Jéssica Silva, jogadora do Benfica e da seleção nacional, é uma das Navegadoras que está na capa digital de julho da Forbes Portugal (leia a reportagem completa aqui). Esta é a segunda parte da conversa com a atleta que, no passado domingo, emocionou o país e o mundo enquanto ouvia “A Portuguesa” na estreia de Portugal no Mundial 2023.
Falamos muito do crescimento do futebol feminino em Portugal, o que é que efetivamente mudou?
Só o facto de conseguirmos mudar mentalidades, conseguirmos perceber que há realmente potencial no futebol feminino, já é um grande progresso nisto que é o crescimento do futebol. O facto de os jogos serem televisionados é também um avanço. Se nós não aparecermos, não existimos. A verdade é que agora já é normal uma jogadora de futebol aparecer na televisão, seja a falar ou a jogar, isso também faz com que as gerações futuras cresçam a ver não só o futebol masculino, mas também o futebol feminino e criem essas referências. Em vez de ser o Cristiano Ronaldo é a Marta ou a Jéssica, a Ana Borges, a Kika. Isso é bom. Acho que este investimento, esta comunicação, este marketing, campanhas de sensibilização para o futebol feminino foram importantes e o caminho também tem de ser por aí. À parte disso, a formação, sem dúvida alguma, os clubes formadores porque só com formação é que existirá alguma sustentabilidade no futebol feminino. É darem essa oportunidade às meninas para que possam jogar porque antes não eram dadas essas oportunidades. Agora uma das coisas que mais gozo me dá é, sem dúvida alguma, estar a entrar no estádio e estar a parar na passadeira porque um pai está a levar uma miúda de cinco ou seis anos para treinar, isso era algo que não se via antes. Está muito mais normalizado, ainda não totalmente. É um processo, mas vai acontecer e tenho a certeza que vamos estar um dia mais tarde no sitio que realmente merecemos estar.
Os recordes de audiência, seja a nível de clubes ou seleção, dizem o quê?
Dizem que o nosso futebol está cada vez mais atrativo, dizem que estamos a jogar bem, a fazer as coisas bem, a evoluir, estamos a crescer enquanto equipa quer a nível de clube quer a nível de seleção. Traduz o interesse das pessoas, a vontade que as pessoas têm de ir ao estádio, quanto mais não seja num primeiro momento com alguma curiosidade e depois se calhar com alguma surpresa porque realmente se pensavam que nós não jogávamos, que nós não tínhamos jeito ou que o jogo era mais lento, conseguem realmente perceber que o jogo também é bem jogado e há sem dúvida uma evolução do jogo jogado de futebol feminino.
A presença portuguesa em competições como a Liga dos Campeões veio acrescentar ao futebol nacional?
Sim, claro que sim. O Benfica tem sido um dos clubes com um trabalho muito competente, muito importante no desenvolvimento do futebol e o nosso futebol tem feito mossa no bom sentido contra grandes equipas a nível europeu. A nossa presença na Champions, ainda que fique com um sabor de que se calhar podia ter sido ainda melhor, não deixou de ser honrosa e realmente quem viu os jogos percebeu que em espaços fomos tão competentes como equipas adversárias. Se calhar não podemos estar a dizer que estamos ao nível de Barcelonas porque não estamos, não estamos de todo, mas sabemos que também temos algo a mostrar, que crescemos com essas equipas e procuramos evoluir. A Champions, que é a competição maior a nível de clubes, acaba sempre por nos meter à prova e acho que independentemente do resultado final é importante ver com olhos de ver e perceber que o Benfica tem capacidade para mostrar o seu futebol. Havemos de lá estar no próximo ano e vamos tentar novamente mostrar aquilo que temos enquanto equipa.
O teu nome é um dos mais conhecidos no desporto em Portugal. Sentes alguma pressão por causa disso ou coloca-te numa posição de liderança?
É um misto, mas eu encaro como uma responsabilidade acrescida, diria. É normal, sendo se calhar uma das jogadoras mais mediáticas e se calhar com uma carreira já um bocadinho vasta a nível de clubes, deixa-me nessa posição, mas mais uma vez assumo como uma responsabilidade acrescida. O que tento passar às minhas colegas, quer a nível de seleção, quer a nível de clube, é a minha experiência e tentar passar a mensagem de trabalho. E quem diz às minhas colegas diz às pessoas que acompanham o meu percurso, às miúdas que me têm enquanto referência, que é uma mensagem de perseverança, de trabalho. Quando falavas em liderança, percebo, mas eu encaro de uma forma serena, natural. Não sei se diria liderança, isso é o natural das coisas, mas eu tento só acrescentar, tento com a minha experiência ajudar a equipa a crescer. E isto é algo mútuo, eu cresço com as minhas colegas, as minhas colegas crescem comigo. Não sou mais nem menos que ninguém, mas é normal que às vezes também sinta alguma pressão porque se calhar sou a jogadora que vai aparecer. Mas encaro de uma forma positiva e com responsabilidade. Nunca joguei só para mim ou para ter o meu contrato profissional, joguei também de forma que as miúdas crescessem a acreditar que podiam ser jogadoras, que podiam alimentar os sonhos. Esse também é o meu objetivo, ajudar a que o futebol feminino possa crescer em Portugal.
Depois de passares por países como Espanha, França, Estados Unidos, consegues perceber porque é que algumas pessoas consideraram o regresso a Portugal como um passo atrás?
É normal que as pessoas olhem para isso como um passo atrás. Eu não o assim, de todo, vejo como um passo dado na minha carreira. A verdade é que eu estive seis anos lá fora, nada foi fácil, a minha carreira foi sempre muito construída à base de obstáculos a terem de ultrapassados, sobretudo as lesões, e fui sempre à procura de uma melhor Jéssica Silva. Portanto, este passo que eu decidi dar foi um passo que achei no momento que fazia sentido dar. O Benfica apresentou-me um projeto ambicioso e acabava por ser como um desafio. Claro que o facto de estar em casa é bom, estar em Portugal, ao pé da minha família e amigos, é algo que me conforta a alma e o coração, mas sem dúvida alguma aquilo que me fez regressar foi a forma com que o Benfica me lançou a proposta ou o desafio. Que não é um desafio porque é o meu clube, é o meu clube de coração, mas a forma como o Benfica se apresenta, o projeto que tem é muito ambicioso e é um projeto que é a minha cara. Eu gosto de desafios, sei que o Benfica é um Benfica que pode em muito pouco tempo estar entre as melhores equipas da Europa e eu vim com esse objetivo porque quero fazer parte da história do Benfica e acredito que sem dúvida alguma o Benfica poderá chegar a esses patamares. Eu quero ajudar o Benfica a conquistar isso.
Ainda sentes machismo no futebol?
Claro que existe, e acho que continuará a existir. As mentalidades estão a ser mudadas e nós continuamos a lutar para que isso se dissipe. Vamos ter de continuar a lutar e é algo que nós não temos problema em fazer, conseguimos fazê-lo dentro de campo e fora dele. Mas isso é quase como falar de outros problemas da sociedade que têm de ser erradicados e não são e constantemente acontecem. Nós temos de continuar a trabalhar de forma que isso se dissipe. Mas mais uma vez, acredito que as mentalidades estão a mudar. É verdade que ainda existe, mas já não é como era e isso quer dizer que está a haver uma evolução. Prefiro ficar com a parte boa.
Quais são as tuas expetativas para este Mundial?
A verdade é que estamos no grupo que penso ser o mais difícil da competição, temos as vice-campeãs mundiais e as campeãs mundiais, os Estados Unidos e os Países Baixos. Temos o Vietname que é uma equipa que não está tão bem cotada no ranking, mas é um Mundial, é uma fase final, é jogo a jogo. Com a certeza, porém, que Portugal no seu melhor nível poderá sempre mostrar o seu futebol e fazer coisas boas. É isso que nós queremos, quem nos conhece sabe que nós estamos a crescer, a evoluir, já defrontámos todas estas seleções à exceção do Vietname. Toda a gente sabe e é-nos reconhecido esse mérito e essa evolução. Portugal no seu melhor nível poderá sempre fazer coisas boas. Não queremos só estar no Mundial, nós queremos realmente mostrar que somos uma equipa extremamente competente e capaz de encarar qualquer seleção.