Situada na fronteira com a Rússia, Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia, desde fevereiro de 2022 vem sendo alvo de bombardeamentos diários por parte da Rússia. Numa guerra sem fim à vista e sem defesas aéreas eficazes, Kharkiv passou de fortaleza de resiliência a uma verdadeira fortaleza solitária. Uma cidade que mais parece uma ilha: a grande dedicação os seus cidadãos à cidade e o perigo que é viver sob bombardeamentos constantes faz de Kharkiv uma cidade fechada sobre si mesma.
À medida nos aproximamos do terceiro ano de guerra total, e com um inverno difícil à porta, sem aquecimento e sem eletricidade, a Ucrânia necessita urgentemente de caças F-16 e mísseis antiaéreos para proteger as suas cidades e civis.
Aquando da minha visita a Kharkiv no final de setembro, a cidade surgia quente e limpa e mostrava as primeiras cores do outono; serena e tranquila, até que as sirenes de ataque aéreo começavam a disparar, alertando para um ataque de mísseis russos, a que se seguia o som de projéteis que explodiam ao longe, ou muito perto. “É um horror, pura e simplesmente. A Rússia está a tentar apagar a cidade do mapa”, diz Natalia Beliaeva, residente e nascida em Kharkiv e que permaneceu nesta cidade com a sua família durante a guerra. “Tentamos explicar esta situação ao mundo. As bombas podem cair em qualquer parte da cidade. Mas não devia ser assim. Como é que alguém pode lançar mísseis contra uma cidade, contra civis? O que é isto?”
Nessa manhã ensolarada, Beliaeva leva o seu filho de 6 anos, Lev, à escola percorrendo as ruas largas e praticamente vazias, emolduradas por árvores bem aparadas e lindas flores que desabrocham junto a arranha-céus residenciais. Muitas das janelas dos edifícios foram destruídas por bombardeamentos russos e estão agora cobertas com contraplacado. Alguns edifícios não têm paredes, telhados e varandas. E, ao mesmo tempo, lojas e cafés mantêm-se abertos, as fontes decorativas continuam a funcionar e os varredores de rua continuam a limpar calçadas e a regar plantas. Pessoas praticam exercício físico em passadeiras num ginásio; outros passeiam os seus cães ou descontraem sentados em bancos. Tornar a vida o mais normal possível e prosseguir com as rotinas diárias são as formas mais comuns que os moradores de Kharkiv encontraram para enfrentarem a realidade que é viver numa cidade na linha de frente.
“A escola tem uma cave no prédio”, diz Beliaeva, de 47 anos. É mãe de três filhos: a filha mais velha frequenta a universidade na Alemanha, regressando a Kharkiv para passar as férias com a família; os dois filhos mais novos, Lev e Mark, estão em Kharkiv. Ela explica as suas rotinas diárias: “Quando a sirene de ataque aéreo dispara, as crianças na escola de Lev descem as escadas; está bem equipada, e continuam a estudar.” Lev frequenta uma pequena escola privada num edifício residencial no centro de Kharkiv. Todas as escolas públicas em Kharkiv mudaram para o online ou para estações de metro. Uma escola subterrânea recém-inaugurada recebe 1.000 crianças e estão a ser construídas seis escolas mais. O filho mais velho de Beliaeva, Mark, de 15 anos, frequenta uma escola particular com um modelo de ensino híbrido: dois dias em casa e três dias presencialmente, como aconteceu nas escolas americanas durante o período da COVID. A razão por trás dessa opção pelo ensino híbrido, no entanto, não é um vírus, mas sim mísseis mortais e bombas lançadas pelas forças russas sobre cidade. A escola de Mark tem um abrigo antiaéreo com capacidade limitada para acolher crianças; daí o modelo híbrido.
Kharkiv fica a 30 km apenas da Rússia (Kiev, por seu lado fica a 326 km da fronteira mais próxima). Em setembro, a Rússia lançou 1.339 drones sobre a Ucrânia. As defesas aéreas ucranianas abateram 1107, de acordo com a UnitedMedia24. A Rússia bombardeia hospitais, instituições culturais, bibliotecas, universidades, escolas, centros comerciais e residências, pequenas e grandes, nas zonas centrais e nos subúrbios. É impossível prever onde cairá a próxima bomba. Proteger Kharkiv dos bombardeamentos russos é muito difícil.
Em setembro, as forças de Moscovo atacaram Kharkiv 53 vezes com bombas aéreas guiadas. Essas bombas têm um alcance de 80 km e podem atingir rapidamente cidades como Kharkiv, Zaporizhzhia e qualquer cidade ou vila nas regiões do leste. É muito difícil e caro intercetá-las, e a Ucrânia não tem meios para proteger Kharkiv dos ataques russos. Os mísseis S-300, disparados frequentemente a partir da cidade fronteiriça russa de Belgorod, chegam a Kharkiv em menos de um minuto. Só em setembro, os russos destruíram ou danificaram 339 edifícios em Kharkiv. Em agosto de 2024, a Rússia foi responsável por, pelo menos, 184 mortes e ferimentos de civis e 856 mais no resto da Ucrânia. Nesta guerra sem fim à vista os caças F-16 e um maior número de mísseis antiaéreos poderiam proporcionar uma melhor proteção à cidade e à sua população civil.
Apesar dos bombardeamentos em curso, Kharkiv conta com 1,3 milhão de habitantes, de acordo com as últimas estimativas da administração da cidade. Esse número caiu de 2 milhões de habitantes antes da invasão em grande escala para cerca de 200 mil durante o primeiro semestre de 2022. No início da guerra, as forças russas lançaram uma ofensiva sobre Kharkiv e ocuparam os subúrbios mais próximos, à medida que os tanques russos entravam na cidade e os aviões inimigos lançavam bombas. Os bairros do norte de Kharkiv foram palco de violentos combates, ficando totalmente destruídos. No outono de 2022, as forças ucranianas expulsaram as tropas russas da região de Kharkiv, deparando-se com uma série de valas comuns com corpos de civis e inúmeros crimes de guerra cometidos em territórios anteriormente ocupados. Isto numa altura em que as pessoas começavam a regressar gradualmente a Kharkiv. O Presidenta da Câmara da cidade, Ihor Terekhov, estimou em janeiro de 2023 que a população voltara aos 1,3 milhões, sendo 200.000 mil pessoas migrantes de territórios ucranianos agora ocupados pela Rússia. Confrontados com quebras de energia e de água, em virtude das infraestruturas destruídas e dos implacáveis ataques de mísseis russos, muitos moradores fugiram para o estrangeiro ou para Kiev e para o oeste da Ucrânia.
A cidade de Kharkiv recebe normalmente milhares de estudantes que aí se deslocam no outono para frequentarem as mais de vinte faculdades e universidades da cidade. Mas, com a passagem do ensino superior para o online, as ruas estão estranhamente vazias. O centro da cidade apresenta toda uma série de ferimentos. Pilares e telhados destruídos e partes de alguns edifícios históricos desapareceram ou são alvo de reparações temporárias. Mas a arquitetura da cidade mantém o seu brilho, apesar de toda a destruição. Os principais monumentos, muitos dos quais foram danificados, ainda estão de pé. “Ainda” é a palavra-chave aqui. Se a Rússia decidir atacar os principais locais históricos da cidade, coisa que pode vir a fazer, não existe maneira de defender e proteger a cidade.
Os mísseis russos podem e atingem qualquer coisa, da Universidade Estadual de Karazin à Universidade Pedagógica de Skovoroda, passando pelo Palácio dos Desportos, uma gráfica, uma torre de transmissão, um prédio residencial de 12 andares ou um centro comercial cheio de pessoas. Na noite de 28 de outubro, uma bomba auto-guiada russa atingiu o principal marco da cidade na Praça da Liberdade de Kharkiv – Derzhprom, ou a Casa da Indústria do Estado – o primeiro arranha-céus modernista da Europa, candidato a património mundial da UNESCO.
A guerra está omnipresente em Kharkiv. Todos estão alerta. Os moradores reagem com suspeição a qualquer pessoa que filme ou tire fotos nas ruas, algo inédito até há pouco tempo. Nesta cidade na linha da frente são muitos os informadores e colaboradores e os moradores estão bastante atentos a isso. Por todo o lado vemos militares e veteranos. E existe recolher obrigatório. E sirenes de ataque aéreo constantes. Som de metralhadoras a abaterem drones e barulho de explosões.
Beliaeva é psicóloga no Kinder Velt, um centro de tratamento de traumas infantis fundado por David Roytman com filiais em Kharkiv, Odessa, Kiev e Kropyvnytskyi. De acordo com um estudo da Fundação Olena Zelenska, cerca de 44% das crianças ucranianas apresentam sinais de transtorno de stress pós-traumático (TSPT). Os números reais são porventura mais elevados. A Kinder Velt oferece gratuitamente terapia de abraço usando cães da raça Hibuki, desenvolvida em Israel, bem como outros métodos.
Mal chega ao escritório frente à escola dos filhos, a sirene de ataque aéreo começa a soar sobre a cidade. “Atenção, atenção. Esta é a sirene de ataque aéreo. Por favor, dirijam-se aos abrigos”, diz repetidamente uma voz através do altifalante, o som espalhando-se por todo o bairro. Ninguém parece prestar grande atenção. As pessoas continuam a sua vida. Beliaeva olha para as suas mensagens de texto e diz: “A turma de Leo desceu para o abrigo agora, está tudo bem.” Quando perguntada se está preocupada com ele e com a distância que a separa da criança caso algo mau aconteça, diz: “Provavelmente vai soar muito estúpido se disser que ‘não, não tenho medo’. Não tenho medo e não estou preocupada. Confio nas pessoas que cuidam de Lev e espero que tudo corra pelo melhor. Que mais posso fazer”?
E ouvimos de repente um som distante. Beliaeva consulta o Telegram e informa que as bombas atingiram um parque nos arredores, felizmente não há feridos graves. O Telegram Messenger, um meio essencial para os ucranianos, foi criado por um fundador russo. De acordo com um oficial do exército ucraniano, o coronel Pavlo Khazan, não é segredo para ninguém que o Kremlin poderia facilmente usar esta plataforma de redes sociais para recolher informações para fins militares. Mas os canais do Telegram, embora proibidos em dispositivos disponibilizados pelo Estado na Ucrânia, não estão bloqueados no país e continuam a ser a ferramenta mais útil para os civis que tentam decidir o que é melhor para a sua segurança.
Beliaeva prepara-se para ver uma paciente, Mariika, de oito anos, que sofre de perturbações relacionadas com a guerra. A mãe da menina, Olena Kramska, de 44 anos, conta que a família procurou terapia porque Mariika não conseguia dormir, chorava constantemente e tinha tremores prolongados. A família de Kramska vive em Kharkiv desde a invasão pela Rússia. Passaram muitas noites na casa de banho ou no corredor, onde é aparentemente seguro, ouvindo continuamente os sons de explosões e de drones. Nunca deixaram Kharkiv, nem mesmo durante os meses mais perigosos, porque os pais idosos de Kramska precisam de cuidados médicos. Não podem ser transportados ou deixados para trás e o seu marido, que está em idade de se alistam, não está autorizado a deixar a Ucrânia.
“Mariika, assim como todos nós adultos, não compreende por que motivo os russos nos estão a atacar. Que mal lhes fizemos? Olhe para o mapa; aquele país tem tudo, incluindo terra. Porquê?” pergunta Kramska.
Apesar da incerteza, alguns pais conseguem proporcionar normalidade e estabilidade aos seus filhos. Uma forma de fazê-lo consiste em desenvolver trabalhos artísticos num estúdio criativo chamado Aza Nizi Maza, fundado por Mykola e Maria Kolomyets em 2012. Desde a invasão em 2022, este estúdio, situado numa cave no centro de Kharkiv, tem funcionado como abrigo subterrâneo para amigos e familiares.
Nunca ocorreu a Mykola Kolomyets deixar Kharkiv, embora esteja legalmente autorizado a fazê-lo dado o seu estatuto de casado com três filhos com menos de dezoito anos de idade. “Fiquei porque nunca me passou pela cabeça não ficar”, disse. “Nem é uma questão moral. É uma questão profissional – as melhores coisas foram criadas aqui, agora. Espero que todos fiquemos bem.”
Um mês após o início da guerra, em 2022, os fundadores decidiram transferir as aulas para o metro de Kharkiv, onde muitos residentes se tentam proteger dos bombardeamentos russos. As crianças fizeram instalações de arte e cartazes inspirados nos acontecimentos da guerra; algumas delas viajaram mesmo até ao estrangeiro para exposições de arte, incluindo a cidades como Nova Iorque.
Kateryna Kononova, de 47 anos, leva o seu filho de sete anos, Vanya, à Aza Nizi Maza para aulas regulares de ensino artístico. Diz-nos que o marido serve nas Forças Militares da Ucrânia e que a família optou por ficar em Kharkiv apesar da guerra; o estúdio também os agarra à cidade. “Ficamos em Kharkiv por causa de Kolya [Mykola] e do seu estúdio. Estávamos à procura de um lugar para o nosso filho, um ambiente inspirador e onde pudesse aprender.” O filho está bem ciente dos ataques da Federação Russa à Ucrânia; ouve as explosões e vê os aviões de guerra. “Kharkiv é a nossa casa”, diz. “Quero que o meu filho viva uma vida plena em sua casa, com a sua família, comunidade, amigos, língua. Tento proporcionar um ambiente tranquilo para o meu filho, continuar a criá-lo e manter a calma.”
Kononova diz que, para os jovens artistas, incluindo para o seu filho, fazer arte e participar de mostras de arte permite-lhes criar o seu próprio futuro. “É um grande problema para as crianças neste momento, pois não vislumbram um futuro”, acrescenta.
Kharkiv tem uma boa dose de amigos e apoiantes. Vários indivíduos e organizações reconhecem a infeliz situação da segunda maior cidade da Ucrânia que, tão perto da frente, é vital para a defesa, economia e cultura da Ucrânia. Em outubro, o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) anunciou um empréstimo de cerca de 27 milhões de dólares à cidade para garantir a prestação de serviços municipais vitais e mitigar os efeitos da guerra em curso. Na primavera passada, a Fundação Howard G. Buffett afetou fundos para financiar a restauração da gráfica Faktor Druk, com sede em Kharkiv e que foi destruída num ataque de mísseis russos. E desde os primeiros dias da guerra Howard Buffett tem vindo a fornecer equipamento médico e assistência significativa às crianças de Kharkiv e à polícia. Para ajudar a repor meios de aquecimento estáveis na cidade à medida que o inverno se aproxima, a UNICEF, com o apoio do governo da Croácia, enviou 47 conversores de frequência para Kharkiv. Sem uma defesa militar adequada, no entanto, a cidade e os seus moradores continuam vulneráveis aos bombardeamentos.
“Compreendo; o objetivo deles [da Rússia] era … expulsar-nos da cidade”, disse Mikhail Kranin, músico e integrante da cena musical de Kharkiv desde os anos 80. Em dezembro de 2023 abriu um espaço musical chamado Music People Club. Este clube, situado em segurança no subsolo, tem noites de microcrofone aberto para jovens de Kharkiv e concertos de bandas de rock e alternativas da cidade. As pessoas não têm medo: “Pelo contrário”, diz Kranin. “Clubes, barbearias, cafés – tudo está aberto e a funcionar. Está tudo bem apesar da guerra. É assim que deve ser.”
Ao fim de um ano e oito meses de guerra, os moradores de Kharkiv aprenderam a viver sob a ameaça das bombas russas. A sua capacidade de fazerem face a tudo isto não torna, no entanto, a situação menos perigosa ou normal. Kramska, mãe de Mariika, de 8 anos, que faz terapia na Kinder Velt, diz que quando a Rússia começa a bombardear, não sabem onde as bombas vão cair. “Pode ser numa casa ou num parque infantil. Não sabemos o que se segue. Eles estão a bombardear-nos constantemente E não sabemos o que nos espera na manhã seguinte”, afirma. “Nem sequer sabemos se vai haver um amanhã.”
Por Katya Solda, com a Forbes Ucrânia e editada por Alan Sacks
Katya Soldak é uma jornalista de Nova Iorque e diretora editorial das edições internacionais da Forbes Media. Natural de Kharkiv, Ucrânia, Katya realizou o documentário The Long Breakup e é autora do livro de memórias-ensaio This Is How Propaganda Works, sobre como é crescer na União Soviética.