“Até tinha referências no feminino, que era a Marta, a melhor de todos os tempos, mas era algo tão longínquo. Para mim o futebol feminino até existia, mas era algo longe. Eu não tive a oportunidade de crescer a dizer ‘vou ser jogadora profissional de futebol’”.
Quem hoje olha para a carreira de Jéssica Silva terá alguma dificuldade em acreditar nisto. Como é que alguém que não conseguia sequer imaginar que transformar o seu hobby em carreira profissional seria possível, acaba por construir uma das carreiras de maior sucesso do futebol feminino português?
“Era o acreditar sem ver, eu sentir que se trabalhasse podia chegar lá e foi isso que aconteceu. E claro também não me posso esquecer das pessoas que acreditaram em mim. Aliado à minha capacidade de trabalho e ambição. Como em Portugal as coisas não acontecem, as pessoas, se calhar, torciam o nariz. Agora nem tanto, mas o futebol sempre foi visto como um desporto para homens”, diz Jéssica Silva à Forbes.
Passou pelo Ferreirense, mas é o Clube de Albergaria que descreve como “casa” e o clube que a “desenvolveu enquanto mulher e jogador”. Tinha apenas 19 anos quando a primeira oportunidade e nível internacional surgiu: Linkoping FC, da Suécia. “Dar o passo não foi nada difícil porque estava a concretizar um sonho, que era assinar o meu primeiro contrato”, conta. “Agora, quando chego ao sítio e acabo por ser confrontada com a diferença, o viver sozinha, uma cultura completamente diferente, jogadoras melhores que eu, um campeonato muito desenvolvido, isso para mim foi difícil”.
A separação da família foi a fase mais difícil de todo o processo. Começou logo quando se mudou para Albergaria, mas ainda assim vivia com a treinadora, a sua tutora. O choque foi maior quando chegou à Suécia e se viu sozinha. Também não jogou tanto quando desejava, o que complicou um pouco mais a situação. Só que Jéssica estava a viver a única realidade que a jogadora portuguesa conhecia na altura: “Eu quero ser jogadora profissional, tenho de sair”.
Seguiu-se um regresso a Portugal, de novo ao Clube de Albergaria e depois ao SC Braga. Até que voltou a sair do país, para uma jornada cheia de conquistas. Começou em Espanha, ao serviço do Levante. Seguiu-se o Lyon, um dos melhores clubes do mundo. Foi para os Estados Unidos, onde representou o Kansas City e jogou uma das melhores ligas de futebol feminino. Até que regressou a Portugal e ao Benfica, aquele que considera ser o seu clube.
Um percurso referência para muitas jogadoras.
“Acho que esta responsabilidade sempre teve algum peso na minha vida. É muito importante eu conquistar títulos, mas acho que é importante na medida em que estou a ajudar para que outras miúdas sonhem e percebam que realmente podem ser o que elas quiserem. Um dia quando eu deixar o futebol, não deve faltar assim tanto, é isso que me vai deixar ainda mais orgulhosa”, afirmou. A noção de que já tem mais anos jogados do que terá por jogar leva-a a olhar para o futuro, onde espera conseguir desempenhar um papel no desenvolvimento da modalidade em Portugal. “Nós mulheres temos uma luta extra e eu acho que o meu trabalho vai passar por aí”, diz.
Pelo caminho vieram também os títulos. Mas dois deles merecem menção honrosa. O primeiro foi histórico: Jéssica Silva foi a primeira e única portuguesa a vencer a Liga dos Campeões, na altura ao serviço do Lyon. “Ganhar a Champions é um sonho. Ter assinado pela melhor equipa do mundo, era o sonho de qualquer jogadora. Ganhar a maior competição a nível de clubes para mim era inimaginável”, afirma a jogadora. O segundo foi a Taça de Portugal que venceu este ano com o Benfica. “Tem sido um título que me tem fugido há 12 anos e é sem dúvida alguma, para mim, a competição mais especial. Foi com a Taça de Portugal que eu aprendi a competir. No Clube de Albergaria chegámos a ir ao Jamor, e eu perdi sempre. Com o SC Braga também cheguei à final e perdi. Mas essa era a competição que me permitia sonhar”, conta.
Superar obstáculos
Porque nem tudo é bom, e um atleta sabe que não se ganha sempre, o percurso de Jéssica Silva também ficou marcado por alguns momentos menos positivos. As lesões, por exemplo, marcam momentos bastante complicados. “Tive duas lesões graves, na segunda lesão mais grave [rompeu o tendão de Aquiles] pela primeira vez questionei se fazia sentido eu estar tão longe, se fazia sentido continuar a seguir o caminho mais ‘duro’. A frustração é normal aparecer, mas é mesmo nesses momentos que vemos quem é campeão e quem não é. E eu nisso sempre fui muito casmurra. Claro que se calhar desviei-me um bocadinho quando pensei nisso, mas estava a ser tão duro”, recorda.
Outro momento complicado aconteceu esta época. O Benfica recebia o Lyon no Estádio da Luz, um jogo a contar para a Liga dos Campeões, e quando a lista de convocadas foi tornada pública, o nome de Jéssica não estava entre as escolhidas. O motivo? Desconhecido. O que não evitou, muito pelo contrário, aquilo que surgiu depois. As opiniões, as suposições, as acusações. Um enorme barulho que se gerou em volta do caso.
“Fácil não é, até porque foi uma situação nova. Mas naturalmente depois de alguns anos nisto, uma pessoa já lida melhor. E a verdade é que também sou bem acompanhada, tenho pessoas boas ao meu lado. E a melhor resposta é sempre a capacidade de trabalho. Isto faz tudo parte das diferentes carreiras, eu acho que nem deve ser só no desporto. Claro que se calhar isto foi muito novo e eu fui meio que apanhada de surpresa, mas foi a vida a meter-me à prova, foi assim que eu lidei. Difícil ou não, lidei com ela e acabei por ultrapassar”, diz Jéssica.
Esta capacidade de olhar para o lado positivo de cada situação parece ser uma contante na carreira da jogadora portuguesa, que até com as lesões garante ter aprendido. “As lesões desenvolvem-nos, acabamos por criar capacidades que nós achávamos que não tínhamos, isso foi o maior ensinamento que uma lesão me deu”, afirma.
O mesmo se vê na forma que olha para o futuro. Nas últimas semanas surgiram notícias de uma possível saída do Benfica e regresso ao futebol norte-americano. Na altura da entrevista à Forbes Portugal, não foi sobre este tema em específico que se conversou, mas quando questionada sobre a possibilidade de voltar a jogar fora de Portugal, Jéssica garantiu: “Eu neste momento tenho contrato com o Benfica. Não quero é parar, quero ser feliz e estou sempre à procura da minha melhor versão”.
O crescimento
Quando falamos sobre o campeonato feminino, Jéssica defende a importância de se falar sobre as condições que são dadas às jogadoras. Num lugar de privilégio, assinala, ou não fosse ela jogadora do clube que mais investimento tem feito no futebol feminino, Jéssica escolhe falar em nome de uma melhoria necessária para que todos os clubes possam dar as mesmas condições a que ela tem acesso.
“Bem antes de se profissionalizar o campeonato, é importante serem dadas as melhores condições para a prática do futebol aqui em Portugal. Continua a haver equipas a terem de se equipar em contentores, a treinarem em sintéticos que são quase impraticáveis”, conta. “Eu falo como jogadora privilegiada, porque realmente o Benfica dá as melhores condições, mas é verdade que ainda estamos na luta. Não vou dizer que as coisas estão iguais, porque não estão. Há um caminho, há um plano e eu acredito que esse plano esteja a ser cumprido”.
Ao mencionar a evolução, Jéssica não consegue deixar de mencionar as jogadoras que já cá estavam quando ela chegou. Como Edite Fernandes, Carla Couto e Ana Borges, com quem ainda joga na seleção nacional. “Foram jogadoras que tiveram um papel importantíssimo no desenvolvimento do futebol feminino em Portugal. Em diferentes alturas, fomos saltando alguns obstáculos. Eu estou a sentir a evolução porque apanhei isto numa fase intermédia, comecei a jogar num pelado e agora já jogo num estádio. De todas, se calhar faço parte daquela geração que consegue apalpar a evolução, mas é sempre importante lembrarmos as mulheres que estiveram cá e nos ajudaram a sonhar”, afirma.
Quando se coloca o futebol jogado por mulheres e o futebol jogado por homens numa balança, em vez de se obter um equilíbrio, o mais costuma cair para o lado dos segundos. Mais condições, mais salários, mais investimento, mais reconhecimento. Mas no meio de tudo isto, há um mais que pertence às mulheres: mais voz.
Como oradora convidada na segunda edição da Women’s Summit, da Forbes Portugal, Jéssica já o tinha dito: “O futebol deu-me a oportunidade de ter voz, não ter medo de falar. Às vezes há uma certa limitação dos jogadores de futebol, sobretudo eles, não têm voz para falar sobre diferentes problemas sociais, mas eu tento fazer o meu caminho um bocadinho à minha maneira”.
Mas porque é que aqui eles escolhem ser menos?
“Porque acho que ainda somos todos muito retrógrados, parámos um bocadinho no tempo. Vivemos num mundo em que as coisas estão tão difíceis, que se podermos ajudar, devemos falar. Deve ser no desporto em geral, mas já há aquela ideia pré-concebida do ‘nós não podemos ter uma opinião’. Não, eu acho que é importante as pessoas terem a capacidade de explorarem a liberdade de expressão, não devem ter medo. A partir do momento em que dou uma opinião sem querer ferir ninguém, que seja construtiva, que seja à base daquilo que eu sinto, acho que não posso ser limitada. No futebol feminino podemos fazer as coisas de uma forma diferente, porque é tudo um bocadinho mais recente. Eu sou jogadora de futebol, mas sou pessoa antes, sou mulher. É importante não nos esquecermos dessa parte. Bem antes de sermos atletas, somos pessoas”, defende Jéssica.
(Artigo publicado na edição de junho/julho da Forbes Portugal)