Com uma seleção de fotografias e pequenos vídeos recolhidos das comunidades Hindu. Gujarati e Sikh- Punjabi de Lisboa e que resultam da investigação colaborativa da antropóloga Inês Lourenço e do fotógrafo Vidur Bharatran, a Indo .European Science and Arts Association e o Centro em Rede de Investigação em Antropologia lançam a exposição Património Migratório entre Índia e Portugal, patente na Sociedade de Geografia até 31 de março.
Inês Lourenço, curadora do projeto, partilhou com a Forbes a sua visão sobre esta relação histórica Índia – Portugal, sobre as heranças e também sobre o futuro.
O que espoletou o lançamento desta Exposição?
Esta exposição insere-se num processo expositivo bastante mais lato. Passei os últimos anos a recolher o património – material e imaterial das várias comunidades de origem indiana em Portugal: Hindu-Gujarati e Sikh-Punjabi, retratadas nesta exposição, mas também as comunidades islâmicas de origem gujarati: sunita e ismaelita e a comunidade goesa, maioritariamente católica. Ao longo deste processo, as pessoas foram-me disponibilizando inúmeros objetos, dos mais variados tipos: objetos religiosos, utensílios de cozinha, instrumentos musicais…
Este é um projeto colaborativo, em que as pessoas participaram ativamente na escolha dos objetos e no seu empréstimo. Mas havia muita imaterialidade que os participantes queriam também registar e, nesse âmbito, optámos por fazê-lo através de fotografias e de vídeo. Esta exposição resulta dessa componente visual, realizada em grande parte pelo Vidur Bharatram. A recolha de imagens foi feita entre as diversas comunidades, mas o material relativo às comunidades Hindu-Gujarati e Sikh-Punjabi estava já mais trabalhado e pronto para expor.
O convite para expor este trabalho partiu da Associação Indo-Europeia de Ciências e Artes e a Sociedade de Geografia de Lisboa aceitou acolhê-lo. Propus ao Vidur fazer uma seleção de fotografias e de vídeos que ele tinha editado de acordo com uma narrativa expositiva em torno da ideia de património cultural imaterial e ele aceitou com entusiasmo.
Contudo, importa referir que a ideia por detrás da ideia expositiva original se mantém: dar visibilidade e estas comunidades, usando o museu como espaço democrático e inclusivo. Sempre pensei que podemos usar o património para refletir sobre a ligação contemporânea entre a Índia e Portugal, contribuindo para a valorização da diversidade cultural, através de uma política de atuação que torna os museus espaços socialmente responsáveis, acessíveis, participativos e inclusivos.
Como descreve o Património Migratório Índia-Portugal?
O património migratório entre a Índia e Portugal é muito complexo. Quando iniciei a pesquisa, encontrei uma retórica museológica muito centrada na arte indo-portuguesa, eminentemente cristã e originária de Goa. O que tentei fazer foi trazer alguma diversidade sobre esta narrativa. A antropologia, sendo uma ciência que estuda o comportamento, em grande maioria, de pessoas vivas permite ligar as pessoas a objetos concretos. Comecei por usar o cofre relicário de São Francisco Xavier, exposto no Museu de São Roque, como ponto de partida para conversas com os meus interlocutores goeses, ou de origem goesa e, a partir dessas conversas, surgiram narrativas muito interessantes do que significa ser goês e levou-me também a conhecer vários grupos de goeses que se organizam na zona da Grande Lisboa, e a ter oportunidade de registar as suas festividades e tradições que criaram localmente ao longo de muitos anos.
Muitos com uma passagem por África?
Sim, o património migratório Portugal-Índia é o resultado do encontro entre origem e destino e, em muitos casos, com uma forte influência da passagem por África. Ao longo destas viagens, ele foi-se adaptando e transformando, agregando múltiplas referências. Mais do que fazer um simples retrato dos grupos migrantes – a maioria cidadãos portugueses – importa evidenciar continuidades e sinergias resultantes do encontro contemporâneo entre a Índia e Portugal. Desse encontro surgiram novos modos de ser, de cozinhar e até de acreditar, formas únicas e irrepetíveis patentes no património que com eles foi migrando.
Como tem evoluído até aos nossos dias?
A evolução ao longo do tempo, desde a anexação do antigo Estado da Português da Índia, e depois, da descolonização da África portuguesa, revela muito sobre os processos de adaptação ao contexto português. Podíamos falar do caril de bacalhau, da celebração do Natal por hindus e muçulmanos indo-moçambicanos, mas eu posso dar um exemplo que me fascina muito e que é simbólico daquilo que significa ser hindu português, o culto de Nossa Senhora de Fátima pelos hindus portugueses. Todas os templos domésticos das famílias hindus portuguesas incluem uma imagem de Fátima. Os hindus portugueses são muito devotos de Fátima e acreditam que ela é uma mataji, uma deusa-mãe protetora, incluindo-a no seu panteão de divindades e nos próprios cânticos devocionais. Deslocam-se frequentemente a Fátima em peregrinação, sendo este espaço considerado uma fonte de sacralidade, um tirtha. O património das famílias hindus foi evoluindo até às imagens de Nossa Senhora de Fátima decoradas com colares rudrakhsa e um sindur na testa, por exemplo. Eu penso que este exemplo pode ser uma metáfora para as dinâmicas culturais e religiosas que se geram a partir do contacto e do cruzamento entre diferentes tradições.
A comunidade portuguesa é recetiva a estas novas formas de ser português? Qual o seu sentir?
Depende. A comunidade envolvente conhece o lado exótico e orientalizado da Índia, mas a grande maioria desconhece as tradições religiosas ou culturais destes vários grupos. Os mais próximos vão criando laços de vizinhança e de amizade porque vão compreendendo essas diferenças. À medida que as compreendem, descobrem quem afinal têm muitas semelhanças com as suas próprias tradições. Ou seja, é o desconhecimento, generalizado na população portuguesa, que gera estereótipos, obstáculos e nem sempre os portugueses são recetivos.
Nem sempre sentem que estes cidadãos portugueses são tão portugueses como eles próprios. Daí a necessidade de dar a conhecer.
A comunidade Sikh organiza anualmente uma festividade que celebra o início da primavera, chamada Vaisakhi. Fá-lo no centro de Lisboa, onde expõe várias expressões culturais e religiosas, distribuindo refeições e folhetos informativos sobre a religião Sikh a todas pessoas visitantes. O objetivo é dar-se a conhecer, pois sabem que esse é o primeiro passo para a compreensão das suas especificidades culturais pela população envolvente.
O trabalho académico deverá obrigatoriamente ter um papel de ligação à sociedade e, nesse sentido, acredito que a antropologia pode oferecer um importante contributo, usando o seu conhecimento científico para dar visibilidade a estas comunidades, para desconstruir os estereótipos em torno destas pessoas, mas dando-lhes voz, chamando-os a participarem ativamente e não falando por elas.
A recetividade varia muito dos contextos geográficos e socio-económicos portugueses. Temos bons exemplos de integração de imigrantes sul-asiáticos em Bragança, por exemplo e, infelizmente condições terríveis noutras zonas do país, como o Alentejo e o Algarve, que precisam de intervenção urgente. Aí os problemas vão muito além da recetividade, são bastante mais complexos.
Índia e Portugal têm uma história comum que passa por Goa. Como recuperar esse “património” e potenciar a lusofonia?
Passa por Goa, mas também por Damão e Diu, e por todas as redes que o império português reforçou entre o Estado Português da Índia, que passam também pela costa oriental de África, com particular destaque para Moçambique. Eu não penso que esse património possa nem deva ser recuperado. Na verdade, ele está vivo, mas é diferente do passado. Os goeses, como gostam de ser chamados, apesar de, na sua maioria, sempre terem sido portugueses, mantêm uma identidade muito ativa em Portugal. Têm redes de contactos transnacionais que ajudam a revitalizar uma certa identidade ligada a Goa, para uns, ligada a Moçambique. No entanto essa história passada mantém-se viva no vindalho e no sarapatel, no culto de São Francisco Xavier, na novena de Nossa senhora do Perpétuo Socorro. Em Diu ainda se encontra quem fale português e famílias emigrantes regressam de Portugal, frequentemente para celebrar casamentos ou simplesmente visitar o local de origem dos seus antepassados e as divindades protetoras das suas famílias. Penso que a ênfase colocada na contemporaneidade destes patrimónios pretende distanciar-se do passado colonial português e olhar estes objetos à luz dos seus usos quotidianos e das suas cargas simbólicas redefinidas e negociadas. Estas identidades múltiplas permitem revelar que as culturas não são estanques, mas antes fluidas. Esta fluidez está patente na forma como estes cidadãos conjugam várias heranças culturais, que conjugam passado, presente e futuro.