maior risco de ruído e de decisões excessivamente automatizadas. A competência de interpretar sem perder sentido crítico tornou-se distintiva nos dias de hoje.
Outra mudança visível é a existência de um maior foco na arquitetura organizacional. Antes, o CEO era sobretudo um guardião da estratégia, mas, hoje, é também designer de como a organização aprende, experimenta e escala a inovação. As empresas mais avançadas esperam que o CEO redesenhe estruturas, elimine silos, acelere fluxos e crie as condições para que a tecnologia produza impacto. É uma responsabilidade estrutural, não periférica.
Finalmente, há uma mudança na forma de gerir talento. O CEO precisa de atrair perfis que não existiam há cinco anos, de trabalhar lado a lado com especialistas altamente técnicos e, simultaneamente, de garantir que a cultura não perde humanidade na corrida tecnológica. Isto exige novas competências de empatia, comunicação e capacidade de alinhar equipas em torno de um futuro que muda rapidamente.
Essencialmente, estamos a falar de um CEO mais híbrido: menos orientado ao controlo e mais conector; menos preso a planos fixos e mais empenhado em criar as condições para a inovação. É esta combinação que diferencia uma liderança eficaz num cenário de transformação digital contínua.
“Antes, o CEO era sobretudo um guardião da estratégia, mas, hoje, é também designer de como a organização aprende, experimenta e escala a inovação”
Como mãe e defensora do desenvolvimento de futuras líderes, que desafios identifica ainda no acesso de mulheres a posições de topo no setor tecnológico?
A tecnologia é um dos setores mais promissores para as mulheres: a flexibilidade que oferece e a natureza estruturada do pensamento que exige tornam-na um terreno particularmente adequado. No entanto, apesar deste potencial, as mulheres continuam sub-representadas nos níveis de liderança.
O desafio começa logo na base: são menos as mulheres que concluem cursos de engenharia e ciências computacionais, o que reduz a entrada em funções técnicas. A meio da carreira, muitas acabam por abrandar o ritmo ou mesmo sair, devido às exigências familiares e a culturas organizacionais que ainda não acomodam plenamente as responsabilidades de cuidados. As que permanecem, enfrentam frequentemente o isolamento em ambientes maioritariamente masculinos e preconceitos de liderança que favorecem estilos mais agressivos em detrimento de abordagens colaborativas.
Quando as barreiras estruturais e culturais desaparecerem, “o setor tecnológico pode, de facto, tornar-se um dos melhores ambientes para as mulheres prosperarem”
Mesmo quando são contratadas, as progressões tendem a ser mais lentas — avaliadas pelo desempenho imediato e não pelo potencial — e com menos patrocinadores a impulsioná-las para funções de topo.
Este conjunto de barreiras estruturais e culturais faz com que até profissionais altamente talentosas encontrem obstáculos na sua progressão. Reduzir esta desigualdade exige mais do que esforço individual — requer transformação sistémica: políticas de trabalho flexível, programas de patrocínio e culturas verdadeiramente inclusivas, que valorizem estilos de liderança diversos. Quando estes elementos convergem, o setor tecnológico pode, de facto, tornar-se um dos melhores ambientes para as mulheres prosperarem.





